1 Eram dois homens, deitados no meio do mato. - Você não está achando que vai me ensinar a fazer o meu trabalho, está? - sussurrou o primeiro. - Não estou achando nada - respondeu seu companheiro, um sujeito alto, de cabelo comprido e loiro, que se chamava Lawrence. Imóveis e de binóculo em punho, os dois observavam um casal de lobos. Eram dez horas da manhã, o sol lhes torrava as costas. - Este lobo é o Marcus - prosseguiu Lawrence. - Ele está de volta. O outro abanou a cabeça. Era um homem da região, baixo, moreno, meio teimoso. Fazia seis anos que ele vigiava os lobos do Mercantour. Chamava-se Jean. - É o Sibellius - murmurou ele. - O Sibellius é muito maior. Não tem esse tufo amarelo no pescoço. Perturbado, Jean Mercier reajustou o binóculo, deu-lhe mais uma lustradinha e examinou com atenção o lobo macho que, trezentos metros a leste de onde eles se escondiam, dava voltas no rochedo familiar, erguendo às vezes o focinho ao sopro do vento. Eles estavam perto, perto demais, seria muito melhor recuar, porém Lawrence queria filmar a todo custo. Para isso é que ele viera, para filmar os lobos e depois levar a reportagem para o Canadá. Mas, de uns seis meses para cá, ele vinha protelando sua volta com pretextos obscuros. Para ser bem sincero, o canadense estava era se abancando. Jean Mercier sabia o porquê. Lawrence Donald Johnstone, renomado especialista em ursos-cinzentos canadenses, tinha ficado de quatro por um punhado de lobos da Europa. E não se resolvia a dizê-lo. Aliás, o canadense falava o mínimo possível. - Voltou na primavera - murmurou Lawrence. - Formou família. Ela é que eu não estou situando. - É a Prosérpina - cochichou Jean Mercier -, a filha do Jano com a Juno, terceira geração. - Com o Marcus. - Com o Marcus - reconheceu Mercier finalmente. - E é certo que tem uns filhotes bem novinhos. - Bom. - Muito bom. - Quantos? - Cedo demais para dizer. Jean Mercier fez umas anotações num caderninho que trazia pendurado no cinto, bebeu do cantil e reassumiu sua posição sem que estalasse um só raminho. Lawrence largou o binóculo, enxugou o rosto. Puxou a câmera, enquadrou Marcus, disparou sorrindo. Passara quinze anos da sua vida com os ursos-cinzentos, os caribus e os lobos canadenses, percorrendo sozinho as imensas reservas, observando, anotando, filmando, por vezes estendendo a mão para os seus companheiros selvagens mais velhos. Não eram exatamente divertidos. Uma velha ursa-cinzenta, Joan, que vinha para ele, de fronte abaixada, para pedir um carinho. E Lawrence não tinha imaginado que aquela pobre Europa, apertada, devastada e domesticada pudesse ter alguma coisa decente para lhe oferecer. Aceitara aquela missão-reportagem no Maciço do Mercantour com muita hesitação, só para ver no que ia dar. E, no final das contas, estava se eternizando naquele recanto de montanha, adiando sua volta. Para ser claro, ele estava enrolando. Enrolando por causa dos lobos da Europa com seu pêlo cinzento e deplorável, parentes pobres e ofegantes dos claros e peludos animais do Ártico, merecedores, a seu ver, de toda a sua ternura. Enrolando por causa dos enxames de insetos, pelo suor escorrendo, o mato carbonizado, o calor crepitante das terras mediterrâneas. "E olhe que você ainda não viu nada", dizia-lhe Jean Mercier em tom meio sentencioso, com aquela expressão orgulhosa dos habituados, dos supertostados, dos sobreviventes da aventura solar. "Ainda estamos só em junho." Finalmente, estava enrolando por causa de Camille. Aqui, eles diziam "se abancar". "Não é uma crítica", dissera Jean Mercier, com certa gravidade, "mas é melhor você saber: você está se abancando." "Pois agora eu já sei", respondera Lawrence. Lawrence desligou a câmera, colocou-a com delicadeza na sacola, cobriu-a com um pano branco. O jovem Marcus acabava de desaparecer na direção do norte. - Foi-se embora caçar, antes do calor forte - comentou Jean. Lawrence borrifou o rosto, molhou o boné, bebeu uns dez goles. Caramba, esse sol. Nunca tinha visto um inferno igual àquele. - Três filhotes, no mínimo - murmurou Jean. - Estou torrando - disse Lawrence com uma careta, passando a mão pelas costas. - E olha que você ainda não viu nada. 2 O delegado Jean-Baptiste Adamsberg despejou o macarrão na peneira, deixou escorrer distraidamente, transferiu tudo para o prato, queijo, tomate, para esta noite já bastava. Ele tinha voltado tarde para casa, depois do interrogatório de um jovem boboca que se eternizara até às onze horas. Porque Adamsberg era lento, não gostava de apressar as coisas, nem as pessoas, por mais cretinas que fossem. E, antes de tudo, não gostava de apressar a si mesmo. A televisão estava ligada bem baixinho, guerras, guerras e guerras. Vasculhou com estardalhaço a bagunça da gaveta dos talheres, achou um garfo e se plantou, em pé, diante do aparelho. ...lobos do Mercantour passam mais uma vez ao ataque, num cantão dos Alpes-Maritimes que até agora tinha sido poupado. Fala-se, desta vez, num animal de tamanho excepcional. Realidade ou lenda? No local... Bem devagar, Adamsberg foi se aproximando do aparelho, de prato na mão, na ponta dos pés, como que para não assustar o comentarista. Por qualquer gesto à toa o sujeito poderia fugir da tevê, sem terminar a sensacional história de lobos que mal começara. Ele aumentou o volume, recuou. Adamsberg gostava de lobos, como se gosta dos pesadelos. Toda a sua infância nos Pireneus fora embalada pelas vozes dos velhos contando a epopéia dos últimos lobos da França. E quando aos nove anos ele percorria a montanha, à noite, quando o pai o mandava, sem discussão, juntar acendalhas pelos caminhos, julgava ver seus olhos amarelos seguindo-o pelas picadas. Dentro da noite os olhos do lobo brilham feito brasa, meu filho, feito brasa. E hoje, quando voltava para a sua montanha, ele à noite andava pelos mesmos caminhos. Sinal de que o ser humano não tem mesmo jeito, fica se apegando ao que tem de pior. Ele bem que ouvira dizer que alguns lobos dos Abruzos tinham transposto os Alpes de volta, havia alguns anos. Um bando de irresponsáveis, de certa forma. Uns bêbados fazendo festa. Simpática incursão, retorno simbólico, bem-vindos sejam os três animais pelados dos Abruzos. Olá, companheiros. Desde então, ouvira dizer que havia um pessoal cuidando deles como se fossem um tesouro, bem abrigados entre as rochas do Mercantour. E acontecia de traçarem um cordeiro vez por outra. Mas era a primeira vez que via imagens sobre eles. Com que então aquela súbita selvageria tinha a ver com eles, com aqueles bravos carinhas dos Abruzos? Adamsberg, enquanto comia em silêncio, via passar na tela uma ovelha despedaçada, um chão ensangüentado, o rosto conturbado de um criador, o velo manchado de uma ovelha decepada na relva de uma pastagem. A câmera vasculhava as feridas, complacente, e o jornalista aguçava as suas perguntas, aquecia as tochas do furor rural. Em meio às tomadas, uns focinhos de lobo apareciam na tela, com bigodes erguidos, diretamente saídos de antigos documentários, mais balcânicos que alpinos. Era de se imaginar que toda a região de Nice estivesse de repente curvando a espinha sob o bafo da matilha selvagem, enquanto alguns velhos pastores erguiam altivos semblantes para desafiar o animal, olhos nos olhos. Feito brasa, meu filho, feito brasa. Restavam os fatos: uns trinta lobos recenseados no Maciço, sem contar os filhotes extraviados, talvez uns dez, e os cães errantes, quase tão perigosos quanto. Centenas de ovinos degolados ao longo da última estação, num raio de dez quilômetros ao redor do Mercantour. Em Paris não se tocava no assunto porque em Paris ninguém dá a menor bola para essas histórias de lobos e carneiros, e Adamsberg estava estupefato ao descobrir aquelas cifras. Hoje, dois novos ataques no cantão de Auniers tinham reavivado o enfrentamento. Vinha para a tela um veterinário, ponderado, profissional, apontando o dedo para um ferimento. Não, não havia possibilidade de dúvida, veja aqui o impacto do carniceiro superior, o quarto pré-molar direito, e aqui, na frente, o canino direito, veja ali, e aqui, e embaixo, aqui. E o intervalo entre os dois, veja. Trata-se da mandíbula de um canídeo grande. - O senhor diria que pode ser de um lobo, doutor? - Ou de um cão muito grande. - Ou de um lobo muito grande? Então, mais uma vez, o rosto teimoso de um criador. Nesses quatro anos em que aqueles bichos desgraçados vinham enchendo a pança com o consentimento do pessoal da capital, nunca se tinham visto ferimentos assim. Nunca. Umas presas do tamanho de uma mão. O criador estendia a mão no horizonte, varria as montanhas. Lá em cima, rondando. Uma fera como nunca se viu. Eles que fiquem rindo, lá em Paris, que fiquem rindo. Vão rir bem menos depois que virem o bicho. Fascinado, Adamsberg terminava, em pé, seu prato de macarrão frio. O apresentador encadeou. As guerras. Devagar, o delegado se sentou, pôs o prato no chão. Caramba, os lobos do Mercantour. Aquela inocente alcateiazinha inicial tinha crescido à beça. Estava estendendo o seu território de caça, cantão por cantão. Estava se espalhando para fora dos Alpes-Maritimes. E, daqueles cerca de quarenta lobos, quantos atacavam? Alguns bandos? Alguns casais? Algum solitário? É, nas histórias era assim. Um lobo solitário, pérfido, cruel, aproximando-se das aldeias durante a noite, com o traseiro rente ao chão sobre as patas cinzentas. Um animal grande. A Fera do Mercantour. E as crianças dentro das casas. Adamsberg fechou os olhos. Dentro da noite os olhos do lobo brilham feito brasa, meu filho, feito brasa.