Entre irmãos: por que os pais são os mesmos mas agem diferente com cada filho

12/11/2024

Dois irmãos gêmeos com personalidades opostas. Onde um enxerga aventura, o outro só vê drama.  Enquanto um se diverte com a criatividade do caos, o outro quer tudo arrumadinho. Assim são os personagens protagonistas de Vejamos (Brinque-Book, 2024), de Otávio Júnior com ilustrações de Caio Zero. O livro brinca com o contraste intenso entre os pontos de vista de dois garotos, que além de serem irmãos, são gêmeos e não poderiam ser mais diferentes. Mas acabam sendo complementares. Não há um certo e um errado, apenas percepções diferentes de mundo, que nos fazem refletir sobre quantos elementos fazem parte da subjetividade de cada pessoa - mesmo que à primeira vista, possa parecer tudo igual.

Ilustração do livro 'Vejamos'

Mas como pode dois irmãos serem como água e vinho se nasceram praticamente ao mesmo tempo, da mesma barriga, e foram criados na mesma família, pelo mesmo pai e pela mesma mãe?

É que cada filho transforma por completo a família inteira. Dizem que quando nasce um bebê, nasce uma mãe e nasce um pai. Mas quando nasce um segundo bebê (ou um terceiro ou um quarto…), nasce um outro pai e uma outra mãe. Isso talvez seja uma parte do motivo pelo qual uma criança pode ser totalmente diferente de outra, ainda que elas tenham nascido na mesma casa, tenham tido as mesmas condições e tenham sido criadas pelo mesmo pai e pela mesma mãe ou pelos mesmo cuidadores. É que, no fundo, nem a casa, nem as condições, nem os pais são mais os mesmos. E mesmo com filhos gêmeos, que nascem juntos, cada um oferece desafios e experiências diferentes aos pais - que também respondem de forma diferente a cada um.

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Capa de Vejamos (Brinque-Book, 2024)

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Cada filho tem um pai e uma mãe só seus - mesmo que tenha irmãos

 Quando nasce um irmão, nascem também novos pais

Em Minúscula (Brinque-Book, 2024), de Fran Matsumoto, a personagem lida com a chegada de uma irmã - que ela não achou que seria do jeito que é

Para a psicóloga e psicanalista Gabriela Vargas, da Clínica Corpo Inconsciente (SP), não tem como ser um pai ou uma mãe igual para todos os filhos. “Mesmo quando criados no mesmo ambiente, com as mesmas oportunidades, as personalidades são diferentes”, afirma. “Segundo Winnicott, essas diferenças vão muito além da genética, pois cada criança se encaixa de maneira diversa na fantasia dos pais, o que se relaciona diretamente com o seu desenvolvimento emocional”, acrescenta, citando o pediatra e psicanalista inglês Donald Wood Winnicott (1876-1971). Ele se tornou popular entre as décadas de 1950 e 1960 por desenvolver o conceito de "mãe suficientemente boa" - ou seja, aquela que não precisa ser perfeita, mas deve seguir seus instintos na criação dos filhos dentro do que estiver em seu alcance.

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Em uma primeira gravidez, os pais nunca viveram aquela experiência – o que faz toda a diferença na maneira como vão tratar aquele bebê, nos erros e acertos que terão, no tempo que dedicarão aos cuidados, nas prioridades. Na segunda vez, a história é outra. Na terceira, outra – e assim por diante. Nas gestações subsequentes, lembra a especialista, algumas situações, medos e angústias se tornam mais administráveis. “Isso pode proporcionar, por exemplo, que a criança explore o mundo com mais liberdade. Porém, em alguns casos, ela pode sentir um desamparo maior, de acordo com as vivências e a forma como a criação é conduzida”, explica. Também vale lembrar que novos medos e novos desafios virão: como, por exemplo, dividir o tempo e a atenção não só para uma criança, mas para duas, três ou quatro? Como mediar o relacionamento e os conflitos entre os filhos? 

Mas não é só a ordem de nascimento que influencia. O momento que os pais vivem também leva a diferenças. “Estão passando por dificuldades financeiras? Foi um filho desejado? Os pais têm uma boa relação? Não faziam terapia e agora fazem? Foram pais de primeira viagem muito novos e, agora, anos se passaram e estão mais maduros? São muitas variáveis", destaca Gabriela.

 

Quando cada filho nasce, nascem os pais desse filho e um novo tempo, que precisa de calma, paciência e carinho de todos os integrantes da família. Também nascem irmãos desse novo membro que chega. E todos precisam aprender a viver essa nova vida”, Gabriela Vargas, psicóloga

Nasce um irmão mais velho

Em Minúscula (Brinque-Book, 2024), Fran Matsumoto conta a história de uma garotinha que esperava, ansiosamente, pela chegada de sua nova irmãzinha. Ela idealizou um mundo de brincadeiras e aventuras, em que contaria com uma companheira especial. Só que... quando a bebê “apareceu” em casa, ela viu que não era nada daquilo. Ela era muito pequena. Minúscula. Não conseguia fazer nada, não sabia falar e nem brincar. Será que dava para devolver? No livro, a personagem vai aos poucos compreendendo a nova configuração familiar e aprendendo a prestar atenção no que importa de verdade. 

Minúscula (Brinque-Book), Fran Matsumoto

Minúscula (Brinque-Book), de Fran Matsumoto

É assim, também, que todos precisam encarar a chegada de novos membros da família. Não só as crianças, mas o pai e a mãe também idealizam esse filho e criam expectativas sobre ele. A realidade, porém, se impõe de outras formas. E aí é preciso enxergar, compreender e aprender a conviver e a amar não o que se imaginou ou desejou – mas o que cada filho é. “Um filho real traz o luto do filho imaginado. E isso não quer dizer, de forma alguma, que esse filho não é amado. Se os pais conseguem elaborar esse luto do que imaginaram para o filho e aceitar a forma como o filho real se apresenta, com suas ambivalências, preferencias e desejos próprios, isso mostra a criança e ao adolescente que sua individualidade é respeitada”, explica a psicóloga. 

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Filho favorito: isso existe?

Se um irmão é diferente do outro e os pais se transformam a cada nascimento, é possível que esses adultos tenham maior identificação com um filho e menos com outro? O que acontece, de acordo com a psicóloga, é que cada filho tem necessidades diferentes de atenção, cuidado e proteção. Um pode precisar de mais assistência na escola, outro pode tirar os estudos de letra, mas sentir dificuldade na socialização, e assim por diante. Observar e atender às necessidades de cada criança de um jeito é diferente de preferir. Apesar disso, ela revela: “Pesquisas apontam que o favoritismo por um dos filhos está presente na maioria das famílias, em contextos e culturas variadas”.

Ilustração do livro Vejamos (Brinque-Book, 2024)

Irmãos podem ser muito diferentes: mas é preciso cuidado para não comparar ou estigmatizar - ilustração de Vejamos (Brinque-Book, 2024)

Como qualquer ser humano, é comum que um pai se identifique mais com um filho do que com outro – e isso pode e provavelmente vai mudando e se alternando com o tempo, conforme diferentes fases da vida acontecem. Porém, é importante cuidar para que isso não afete a relação com as crianças, não gere injustiças no tratamento e não leve a um sentimento de exclusão, que pode contribuir para quadros como ansiedade, depressão e transtornos alimentares, entre outros. 

O mais importante é que os filhos saibam que são amados e que suas individualidades são respeitadas. “Pais que conseguem sustentar a diferença e a alteridade e demonstram que amam os seus filhos pelo que eles são, mesmo que muito diferentes deles próprios, contribuem para a construção de uma boa autoestima e um senso de pertencimento”, afirma Gabriela. 

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Outro cuidado essencial é o de riscar as comparações entre irmãos da vida da família, já que isso só estimula competição. Cada um tem seu próprio caminho e um jeito único de fazer as coisas. É preciso estimular que um ajude o outro no que for necessário e possível – e não esperar que um seja melhor do que o outro. 

“Somos o primeiro espelho dos nossos filhos. Eles se veem, primeiramente, através dos nossos olhos. Nós estamos os enxergando na sua individualidade? Se eles se sentirem vistos e escutados, saberão a importância do espaço de cada um e da atenção. Se as suas necessidades e a sua singularidade forem respeitadas desde a mais tenra idade, provavelmente eles replicarão isso na sua vida e respeitarão o espaço dos irmãos e dos outros membros da família, conforme tenham capacidade de compreender isso”, completa a psicóloga. E, provavelmente, conforme crescem, esses filhos também enxergarão os pais, em suas individualidades e diferentes fases. Diferentes, talvez, do que eles também idealizaram - mas reais.

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