Trecho do livro ACHEI QUE MEU PAI FOSSE DEUS

ACHEI QUE MEU PAI FOSSE DEUS Estas coisas aconteceram em Oakland, Califórnia, no final da Segunda Guerra Mundial. Eu tinha seis anos. Não sabia então o que era a guerra, mas percebia algumas de suas conseqüências. O racionamento, por exemplo, pois eu tinha uma caderneta de ração com meu nome. Minha mãe guardava-a para mim, junto com as de meus irmãos. Lembro do blecaute, dos avisos de ataque aéreo e de ver aviões voando no céu. Meu pai era capitão de rebocador e lembro de conversas sobre navios de transporte, submarinos e destróieres. Lembro também de minha avó levando gordura ao açougueiro para ser aproveitada e indo ao centro para jogar resíduos de alumínio nos recipientes junto à calçada da repartição federal. Mas o que lembro mais é do sr. Bernhauser. Era nosso vizinho dos fundos. Era especialmente mau e hostil com as crianças, mas era grosseiro também com os adultos. Ele tinha uma ameixeira junto à cerca dos fundos. Se as ameixas estivessem do nosso lado, podíamos pegá-las, mas Deus nos livre se cruzássemos a linha da cerca. Era um inferno. Ele gritava e berrava conosco até que um de nossos pais aparecesse para saber o que estava acontecendo. Em geral, era minha mãe, mas daquela vez foi meu pai. Ninguém gostava muito do sr. Bernhauser, mas meu pai era particularmente contra o sujeito porque ficava com todos os brinquedos e bolas que porventura aterrissassem em seu quintal. Então, lá estava o sr. Bernhauser, berrando que caíssemos fora de sua árvore, e meu pai perguntou qual era o problema. O vizinho inspirou fundo e desandou a soltar uma série de invectivas sobre crianças ladras, infratores de regras, gatunos de frutas e monstros em geral. Imagino que papai estava de saco cheio, pois a próxima coisa que fez foi gritar com o sr. Bernhauser e dizer-lhe que era melhor que morresse. O vizinho parou de gritar, olhou para meu pai, ficou vermelho, depois púrpura, pôs as mãos no peito, ficou cinza, dobrou-se e caiu lentamente no chão. Achei que meu pai fosse Deus. Que ele pudesse gritar com um velho miserável e fazê-lo morrer no ato estava além da minha compreensão. Lembro que Ray Hink morava na casa em frente. Estávamos no mesmo ano da escola e sua avó morava no andar de cima. Era uma velhinha minúscula que usava sempre um vestido de gola alta. Sentava-se à janela com um binóculo de ópera e vigiava a vizinhança. Se nos comportássemos, deixava que olhássemos pelo binóculo e cheirássemos o perfume das pétalas de rosa que mantinha num jarro de alabastro sobre a mesa. Dizia que as pétalas de rosa eram da Alemanha e o jarro da Grécia. Uma tarde, tive licença para usar o binóculo e estava olhando para a rua. Um táxi parou e um marinheiro alto e magro desceu. Apertou a mão do taxista, que tirou um saco do porta-malas: era meu tio Bill, de volta da guerra. Minha avó desceu correndo a escada e jogou-se nos braços dele. Estava chorando. Lembro das estrelas que pendiam das janelas de alguns de nossos vizinhos. Minha avó contou-me que era porque alguém perdera um filho na guerra. Fiquei contente por não haver estrelas na nossa janela. Naquela noite, fizemos uma grande festa para tio Bill. Fui dormir feliz porque meu tio estava seguro em casa. Não pensei mais no sr. Bernhauser. Robert Winnie Bonners Ferry, Idaho