‘Os pombos’ e ‘Loba’ estão no catálogo White Ravens 2024

16/10/2024

Entre os três livros brasileiros selecionados para a edição 2024 do prestigiado catálogo White Ravens, dois são de selos da Companhia das Letras. Estamos falando de Os pombos (Companhia das Letrinhas, 2023), de Blandina Franco e José Carlos Lollo, e Loba (Pequena Zahar, 2023), de Roberta Malta e Paula Schiavon. Duas obras que abordam temáticas bem distintas - nosso olhar para a invisibilização da pobreza e novas perspesctivas sobre o feminino, respectivamente - mas que compartilham a construção de narrativas tocantes e sensíveis, em que texto e imagem, juntos, conferem novas camadas de sentido à experiência do leitor. A edição de 2024 do catálogo White Raves reúne 216 obras, publicadas em 44 línguas em 62 países.  

Ilustração de Loba'

Em 'Loba' (Pequena Zahar, 2023), a floresta ganha um novo significado, representando a liberdade não o medo

Em Os pombos, a narrativa se constrói a partir de uma metáfora certeira: pessoas em situação de vulnerabilidade são retratadas com grandes cabeças de pombos. O leitor é confrontado com seu próprio olhar sobre a pobreza, já que assim como esses animais, as pessoas que ocupam as ruas são marginalizadas, depreciadas, consideradas sujas e inconvenientes. Ninguém quer os pombos por perto - ainda assim, eles estão por toda parte. As elaboradas ilustrações em aquarela e pena trazem certa poesia à dureza da reflexão que o livro desperta. A inspiração para o projeto surgiu do encontro entre os autores e o Padre Júlio Lancellotti, que se dedica ao auxílio de pessoas em situação de vulnerabilidade na paróquia São Miguel, em São Paulo, capital. 

Loba parte de uma releitura do clássico Chapeuzinho Vermelho para ressignificar o feminino na fusão da menina com sua loba, em uma alegoria do próprio crescimento. A floresta, retratada como local de mistério e perigo nos contos de fadas, sobretudo nas histórias assinadas pelos irmãos Grimm, nesta obra é lugar de liberdade, experiência, pulsão. Já a casa, em vez de oferecer proteção, parece pequena demais para a menina...  No lugar de ser tolida pelo medo e pelos padrões impostos à feminilidade, ela se arrisca e se encontra nela mesma - ou seria a loba que se encontra na mulher? O projeto é fruto de uma rica pesquisa sobre os arquétipos femininos e suas aparições nos contos clássicos e fruto de uma genuína colaboração entre mulheres. 

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A literatura que amplia fronteiras

 A seleção do catálogo White Ravens é feita a partir da análise de milhares de livros doados todos os anos à International Youth Library, uma biblioteca de Munique, Alemanha, especializada em livros infantis e infantojuvenis.O catálogo é publicado anualmente reunindo as mais notáveis obras infantis e infantojuvenis selecionadas por 20 experts em literatura, levando em conta a alta qualidade literária e das ilustrações. A ideia é que a publicação não seja apenas um reconhecimento do valor das obras, mas uma ferramenta para conhecer a produção literária mundial “olhando além das fronteiras nacionais”. 

Ilustração de 'Os pombos'

Os indesejáveis pombos que povoam as ruas - e reviram o lixo em 'Os pombos' (Companhia das Letrinhas, 2024)

Para Blandina e Lollo, ter obras brasileiras em um catálogo tão relevante aumenta a visibilidade não só das histórias contadas nos livros mas de todo o trabalho dos autores e da editora. “Ter autores brasileiros presentes no catálogo é importante porque atrai os olhares para o que é produzido no país, mostra que aqui temos bons autores e isso aumenta a curiosidade dos editores e leitores de outros países”, comentam. 

Para Roberta, a possibilidade de ver Loba circular em um catálogo de alcance internacional pode “ampliar o debate e as linguagens estéticas em torno da experiência de ser menina e mulher”. Ela ressalta que o Brasil tem uma produção "admirável, relevante e muito criativa de literatura infantil", e que há muitos livros que mereciam estar nessa lista. “Quando algum livro chega em um catálogo como o White Ravens, sinto que é hora de se dedicar para aproveitar a oportunidade e conseguir de fato circular em territórios internacionais. Um livro puxa o outro. Que mais livros de autoria brasileira possam ser conhecidos e tenham suas circulações ampliadas”. 

Uma história a serviço de uma causa

Capa de 'Os pombos' (Companhia das Letrinhas, 2023)

Capa de 'Os pombos' (Companhia das Letrinhas, 2023)

Colocar a pobreza em pauta, chamando a atenção para o preconceito e a invisibilização de pessoas vulneráveis foi a semente que deu origem a Os pombos. “A literatura ajuda a gente a entender o mundo e entendendo, a encontrar nosso lugar nele. Isso traz muita responsabilidade para nós, autores, porque não basta só dizer o que precisa ser dito, temos que fazer a criança gostar e entender. E já que a leitura será sempre um dos meios principais de aprender e refletir, talvez a responsabilidade maior seja a de fazer a criança gostar de ler”, refletem os autores.

Desde o início, Os pombos foi concebido como um livro ilustrado, em que texto e imagem nascem juntos. Para Blandina e Lollo,  a mágica do livro está no fato de que "sem perceber, o leitor vai o tempo todo imaginando os rostos que ele não vê nos desenhos. E se dá conta de que faz isso na vida real também. Talvez seja isso que toque os leitores.” Da parceria com o padre Júlio Lancellotti surgiu também um outro livro, Aporofobia (Companhias das Letrinhas, 2023), publicado pela Coleção Canoa, que oferece literatura de qualidade com valores acessíveis. 

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Feminino e feminismos para inspirar meninas

 

Capa de 'Loba' (Pequena Zahar, 2023)

Capa de 'Loba' (Pequena Zahar, 2023)


Na descrição de Loba, no catálogo White Ravens, o texto chama atenção para o fato de o livro ter apenas oito frases “e Roberta Malta não precisa mais para capturar a essência da história em palavras”. E o texto segue: “O principal o papel é desempenhado pelas luminosas, arejadas e serenas ilustrações em aquarela, que capturam muito bem os sentimentos e experiências de felicidade, saudade e liberdade”.

Roberta e Paula se conheceram por meio de Dani Gutfreund, da biblioteca Lugar de Ler, que acompanhou as autoras durante a pesquisa e o projeto do livro. Apesar das trocas entre as três terem sido fundamentais, Paula conta que precisou também de certo afastamento para produzir as imagens e encontrar seu lugar em Loba. “Assim como a escrita, a narrativa imagética também exige um silêncio e uma solidão para a sua construção. E isso também exige, para quem escreve, que deposite muita confiança no trabalho de quem vai ilustrar. O que demanda um pouco de desapego também, porque o livro vai mudando e criando outros contornos no seu caminhar”, conta a ilustradora.

Roberta ressalta que o projeto de Loba foi pensado desde o início como um livro ilustrado, em que texto e imagem, juntos, compõem a narrativa. “Não pensei em um texto com início, meio e fim, que depois receberia a leitura e a intervenção de uma pessoa ilustradora. Fiz um planejamento de texto e imagem, página a página, como uma espécie de roteiro do projeto, pois mesmo tendo só palavras como matéria criativa, a pessoa que escreve pode visualizar e propor imagens”, conta. Para ela, esse processo é o que torna possível aprofundar as dinâmicas de linguagem que o livro ilustrado oferece. “Quando um livro ilustrado é feito em parceria, as fronteiras entre o papel de quem escreve e quem ilustra não precisam ser rígidas”, conclui.

 

Eu posso ter construído uma estrutura, mas o trabalho da Paula chegou a lugares de beleza que eu não poderia imaginar. A cada imagem que ela criava, o trabalho com o texto também era convidado a se reinventar, e ela participava ativamente das escolhas do texto e seus silêncios. Essa parceria também é um dos fatores imprescindíveis: nós realmente fizemos juntas esse livro, Roberta Malta

 

(Texto: Naíma Saleh)

 

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