Havia um tempo de trens modelando a paisagem, de praças que viviam cheias, de casas geminadas de tijolinhos à vista que compunham o cenário urbano. Mas era também um território ainda muito cerceado e hostil para as mulheres, circunscritas, muitas vezes, ao interior de suas casas e, quando muito, de seus trabalhos — no qual a arte era a única possibilidade de fuga de uma realidade imposta pelo gênero. É com esses elementos, inseridos no contexto do interior paulista dos anos 1950, e inspirada nas suas memórias afetivas, que Paula Marconi de Lima apresenta Minha vó ia ao cinema, livro que reconta as lembranças de sua própria avó, ilustradas por Lumina Pirilampus, e publicado pela Companhia das Letrinhas (2023). Uma história que é dela e de sua avó antes mesmo de ser mãe, mas que também é a de muitas mulheres brasileiras.
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Paisagens interioranas invocam saudade e memória em Minha vó ia ao cinema, com ilustrações de Lumina Pirilampus
Escrito em 2021, dois meses após a perda da avó paterna, Vanda, aos 90 anos — mais uma vítima da pandemia de Covid-19 — o texto revisita a própria infância interiorana da autora. E reencontra a avó em um tempo diferente, bem antes de ser avó e mãe, como uma menina que representa tantas outras. A avó de Paula foi mais uma entre tantas mulheres que precisaram trabalhar antes do que deveriam, que só podiam andar de saias, que não tinham a mesma soberania dos homens. Mas também foi uma entre tantas mulheres que se fortaleceram na amizade e na cumplicidade com outras mulheres, que não deixaram de sonhar, de florescer, de resistir.
A história recria as barreiras impostas a toda uma geração, mas mostra como, mesmo no cenário mais improvável, era possível transgredir. "Me chamava muito a atenção que minha avó vivia naquela vila tão pequena e já tinha assistido a filmes clássicos em um cinema de rua! Parecia uma coisa muito extraordinária pra mim", lembra a autora. E era.
Embora adorasse histórias, a estrela da vida real de Minha vó ia ao cinema não sonhava estar em uma, menos ainda como protagonista. Vanda nasceu e viveu em Votorantim, que à epoca da história era um distrito de Sorocaba (Votorantim foi emancipada em 1963), e é uma das meninas que sonhavam outras vidas enquanto trabalhavam na fábrica de tecelagem. Aos 15 anos, ela já sabia que "o caminho para chegar ao cinema era o mesmo para chegar na fábrica", como escreve Paula. "Ela já trabalhava desde os 14 anos. Dizia que os livros foram o estudo que ela teve. Em meio a esse cotidiano sofrido e de poucas possibilidades, tinha o cinema, que era esse espaço de viver outras histórias, conhecer outros lugares", conta a autora.
Quando recebeu o texto, a ilustradora Lumina Pirilampus, que nasceu em São José dos Campos, interior de São Paulo, reconheceu as próprias mulheres de sua família e também as barreiras e preconceitos enfrentados por elas. “Minha mãe me falou sobre o uso das saias e vestidos, de não haver fotos de mulheres da época da minha avó aparecendo descontraídas usando calça. É um detalhe mínimo, mas diz tanto! O uso da calça como algo vulgar perante o olhar masculino”, conta.
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Capa de Minha vó ia ao cinema, com ilustrações de Lumina Pirilampus
Arte e cumplicidade feminina marcam memória de infância
As ilustrações criam uma atmosfera saudosista e intensa, com as cores quentes do chão de terra contrastando com o céu azul e lilás. Lumina costura de maneira sensível uma história em paralelo ao texto. "Neste livro, uma palavra foi chamando outra. Pensei em “cinema”, “preto-e-branco”, “colorido”. Logo, uma narrativa paralela de pássaros preto-e-branco que moravam no cinema da cidade foi se formando. Eles seriam os curiosos que bisbilhotam as cenas e que buscam semear novos olhares". O cinema, além de ponto central da narrativa, nos revela também um pouco dos sonhos e aspirações das mulheres daquela época, que se inspiravam em atrizes como Grace Kelly e Ingrid Bergman.
Mas essa não é a única referência artística. Lumina cria uma nova versão da obra Operários, pintada por Tarsila do Amaral em 1933, ícone Modernista, mas dessa vez retratando apenas mulheres. Além disso, a personagem principal, além de ir ao cinema sozinha, lia escondida na tecelagem, contando com a cobertura das amigas. A mensagem é clara: mesmo em um tempo em que meninas não podiam fazer muita coisa, a cumplicidade feminina e a arte eram capazes de ser refúgio e de catalisar pequenas (grandes) revoluções.
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Confira a entrevista completa com as autoras
Como surgiu a ideia de escrever essa história e como ela se conecta com sua vivência pessoal?
Paula Marconi de Lima - Eu escrevi o texto que veio a ser o livro no início de 2021, dois meses depois que minha avó paterna faleceu. Ela teve Covid, tinha 90 anos e não resistiu. Foi um momento de processos intensos, em que eu acessei muitas memórias. Dessas relembranças, emergiu o que veio a ser o título do livro: Minha vó ia ao cinema. Fiquei um bom tempo com isso na cabeça, repetindo pra mim mesma em silêncio. Foi como “ver” esse fato da vida da minha avó sob uma nova luz, por uma perspectiva diferente, quase como uma novidade, apesar de eu ter crescido ouvindo essa história. Depois de um tempo sendo visitada por essa imagem, senti que precisava escrever e desenvolvê-la. Quando terminei, achei que poderia ser um livro.
Vanda, avó paterna da autora Paula Marconi, é a protagonista desta história, e viveu no interior de São Paulo entre 1930 e 2021. Além do trabalho na fábrica de tecelagem, ela puxava a corda do sino da igreja e corria pra se esconder, riscava amarelinha e jogava bolinha de gude
Quais eram suas paisagens de infância?
Paula - Primeiro, tem a rua da casa onde eu morei quando era criança, em um bairro chamado Jardim Paraíso (Votorantim). Tinha casas de um lado e, do outro, uma fila de árvores de flor cor-de-rosa, que começava quase na igreja matriz e seguia até o fim da rua, passando bem em frente à minha casa - foi onde aprendi a andar de bicicleta com o meu pai. Em junho, essa paisagem era complementada pela festa junina, em uma praça grande. Dava pra ir a pé, tinha parque de diversão. Eu via as luzes pela janela da sala à noite, ouvia o barulho da música quando deitava pra dormir e a família inteira se reunia pra ver os fogos, à meia-noite, no último dia.
Eu frequentava muito a casa da minha avó materna, que fica na Chave, um dos primeiros bairros de Votorantim, que nasceu como uma vila operária da fábrica de tecido, e a minha tia mora lá até hoje. Na infância, a minha avó paterna (que é a do livro) morava lá também. Quando eu era pequena, as casas ainda eram todas de tijolinho aparente, uma do lado da outra. E ali perto ainda existe uma fábrica de tecido, no mesmo lugar da antiga. Mas o cinema não existe mais.
A família da minha mãe é bem grande. Todo domingo, a gente se reunia na casa da minha avó para um café da tarde. Era sagrado. Para as crianças, era dia de ver os primos e brincar. Até a minha avó (materna) morrer, em 2017, esse café acontecia, mesmo que com menos gente. E, também em junho, tinha uma festa junina lá, que começou com uma promessa do pai dela e seguiu até uns dez anos atrás. Tinha uma reza bem longa, todo mundo acompanhava em silêncio na sala, enquanto uma tia-avó fazia a oração.
Outra paisagem é a do sítio da família do meu pai, para onde a gente ia muito nos fins de semana, nos feriados e nas férias. A gente colhia e comia fruta no pé, em um pomar enorme. Tinha um parque grande e colorido no gramado em frente à casa, eu balançava horas ali. Tinha vaca que dava leite, galinha, cavalo.
Essas experiências todas eram muito diferentes daquelas das crianças que iam para a escola comigo, porque eu morava em Votorantim, mas estudava em Sorocaba. (Paula Marconi, escritora)
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O livro retrata como a experiência social e cultural das mulheres era limitada pelo trabalho. Qual a importância de mostrar essa realidade para as crianças de hoje?
Paula - É importante mostrar uma realidade diferente da que muitas crianças vivem hoje, mesmo as do interior. A questão do trabalho infantil em fábricas como algo aceitável, o crescimento da cidade, o cinema (e não a TV ou o celular) como lazer e janela para o mundo, as distâncias percorridas a pé.
É legal que as crianças pensem sobre a vida de suas avós ou mães antes de serem definidas como avós ou mães, para que vislumbrem que havia coisas que gostavam de fazer, sonhos, medos, dificuldades, amigos. As mulheres não são (nem devem ser) definidas apenas pelo cuidado com crianças ou outras pessoas, mesmo as que viveram no passado. (Paula Marconi de Lima, autora)
Também é importante trazer a possibilidade de refletir sobre a falta de liberdade das meninas e mulheres ao longo do tempo; para que questionem por que ainda há quem considera que meninos e meninas podem ou não podem determinadas coisas por conta do gênero – especialmente depois de tudo que aconteceu nos últimos quatro anos.
Como era a sua avó Vanda?
Paula - Ela nasceu em 1930, era a caçula de nove irmãos. Os pais dela, meus bisavós, eram italianos. Era uma família pobre, mas que sempre teve casa e comida. Como era a mais novinha, mesmo sendo menina, teve um pouco mais de liberdade. As irmãs mais velhas já trabalhavam, algumas eram casadas, e ela tinha sobrinhos da mesma idade que ela.Contava que brincava de tudo, que não encarava as brincadeiras como de menina ou menino – talvez por isso fosse considerada uma menina “levada”. Nos cabelos lisos, ela tentava fazer trancinhas para cachear, mas não conseguia. Ela se divertia muito mais, mas cresceu se sentindo um patinho feio.
Na adolescência tinha um grupo de amigas, e sempre contava o quanto elas eram lindas, tinham roupas e cabelos bonitos, e ela não. Falava das amigas como se fossem as próprias atrizes dos filmes que via no cinema. Minha avó parou de estudar no Fundamental II, mas essas amigas continuaram na escola. Ela sempre falava o quanto sonhava em estudar, aprender mais. Mas não aconteceu. Com 24 anos, ela se casou e parou de trabalhar fora. Teve quatro filhos e a vida dela passou a ser mais doméstica e menos autônoma. Ela amava passear, conversar, viajar. Gostava de movimento e novidade. Ela era a minha avó, minha madrinha e uma pessoa doce e amorosa. Tinha uma sensibilidade com a natureza, sempre cuidava de plantas e flores, plantava e mexia na terra.
O que narrar as vivências dela significa pra você, como neta em um processo tão sensível de elaboração de luto, e como escritora?
Paula - Como neta, narrar essa história foi uma maneira de consolidar a história dela com as minhas palavras, de um jeito não linear, em que as estruturas se repetem e retomam o que já foi dito, que também era como ela contava. Foi um momento em que eu retomei a minha infância em geral – o que marcou a maneira como eu cresci e me fez ser quem eu sou. Um processo de luto mesmo.
Como escritora… bem, acho que vale dizer que “ser escritora” é ainda algo muito novo e recente pra mim. Então, em segundo lugar, eu fico muito feliz que o meu primeiro livro seja sobre essa história tão pessoal e tão cara. Tem sido muito legal ouvir relatos de memórias semelhantes de pessoas que já leram. Algumas pessoas, e não só mulheres, já falaram que a história fez lembrar da mãe, da avó, de uma tia que também trabalhava em fábrica, da cidade que também tinha cinema e trem.
A antiga fábrica de tecelagem e as ruas de Votorantim, nos dias de hoje, cenário onde se passa o livro
Como foi a pesquisa das referências culturais do período retratado no livro? O modernismo, a cultura em geral, o cinema...
Paula - Começou com o meu trabalho de conclusão de curso, na ECA (Escola de Comunicação e Artes da USP), quando eu defini que queria fazer uma espécie de livro-reportagem com perfis de mulheres mais ou menos contemporâneas à minha avó que viveram em Votorantim. A pesquisa histórica e cultural começou aí: o movimento operário, as greves, a relação com a indústria têxtil e a formação da cidade a partir de uma fábrica de tecido.
O cinema, nesse contexto, tinha a ver com os donos da fábrica "oferecerem" uma opção de lazer para os operários, assim como foi com o campo e o time de futebol, além da creche, que "facilitava", entre muitas aspas, o trabalho das mulheres. (Paula Marconi, escritora)
Depois, meu mestrado em Letras foi sobre as poesias de Minas, do Oswald de Andrade, então eu pesquisei bastante sobre essa justaposição entre a modernidade e o atraso no Brasil no início do século XX, o que aparece muito claramente na formação da cidade e também no livro. E também fui buscar, nos livros que eu li na adolescência, as amigas-personagens da literatura brasileira, que eu queria que fossem meninas.
Imaginando a sua avó leitora, o que acha que ela diria e sentiria ao ler essa história?
Paula - Acho que ela nem conseguiria dizer nada, mas com certeza ia chorar e se emocionar.
Leia na íntegra a entrevista com a artista visual Lumina Pirilampus
Assim como a protagonista do livro, você também é uma mulher do interior paulista. Com muitas décadas de diferença da menina do livro, quais eram suas paisagens de infância nos anos 1990, e como as mulheres apareciam nelas?
Lumina Pirilampus - Nasci em 1994, em São José dos Campos, uma cidade que fica a cerca de uma hora de distância, tanto de São Paulo capital, quanto do litoral, ou seja, era considerada rota de passagem no cenário da modernização brasileira. Onde eu vivia, as ruas já eram asfaltadas, mas havia muitos terrenos baldios. Meus pais usavam alguns desses terrenos, com autorização dos donos, para criar galinhas, fazer horta e cultivar árvores frutíferas. E então dividiam com alguns vizinhos ovos, acerolas, couve, chuchu. A imagem que guardo é muito cinza, das casas e construções, do cimento, do tijolo; muito pó e terra, os tons marrons e avermelhados, mas com o verde das coisas florescendo.
Os cenários da própria infância, no Vale do Paraíba, também foram inspiração para Lumina Pirilampus, em Minha vó ia ao cinema. Na imagem, a avó da ilustradora, e a estrada de ferro que ligava Pindamonhangaba a São José dos Campos
A história contada no livro também se conecta com sua vivência pessoal, de neta, de filha, de criança no interior paulista?
Lumina - Minha família por parte de mãe vem toda da zona rural de Pindamonhangaba, também no interior paulista. Meu avô cuidava das terras de um outro dono, a função dele era manter o sítio funcionando. Enquanto isso, os filhos homens trabalhavam na manutenção da estrada de ferro que ligava Pindamonhangaba a Campos do Jordão. Já as mulheres trabalhavam tricotando e crochetando artigos de frio para as lojas da região.
A família por parte de pai veio do Paraná, e fundou em São José dos Campos um ferro-velho que funciona até hoje. Ali chegava toda sorte de coisas desde que se enquadrasse nas categorias “papel, metal ou plástico”, então víamos muitos livros sendo despejados por conta de renovação de acervos de bibliotecas públicas, trabalhos escolares, brinquedos faltando partes e que podiam ser consertados, motor de todo tipo de coisa, televisões, geladeira, até carcaça de avião. É um trabalho bastante puxado, porque muito do que chegava se confundia com lixo. E demandava muito corpo do trabalhador para garimpar o que poderia ser reaproveitado.
Como foram as pesquisas para compor as ilustrações? Pode contar o que são as tais caixinhas de fotografia e as outras avós citadas na sua minibio no livro?
Lumina - Quando recebi o texto e li pela primeira vez, eu vi minha mãe, minha avó e todas as mulheres sobre as quais elas me contavam e que viveram com elas durante a infância, a adolescência e toda juventude. Então busquei na casa da minha mãe fotografias dessas mulheres, de paisagens que elas viveram, como fotos da casa no sítio, fotos da estrada de ferro. E fui encontrando outras mulheres que pudessem também ter registros desse tempo e lugares. Primeiro, me debrucei sobre uma leitura muito pessoal que fiz do texto da Paula. Depois, tive a sorte de ver a pesquisa dela sobre a tecelagem em Votorantim, as fotos mais urbanas, as mulheres com outras vivências dentro da cidade em transformação. Era importante ver como as mulheres que vivenciaram os anos 1945/1950 enxergavam e retratavam suas vivências, e não importar um olhar masculino.
Como é pra você narrar essa história de outros tempos, em que parecia haver mais tempo, mas também havia menos de tantas outras coisas?
Lumina - Confesso que de primeira achei o texto difícil de ser ilustrado, mas ao longo da feitura, conversas com a equipe, com a Paula, tudo foi ficando mais fluido. Entendi como uma grande oportunidade de falar de forma muito sincera sobre nossas histórias. Um dos maiores desafios foi não romantizar uma realidade e ocultar as dores por trás dela, como a falta de direitos. Ainda vivenciamos isso, né? O próprio fato de meninas tão pequenas já serem trabalhadoras. Uma violação total de direitos humanos. Ou terem acesso restrito à educação, que antes era mais voltada aos homens.
As lembranças com Dona Isabel e Zé Mineiro, avós maternos de Lumina Pirilampus, ajudaram a compor as imagens de Minha vó ia ao cinema, escrito por Paula Marconi de Lima
Suas pesquisas no livro ilustrado passam por processos de artesania, que trazem um fazer manual, minucioso.
Lumina - A pesquisa para ilustrar o livro foi ao mesmo tempo bonita – quando colhia as histórias, sempre tão familiares, mesmo quando não eram minhas – e frustrante, por ver tanta injustiça que as mulheres vivenciaram de forma brutal. O sonho da minha avó materna era ter uma loja, vender as próprias roupas que ela tricotava. Mas o fato de ser mãe de dez filhos, e de ter uma responsabilidade herdada do sistema patriarcal, minou as possibilidades que ela tanto almejava. Ela quis muito sair da zona rural e viver mais perto de centros culturais, mas só foi viver um pouco disso no fim da vida. Já minha mãe estudou até a quarta série, se manteve assim até os 40 anos, quando voltou para a escola e cursou até a oitava série. Desistiu de continuar porque sentia que não era uma vontade legítima se dedicar a um direito e prazer pessoal, quando se tem uma família em casa.
Quando minha mãe recebeu este livro impresso, chorou imenso. Foi ela quem me ensinou noções básicas de corte e costura, me incentivou a desenhar, a escrever e me expressar sempre que tivesse vontade. A buscar minha independência. (Lumina Pirilampus, ilustradora)
Quis trazer isso para os processos da ilustração, brincar com a trama de algodão cru que desfia, para transmitir a ideia de pequenas revoluções dentro de um sistema opressor que desencadeiam mudanças históricas.
Pode contar sobre suas técnicas de criação, como o "binômio fantástico", que aprendeu lendo o Gianni Rodari?
Lumina - O "binômio fantástico" é uma técnica de criação que brinca com dois conceitos sem uma lógica aparente entre si, para inventar histórias inusitadas a partir deles, buscando novos sentidos e fantasias. Por exemplo, “cachorro” e “armário”, o que um pode ter de relação com o outro? Um cachorro que mora no armário, ou um armário em forma de cachorro, um cachorro em cima do armário, um armário nas costas de um cachorro? Essa técnica me ajuda a elencar palavras-chave dentro de um texto e pensar em histórias simultâneas através da imagem, que possam acontecer junto da narrativa verbal. Neste livro, uma palavra foi chamando outra. Pensei em “cinema”, “preto-e-branco”, “colorido”. Logo, uma narrativa paralela de pássaros preto-e-branco que moravam no cinema da cidade foi se formando. Então, eles seriam os curiosos que bisbilhotam as cenas e que buscam semear novos olhares.
Na narrativa visual, os pássaros preto-e-branco atiçam os pássaros-coloridos-presos a des(a)fiarem as tramas em que estão presos. Essa era uma forma de mostrar o que o cinema e a literatura fazem comigo, sempre que vejo, escuto ou leio algo que me emociona, eu me transformo. (Lumina Pirilampus, ilustradora)
Fui pesquisar a tecelagem de Votorantim e a matéria-prima era algodão. Então, pensei em algodão e relacionei a forma e textura dele com nuvens, como se a feitura de um tecido pudesse ser de nuvens. São pequenas poesias aleatórias que vão surgindo desse processo e que podem ser lidas de inúmeras maneiras, sem obrigatoriedade alguma. Eu gosto quando a imagem faz brincar nosso olhar e reverbera qualquer coisa sem nome na continuidade da nossa vida.
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