Coleção Canoa resgata contos tradicionais japoneses com ares moderninhos

20/09/2024

Um pêssego gigante vem flutuando por um rio e é encontrado por um casal de velhinhos. Mas, antes mesmo de eles cortarem a fruta, o pêssego se rompe de forma inesperada. E de dentro dele sai… uma menina! É assim que começa A menina pêssego (Companhia das Letrinhas, 2024), um dos quatro contos tradicionais japoneses que fazem parte da terceira leva da Coleção Canoa, que oferece literatura de qualidade a preços acessíveis. 

Em A menina pêssego, os avós têm uma baita surpresa ao encontrarem um pêssego gigante

Em A menina pêssego (Companhia das Letrinhas, 2024), os avós têm uma baita surpresa ao encontrarem um pêssego gigante 


Os outros três são Shiro e avós Sakura (Companhia das Letrinhas, 2024), O macaco e o caranguejo (Companhia das Letrinhas, 2024) e O monge Ikkyuu (Companhia das Letrinhas, 2024). Em Shiro e avós Sakura, o cachorrinho Shiro é encontrado por um casal de avós e traz a eles muita sorte, mas também desperta muita inveja, em uma narrativa que trata do embate entre bem e mal, reforçando que as boas ações são sempre recompensadas. Já em O macaco e o caranguejo, o macado Saru acha que foi mais esperto que o caranguejo Kani ao convencê-lo a trocar um delicioso caqui por uma semente que ainda precisaria ser plantada… até ver o tamanho dos caquis que brotaram um tempo depois! E em O monge Ikkyuu, conhecemos a história de um jovem monge aprendiz que pensava diferente de todo mundo. Suas ideias e respostas causavam estranheza, mas aos poucos ele vai apresentando uma nova perspectiva e quebrando paradigmas.

Essas histórias são exemplo de um tipo de conto japonês que tem até nome: mukashi banashi ou “contos antigos”. São histórias que se caracterizam pela presença de elementos mágicos e, a exemplo do que aconteceu com os contos de fadas no Ocidente, inicialmente se difundiram pela tradição oral. “Geralmente são histórias maravilhosas que eram destinadas ao público adulto, mas que, com o tempo, tiveram suas variações e adaptações para o público infantil”, explicam os autores, Paola Yuu Tabata e Gustavo Hirga. 

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Simbolismo, magia e moral: o que contam os contos

Ilustração de Shiro e avós Sakura

Shiro, o cachorrinho que é encontrado dentro de um poço, simboliza a sorte que acompanha o amor e as boas ações em Shiro e avós Sakura (Companhia das Letrinhas, 2024)

 

Os mukashi banashi são histórias também carregadas de simbolismo, em que elementos representativos da cultura japonesa costumam aparecer. O pêssego, por exemplo, é símbolo de longevidade e considerado um alimento dos deuses. As cerejeiras que florescem para o vovô Sakura simbolizam o bem e a beleza efêmera da vida. Saru, o macaco que se faz de esperto, reforça o caráter travesso que é normalmente simbolizado por esses animais. 

É importante saber també que há diversas variações de mukashi banashi. Alguns contos podem trazer a presença de animais com a intenção de apresentar uma moral, a exemplo das fábulas. Outros podem falar sobre herois e divindades como fazem as lendas. A professora Márcia Namekata, da Universidade Federal do Paraná, tem uma série de artigos sobre os mukashi banashi explicando suas origens e traçando paralelos com a cultura ocidental. 

Pensar em como apresentar contos tão enraizados na cultura japonesa de uma forma que fizesse sentido para os leitores brasileiros foi um exercício interessante para os autores. A menina pêssego, por exemplo, era menino na versão original. “Achamos que seria uma ótima oportunidade de colocar uma personagem feminina. Meninas também lutam contra onis!”, explicam os autores se referindo a criaturas do folclore japonês que se assemelham a monstros, podem ter chifres e faces de humanos ou animais.

Paola e Gustavo no lançamento dos contos japoneses na Bienal do Livro

Paola e Gustavo são formados em design pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Eles são casados e trabalham juntos desde 2023. Nas redes sociais, Paola se tornou conhecida com o perfil Papoulas Douradas, que existe desde 2014, no qual ela compartilha ilustrações, cursos e processos criativos. Em entrevista ao Blog Letrinhas, os autores falaram sobre sua relação com o Japão e o processo de recriação dos contos com finais (mais) felizes do que as versões originais.

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Confira a entrevista com os autores Paola Yuu Tabata e Gustavo Hirga


Blog Letrinhas: Como os contos que estão na Coleção Canoa fizeram parte da infância de vocês? 

Paola: Desde que eu me lembro, minha mãe lia livros pra mim. Quando eu era criança, ela não deixava comprar doces ou roupas caras, mas livros? Podia! Sou neta de imigrantes japoneses e minha primeira língua foi o japonês. Esses contos sempre estiveram presentes nas histórias contadas pela minha mãe, nas prateleiras de casa, em aulas e teatros da escola nipo-brasileira que eu frequentava e em atividades do Kumon que eu fazia. Só que tudo era em japonês. Teve uma época na minha infância em que eu brincava de tradutora. Eu gostava de traduzir alguns livros desses para o português e colava etiquetas com a tradução no próprio livro. Quem diria que alguns anos depois, eu teria a oportunidade de recontar essas mesmas histórias...

Gustavo: No meu caso, foi bem diferente. Quando eu era criança, nunca tive um contato muito próximo com a cultura japonesa, pois meu bisavô não transmitiu muito suas tradições para as gerações seguintes. Então conheci essas histórias só depois de adulto, através da Paola. É impossível que hoje eu tenha uma visão sobre os contos que eu teria se tivesse conhecido-os em minha infância. Mas foi justamente esse detalhe que tornou essa coleção muito especial pra gente, porque pude combinar minha visão e bagagem com histórias que foram muito importantes para formação da Paola.  Em 2024 nos envolvemos com muitos projetos diferentes e esses contos foram o pontapé para me aprofundar ainda mais na cultura japonesa. 

 

Blog Letrinhas: Como vocês se relacionam com a cultura japonesa hoje?

Paola: Atualmente, sinto que encontrei um equilíbrio saudável, em que eu entendo minhas origens e celebro as diferenças. Quando eu era bem novinha, o “normal” era a cultura japonesa, porque eu frequentava uma escola nipo-brasileira, e mesmo depois de entrar numa escola católica, eu continuava frequentando a escola anterior no período da tarde. Então meu círculo de pessoas próximas era ou de japoneses ou de descendentes de japoneses. Já quando virei adolescente, entrei em um conflito com a minha identidade e preferi rejeitar o meu lado japonês, sentia muita vergonha e queria ter outra vida (ou ir morar no Japão). Conforme fui crescendo, fui entendendo melhor sobre ser uma mulher brasileira amarela e pouco a pouco fui me informando e mudando de opinião. Tem um pouquinho dessa minha experiência de autoconhecimento na minha HQ Bem-vinda de volta (Seguinte, 2024).

Gustavo: Como não tive uma vivência cultural japonesa em minha criação, meu único contato era ser chamado de mestiço por outras pessoas, mesmo sem entender o que isso queria dizer. Depois que conheci a Paola, pude aprender com muito mais profundidade sobre a herança cultural japonesa, principalmente no Brasil, e como ela se mistura em nosso cotidiano como brasileiros. Portanto, hoje me encontro mais em um momento de aprendizado.

Tenho uma herança cultural bem mista, como muitas pessoas aqui, então está sendo muito importante poder me aprofundar em uma de minhas diversas heranças.

 

Ilustração de O macaco e o caranguejo

O macaco Saru passa a lábia no caranguejo Kani - mas no final percebe que não foi ele quem se deu melhor em O macaco e o caranguejo (Companhia das Letrinhas, 2024)


Blog Letrinhas: O que mudou da tradição para a produção contemporânea japonesa?

Paola e Gustavo: Depende muito do contexto. No nosso caso, como brasileiros recontando contos antigos japoneses, pensamos bastante em trazer as histórias de um jeito leve e que faça sentido com o público-alvo. Tradicionalmente, muitos contos japoneses terminam em um final triste ou em aberto, diferente de contos ocidentais, que têm muitos finais felizes. 

Para essa coleção, decidimos mudar alguns finais a fim de passar a mensagem que queríamos para os leitores. Por exemplo, em Shiro e avós Sakura, o cachorro é morto pelo vizinho. Optamos por mudar um pouco o rumo da história para ter um final feliz, ainda passando a mensagem principal do livro, sobre bem e mal e suas consequências. Outro exemplo é que mudamos o tradicional menino pêssego para uma menininha em A menina pêssego. Nada contra um menino ser o personagem principal. Mas por ser uma história de coragem, aventuras e independência, achamos que seria uma ótima oportunidade de colocar uma personagem feminina. Meninas também lutam contra onis! Outros elementos como as cerejeiras, oniguiri (bolinho de arroz tradicional japonês), e nomes de personagens, mantivemos justamente porque a ideia dessa coleção é mostrar um pouco da cultura e tradições japonesas.

Blog Letrinhas: Todas as histórias trazem elementos mágicos e de valor muito simbólico, como as cerejeiras. Como apresentar essas referências para quem não conhece a cultura japonesa?

Paola e Gustavo: Decidimos fazer uma breve explicação do conto e algumas curiosidades no final de cada livro, em “Sobre o conto”. Assim, esperamos despertar a curiosidade do leitor para pesquisar a fundo sobre as histórias e simbologias.

 

Blog Letrinhas: Todas as histórias trazem uma moral, uma lição a ser aprendida. Qual é, para vocês, a função das histórias e dos livros?

Paola: Cada livro que lemos é um aprendizado, uma transformação. Acredito que os livros infantis têm um papel mais importante ainda, por estarem presentes em uma fase de crescimento e construção de caráter na criança. Além de ser uma história engraçada, para a criança se entreter e viajar na imaginação, pode trazer ensinamentos, que alinhados com a educação na escola e no ambiente de casa, ajudam a formar um senso crítico sobre a sociedade.

Gustavo: Acredito que os livros, além de registros escritos e ilustrados de nosso tempo, são uma herança para o futuro. Histórias têm a função de condensar todo um aprendizado individual e coletivo, sejam elas documentais ou fictícias, que formam todo o alicerce da experiência humana. Em nossa coleção, mesmo se tratando de histórias tradicionais, a forma com que contamos é um reflexo direto do momento em que estamos como pessoas e como sociedade. 

Acredito muito que as histórias que consumi quando criança formaram quem sou hoje, mesmo que já tenham se passado muitos anos desde essa época. Brincava com meu irmão por horas seguidas inventando que éramos piratas, aventureiros, espiões e uma diversidade de outras coisas, e isso me ajudou a encontrar meu lugar no mundo.

 

Blog Letrinhas: A presença de pessoas asiáticas têm ganhado mais relevância, inclusive na literatura. Para vocês qual é a principal contribuição da cultura asiática no universo dos livros e da criação?

Paola: Para mim, a cultura japonesa acrescenta no universo literário com a sua bagagem cultural (simbologias, tradições, comida), assim como todas as outras culturas acrescentam. É muito interessante ler sobre diversos assuntos na perspectiva de lugares diferentes e como em cada lugar, algo pode ter um significado novo. Não acho que seja algo específico da “cultura asiática” e sim da diversidade cultural. A educação ainda tem um longo caminho para ensinar a história do mundo, não só na literatura e nas artes, por um ponto de vista não-eurocêntrico. 

Gustavo: No contexto brasileiro, a contribuição da cultura asiática na literatura e nas artes como um todo é tão importante quanto todas as outras culturas que formaram nosso país. Fazemos parte de um país de imigrantes, então poder manter e transmitir as culturas de origem não só mantém elas vivas, quanto também ajuda na evolução das relações sociais, já que conhecendo a cultura do outro, conhecemos novas formas de respeito.

 

(Texto: Naíma Saleh)

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