1. CARTOLA Noite de lua assombrosa entre nuvens escabeladas. Sobre colossal muralha, Professor Fumegas entrevista a Deusa Terrível. (FUMEGAS) - Dizei-me, ó Divina, quais os Mistérios da Babilônia? (DEUSA) - Minhas tetas. (FUMEGAS) - Vossas tetas?... (DEUSA) - ...divinas. As Mangas da Mesopotâmia. (FUMEGAS) - Vossas tetas as mangas... (DEUSA) - ...divinas. Chovem tetas... Chovem mangas... (FUMEGAS) Chuva de mangas divinas... (DEUSA) - ...para os Iniciados: os Mistérios da Babilônia. (FUMEGAS) - Os jornais todavia nada noticiam. (DEUSA) - Ninguém vê a divina chuva de mangas. Só os Iniciados. (FUMEGAS, de joelhos) - Chovei, chovei um poucochito, ó Deusa... (DEUSA) - Pra ti, velho seboso? Ah Ah Ah Ah!!!... A Deusa desaparece numa explosão de orquídeas. Fumegas, baforando aromáticas volutas que se evolam do cachimbo de âmbar, desce pela corda, meditativo, e entra no táxi preto de Seu Cafunga. Louca disparada pelas dunas. Chegam à margem do Eufrates. Fumegas, de cachecol esvoaçante, salta no hidroavião de Sandro Ciclone. Ao ombro do piloto, agita-se o papagaio. (FUMEGAS) - Os dados foram lançados. Agora, Sandro, acione os motores, e voar, voar, rumo à Holanda. (PAPAGAIO) - Volare... Volare... (SANDRO) - Cantare... Cantare... Theatro Morfeo na penumbra: Lotrak, solene, de fraque, sabe tirar colossais tartarugas da cartola, e as deixa cair, com distinto sorriso e supina elegância, na cabeça de dramaturgos, na primeira fila, e sabe também arremessá-las até o balcão nobre. Com pontaria infalível. Já matou alguns famosos, e Ésquilo não lhe escapou. Esboça-se um movimento de reação entre os dramaturgos, que todavia seguem um tanto desunidos, em meio a pendengas e proverbiais ciumeiras de uns com os outros, espicaçadas pela severa seleção com que o maquiavélico Mago escolhe seus alvos. Mas a tensão vai crescendo, e Lotrak, preocupado, entra no camarim e abre a tampa do sarcófago da Múmia Princesa, sua principal atração nos espetáculos do draculesco Theatro: (LOTRAK, com respeitosa reverência) - Salve, Princesa! (MÚMIA) - Quando te escapas, Lotrak? (LOTRAK) - Já deveria ter fugido, mas não posso abandonar-te, os diretores do Theatro, vis vendilhões, acabariam te rifando a um museu mexicano... (MÚMIA, sarcástica) - ...ou à farmácia de Bruxelas. (LOTRAK) - Tua beleza divina não escaparia ao olhar refinado de Schliemann. (MÚMIA) - Schliemann gosta de trabalhar em escavações, em Tróia, em Creta, mas não em leilões de bugigangas de circo. (LOTRAK, desesperado) - Que faço, Princesa?... (Morcegos esvoaçam no camarim em penumbra.) (MÚMIA) - Tranca-me bem no sarcófago e solta o sarcófago nas águas tenebrosas do rio subterrâneo dos esgotos. (LOTRAK) - Não ousaria... (MÚMIA) - O rio subterrâneo passa pelas catacumbas do Theatro, e em suas fétidas águas navega a barca fatal de Caronte... (LOTRAK, pálido) - A Barca do Inferno! (MÚMIA) - Barca terrível para as almas dos míseros defuntos... Mas não para mim. Não sou dessas almas esfarrapadas que se danam, sou o corpo divino. (LOTRAK, em transe) - Salve, Princesa! (Ouve-se o som, que vai aumentando, pouco a pouco, de um órgão sepulcral.) (MÚMIA) - Eu não sou a alma, eu sou o corpo, e o corpo é divino. Os vermes e as ratazanas ganham apenas a carcaça, meros ossos e pelancas. Mas o corpo é divino. A alma se esfacela, mas o corpo é divino. (Majestosa fuga de Bach. Ratazanas correm pelos cantos.) (LOTRAK, voz cava) - O que será de mim, sem tua proteção? (MÚMIA) - Cedo ou tarde nos encontraremos. Por ora, executa tua missão, lança-me ao rio. (LOTRAK, soturno) - Sim... a dolorosa missão será cumprida. Adeus, Princesa!... (Em vertiginoso crescendo, o órgão finalmente explode. Sulfurosa fumaceira envolve a cena.) Tanto barulho fizeram os jornais com os assassinatos em série que a Interpol acabou tendo de sair da habitual modorra e lançou uma caçada humana pelos cinco continentes e ilha Maurícia. Finalmente descobriram Lotrak encafuado dentro dum baú na mísera carrocinha onde habita a velha e hoje esmolambada La Goulue, outrora famosa dançarina de cancan do Moulin Rouge em Paris. Sic transit gloria mundi. Os policiais despacharam Lotrak acorrentado para a Holanda, onde os pacifistas fazem vociferantes passeatas, exigindo sua imediata libertação. Porém Dona Charlotte, jurista desassombrada, que comanda a Comissão Especial, enfrenta, de carranca fechada, os manifestantes. Mais impávida que Leônidas nas Termópilas, Dona Charlotte barra no peito a entrada do Palácio da Paz, guarda-chuva em riste: "Ousem lá, seus lafranhudos, ousem lá...". Os manifestantes às vezes insistem, e logo chovem as coruscantes guarda-chuvadas. Sabendo do interesse jurídico da questão, nossa Gazetta Preta despachou Professor Fumegas de Bagdad para a Holanda. Com seu cachimbo de porcelana, o Professor adaptou-se imediatamente à paisagem batava. Pois imaginem que no Palácio da Paz, em Haia, onde funciona a Corte, em vez de numa estátua, ou busto que fosse, do Ruy Barbosa, Professor Fumegas tropeçou no saguão de entrada num portentoso Prometeu Acorrentado, com a Águia de Júpiter roendo-lhe o fígado. Um monumento gigantesco, entupindo a porta, as pessoas precisando se espremer pra passar. Segundo o Professor Fumegas, trata-se de uma alegoria: o titan encadeado representa o Lotrak, contumaz caloteiro, que prometeu mas não cumpriu; e a Águia é certamente o Ruy. Eis porém que Doutor Barboff, filósofo engajado moscovita, resolve temerariamente discordar da tese de nosso consagrado observador internacional: (BARBOFF) - Minhas barbas, professor, se a águia é o Barbosa!... (FUMEGAS) - Ora, não falemos de futebol... Os demais jogadores da seleção se empaspalham e Barbosa entra de bode expiatório... Que seja então Barbosa o bode. Mas a águia é o Ruy. (BARBOFF) - Não seja inconveniente... A águia é Dona Charlotte, que está arrancando o fígado do Lotrak. É a Força do Direito Internacional contra a vigarice e o horrendo genocídio perpretado por esse sanguinário canastrão de guinhol. (FUMEGAS) - As tartarugas são resistentes, não morrem assim tão fácil. (BARBOFF) - Não me refiro às tartarugas, Professor! Estou pensando nos artistas sacrificados. Se o senhor não fosse tão alienado nas fumarolas bizantinas de seu cachimbo, perceberia que os atentados são sempre voltados para os dramaturgos da esquerda engajada. Felizmente Bertolt Brecht jamais entrou no sarnoso mafuá do Lotrak. (FUMEGAS) - Lorotas, Doutor Barboff! Hoje em dia, com exceção de Claudel e Nelson Rodrigues, todos os dramaturgos são da esquerda. E isso não é culpa do Lotrak. Estivesse aqui o Ruy a defendê-lo, e já estaria o titan dos palcos despojado de seus aviltantes grilhões. Como seria de se esperar, com o furioso interesse de jornais e televisão, Lotrak tornou-se famoso em Tóquio e Nova York, e já é hoje herói consagrado na mídia, fazendo videoclipes pra tevê, todo acorrentado, com olhar estóico, verdadeiro lobo de Vigny. Um estrondoso sucesso que lhe vem propiciando uma receita astronômica depositada na Suíça. Crescem, inexoravelmente, auês e manifas dos pacifistas diante das embaixadas das grandes potências e do Palácio da Paz. Tal situação vem preocupando as tartarugas. E alguns dramaturgos de mais altos coturnos.