Aos poucos, as crianças crescem e aqueles medos de monstros, vampiros e de bruxas vão perdendo espaço. Conforme elas passam a compreender melhor a distinção entre realidade e faz-de-conta, tudo isso vai ficando para trás. O problema é que, justamente, quando elas começam a entender essas diferenças entre o mundo de verdade e a fantasia, os medos antigos vão sendo substituídos por novos – e, desta vez, os “fantasmas” são bem reais.
Em Liz sem medo (Escalarte, 2024), de Martha Batalha, quando era uma criança bem pequena, Liz tinha medo do monstro que se formava na cadeira cheia de roupas assim que a luz do quarto de apagava. Era um tipo de "medo-montanha", como lhe explicou a mãe: um medo tão alto que não deixava a pessoa enxergar nada além dele. Mas Liz conseguiu superá-lo, encontrando recursos dentro de si mesma. Imaginou a girafa Igor, que a ajudava a escalar essa visão aterrorizante e ir além!
Só que um tempo depois, a menina vê um medo bem real se concretizar: ela perde a mãe. Liz ainda é criança quando a girafa Igor deixa de existir - e sua mãe também. A consciência da finitude e a dedução de que, um dia, a morte chegará para nós e para aqueles que amamos, dá arrepios. E nos faz perceber que nem sempre temos o controle de quando vamos viver. "(...) não adianta planejar nada. Tudo se planeja por conta própria — ou não se planeja nunca — e vai acontecendo de um jeito ou de outro", como Liz reflete no livro. Quão assustadora pode ser a ideia de que a morte pode chegar para as pessoas que mais amamos e que cuidam de nós, como os nossos pais?
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Quando as crianças se dão conta dos perigos reais
É a partir dos 7 ou 8 anos, que os pequenos começam a perceber que situações ruins ou perigosas podem, de fato, acontecer. Eles podem se machucar, podem ficar doentes. Seus pais (ao contrário do que imaginavam) não são super-heróis e podem ficar doentes também. E, sim, podem até morrer. Esse medo da morte dos pais é uma das sensações mais angustiantes e comuns da infância.
A psicóloga e psicopedagoga Cynthia Wood, da Clínica Crescendo e Acontecendo (SP), explica que algumas das famílias usam as religiões e crenças para falar sobre a finitude da vida com os pequenos. “Quando a família não tem religião ou crenças que podem confortar, é preciso explicar que cada pessoa tem um tempo para viver na Terra e que, um dia, a morte vai acontecer com todo mundo”, afirma. Um clássico é usar imagens como "virar estrelinha" para tentar concretizar um mistério que nem nós adultos compreendemos. “É complicado, porque a criança quer uma explicação, que nem nós, adultos, temos. Não sabemos por que viemos ou porque vamos embora. Só sabemos que um dia chega a hora”, acrescenta.
Uma ferramenta que pode apoiar esses diálogos com as crianças é apresentar desde cedo livros que falem, de maneira delicada, sobre esse processo de morte e luto. Para os pequeninonhos, A morte da lagarta (Companhia das Letrinhas, 2022), de André Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo e Pedro Markun, e Pode chorar, coração, mas fique inteiro (Companhia das Letrinhas, 2020), de Glenn Ringtved, podem ser boas ferramentas.
Mas o medo da morte não é um único que assombra as crianças. Ao prestar atenção nas conversas dos adultos, nos noticiários e em tudo o que observam ao redor, elas passam a ter medo de os pais se separarem, de a família ter problemas financeiros, das catástrofes naturais, de incêndios, enchentes, tempestades, acidentes de carro ou de avião. Tem também o medo de assaltos, sequestros e tantas outras violências que, infelizmente, acontecem todos os dias. A diferença é que agora, não dá mais para tranquilizar seu filho, dizendo simplesmente que “essas coisas não existem” ou garantir que vai ficar tudo bem e que nada disso nunca vai acontecer com ele ou com alguém da família.
Mentir não é uma opção. Até porque as crianças logo percebem a verdade. E o pior: você corre o risco de perder a confiança delas, algo muito difícil de reconquistar. O que fazer, então?
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Tudo bem sentir medo - mas sem exagero
O primeiro passo é entender que o medo é normal – e até muito importante para a nossa sobrevivência. “O medo não é um sentimento ruim. Ele é necessário para o ser humano”, afirma Cynthia. Isso porque o medo é um estímulo de proteção, que ajuda a nos preservar de situações arriscadas em geral. É essencial para a sobrevivência e para a evolução não só humana, mas de várias espécies. “É preciso ter medo de ser atropelado na rua para olhar para os dois lados e prestar atenção ao atravessar; é preciso ter medo do fogo para termos os devidos cuidados para não sofrermos queimaduras”, exemplifica. O problema está no medo exagerado, que paralisa, que causa crises de ansiedade e pânico, que atrapalha a vida e impede experiências, desde as mais corriqueiras às mais importantes.
Em alguns casos, o medo pode ser intensificado pelo entorno, despertando reações e elocubrações exageradas. Sabe quando a criança se pendura em algum lugar e alguém grita: "Desce daí que você pode cair e bater a cabeça"? Ou quando os pequenos querem brincar na chuva e escutam "não pode tomar friagem que fica doente"? A intenção é sempre boa, mas a forma de cuidar pode acabar amplificando alguns medos desnecessariamente. Será mesmo que não dá para a criança se pendurar de forma segura, com a supervisão de um adulto, por exemplo? Ou será mesmo que uns pingos de chuva podem ser tão ameaçadores à saúde? Não dá pra resolver com um banho quente depois da farra?
Quando a criança deixa de se arriscar, de testar brincadeiras novas, de explorar seus limites e se expor a novas sensações por medo, temos um problema. "É claro que os perigos existem, mas é preciso moderar”, alerta Cynthia. Ela lembra que “pais ansiosos geram filhos ansiosos”, já que os comportamentos também podem ser aprendidos. E quando os pais têm muito medo de tudo, eles acabam transferindo isso para as crianças. “E não é só com o que se fala, mas também com o que se sente. A criança sente quando os pais não confiam, quando estão inseguros”, aponta. Em algumas famílias, os adultos precisam tratar os próprios medos, quando eles são excessivos, para depois conseguirem ajudar a criança.
É claro que é preciso conversar, explicar os riscos, ensinar a criança a prestar atenção e a tomar cuidado com os diversos riscos que se apresentam no cotidiano. Mas tudo com bom senso. Afinal, às vezes, é com o próprio tombo que ela vai aprender a olhar para o chão com mais atenção ao caminhar pela rua.
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Como, então, ensinar a lidar com medos reais?
É essencial mostrar como podemos nos preparar para enfrentar alguns medos reais de forma prática. “Quando a criança está com medo de ir mal em uma prova na escola, dá para convidá-la a pensar sobre esse receio, para ver se ele é real ou irreal – e o que pode ser feito a respeito”, sugere Cynthia. Se a criança estudou para aquela prova e está preparada, conhece a matéria, o medo é irreal, é uma ansiedade. “Nesse caso, vale respirar fundo, se tranquilizar, tentar se distrair e descansar até a hora da prova. É preciso confiar no trabalho feito até ali. Se não estudou, o medo é real. Então é preciso estudar e correr atrás, pedir ajuda, se for o caso”, recomenda.
Perder os pais é um medo real que se concretiza para a pequena Liz em Liz sem medo (Escarlate, 2024)
O medo da violência urbana e das catástrofes naturais é quase inevitável nos dias de hoje, quando basta ligar a televisão ou acessar canais de notícias na internet, para se deparar com enchentes, deslizamentos de terra, vendavais, queimadas, além de sequestros e assaltos.... É inevitável que a criança tome conhecimento desses acontecimentos. Mas, segundo Cynthia, é importante que os adultos não exponham a criança em excesso a esse tipo de conteúdo. Não precisa deixar a TV ligada naqueles telejornais que transmitem tragédias o dia inteiro nem compartilhar imagens que possam impressionar demais os pequenos. Por outro lado, não dá para fingir que nada disso existe. “O melhor caminho é conversar e explicar as situações com honestidade e simplicidade, de maneira que a criança entenda, de acordo com a idade”, aponta.
Você não consegue garantir que você ou seu filho nunca serão assaltados ou que ninguém nunca vai invadir a sua casa, mas pode orientá-lo a ficar atento, a tomar alguns cuidados. Evitar usar o celular na rua, redobrar a vigilância em locais mais perigosos, olhar para os dois lados antes de atravessar a rua... Os pais também podem tranquilizar a criança dizendo que existem pessoas responsáveis focadas em protegê-la, como a própria família, que cuida da segurança da casa e está atenta à prevenção de perigos.
No caso das catástrofes naturais, dá para contar que existem pessoas especializadas em diversas áreas, na ciência, na política e em diferentes organizações, trabalhando e estudando, em busca de soluções. Pode ser até um bom momento para falar sobre como é importante cuidar da natureza, preservar o planeta, repensar o consumo e ser solidário com os outros nos momentos de tragédias, como a que, recentemente, assolou o Sul do Brasil.
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Quando o medo paralisa é hora de pedir ajuda
Tanto em situações em que o medo excessivo parte dos pais, quanto nos casos em que está na própria criança, é preciso observar para entender o que está acontecendo e buscar ajuda profissional, caso necessário. Alguns adultos, por sentirem receio de tudo, acabam privando os filhos de viver experiências importantes e atrapalhando o desenvolvimento e a autonomia delas. “Quantas crianças deixam de sair, de brincar, de ir a um aniversário, de dormir na casa de um amiguinho pelo medo dos pais de que algo aconteça?”, questiona a psicóloga. “É claro que, de vez em quando, situações ruins ou acidentes acontecem – e teremos de lidar com isso. Mas não dá para ter essa paranoia e viver em uma bolha”, explica. É o caso de buscar auxílio de um profissional.
Já na criança, os pais podem observar que o medo está além do normal quando:
- atrapalha o sono;
- a criança não quer ir ao banheiro sozinha ou volta a fazer xixi na cama;
- há alterações de apetite;
- a criança não consegue ficar sem os pais.
“Algumas, em casos mais extremos, têm sintomas fortes”, aponta a especialista. “É quando a criança ou o adolescente entra em crise de pânico, hiperventila. A respiração já não fica bem, às vezes os dedos das mãos vão se contorcendo...”, diz ela. Nesse caso, é fundamental avaliar o problema, para busca ajuda especializada.
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