O sol ainda estava baixo no horizonte e a manhã de segunda-feira já se anunciava quente. Na praia vazia, de mar sem ondas e ar quase parado, todo o movimento ficava por conta dos atletas matutinos no calçadão da avenida Atlântica e do trânsito de veículos em direção ao centro da cidade. Na areia, ao longe, era possível distinguir um grupo de idosos fazendo ginástica e um ou outro corredor solitário à beira d'água. No mais, até onde a vista podia alcançar, havia apenas o ir e vir de um trator limpando a praia. Nada daquilo parecia interessar à criança de pouco mais de dois anos que, empunhando uma pá, caminhava pela areia com o olhar atento aos mais pequenos objetos. A ca-da meia dúzia de passos erráticos o pequeno se agachava para pegar alguma coisa, sob o olhar atento da babá portuguesa. Perto do ponto onde a praia declina mais fortemente em direção à água, a areia ainda conservava um pouco de frescor. Foi onde a babá estendeu uma toalha, fincou diligentemente o pau da barraca, abriu o guarda-sol, retirou da bolsa de plástico um chapéu de pano que colocou na cabeça do menino e, depois de verificar que nada ao redor ameaçava feri-lo, sentou-se vigilante. Maria da Piedade seguia à risca a recomendação dos patrões de nunca ficar na praia com o menino além das nove da manhã. Pele de criança européia é mais sensível que pele de criança brasileira, diziam eles; mesmo com cremes protetores, chapéu e camiseta ela sofre mais os efeitos do sol de Copacabana do que uma criança nativa. A própria Maria da Piedade, acostumada na infância aos verões da região do Alentejo, sentia os rigores do verão do Rio. Uma hora de praia com o pequeno era o suficiente, diziam os patrões. Para desencorajar permanências mais longas, exigiam de Maria da Piedade o uniforme completo: vestido branco, touca, tênis e meia de cano longo branca. A cada graveto que o pequeno se agachava para pegar, tinha que largar o que estava em sua mão, já que a outra continuava segurando firmemente a pá. Atraído por uma elevação de pouco mais de um palmo, sentou-se sobre ela e, munido da ferramenta de plástico, entregou-se à tarefa de remover a areia. Passado algum tempo, levantou-se e começou a bater a pá com força na areia. A agitação do menino alertou a babá, que percebeu que a areia da elevação já não estava branca. Meio encoberto pela terra havia um pedaço de roupa ou alguma coisa parecida com pêlo de animal. Maria da Piedade aguçou o olhar, levantou-se num salto e, com um grunhido rouco, pegou o pequeno no colo e se afastou depressa do local. Os primeiros policiais a chegar continuaram o trabalho iniciado pelo menino. A blusa fina manchada de sangue deixava à mostra um seio e um ferimento no abdome, logo abaixo das costelas. No rosto bonito, o excesso de pintura não disfarçava a barba que se insinuava sob a camada de maquiagem salpicada de areia. Maria da Piedade deixara o menino em casa e voltara para falar com os policiais. Não havia muito a relatar além do horror de ver um rosto surgir da areia com que a criança brincava. Com a chegada dos primeiros banhistas, o círculo de curiosos aumentou, e a área foi isolada. Uma senhora teve permissão para estender uma toalha sobre a parte descoberta do cadáver. Em seguida chegaram repórteres, fotógrafos, cinegrafistas e mais policiais. Era quase meio-dia quando o corpo do travesti foi removido. Valéria, seu nome de guerra, foi o máximo que os policiais conseguiram obter dos empregados dos quiosques à beira da calçada. Não sabiam seu nome verdadeiro, onde morava e se morava sozinho. Ninguém o vira na noite anterior. Valéria era da área, nisso estavam de acordo. Quanto ao resto, os policiais achavam que era questão de tempo e paciência, embora o pouco que tinham de tempo e paciência não era para ser desperdiçado com putas e travestis. Naquela noite a história do menino de dois anos que encontrara o corpo de um travesti assassinado e enterrado nas areias de Copacabana foi notícia nos principais canais de TV. O fato de o menino ser filho de um diplomata estrangeiro morador da avenida Atlântica certamente contribuiu para o destaque concedido à notícia. A declaração do secretário de Segurança, de que o crime seria solucionado no mais curto espaço de tempo e de que o policiamento noturno na orla marítima seria reforçado, fazia parte da retórica governamental, além de ser um recado aos homens da polícia para que garantissem aos moradores da área mais nobre da cidade o direito de mandar os filhos brincar na praia com seus baldinhos e pazinhas sem correrem o risco de desenterrar cadáveres. Russo estava sentado na areia da praia, imóvel, as costas contra o paredão da avenida Atlântica, no escuro de uma noite sem lua e protegido das luzes da rua... esperando. Não estava acontecendo nada, e ele gostaria que continuasse assim até se sentir seguro para sair dali. Apesar da hora, fazia bastante calor. Estava acostumado com grandes esperas e ambientes escuros, podia ficar horas na mesma posição, atento a pequenos movimentos e a ruídos quase imperceptíveis. Fora um desses movimentos, feito quase só de sombra e silêncio, junto à saída da galeria de águas pluviais, que chamara sua atenção no exato instante em que pretendia observar a cena que se desenrolava em outro ponto da praia. Passava da meia-noite e, salvo um ou outro casal de namorados ao longe, não havia ninguém caminhando pela areia. O barulho dos carros que circulavam pela avenida Atlântica passava por cima de sua cabeça e se fundia com o barulho do mar. O trânsito de turistas no calçadão ainda era grande, e aquele trecho da praia não era coberto pelas câmeras de segurança, o que em qualquer outra noite seria para ele um convite à improvisação. Naquele momento, porém, não estava em busca de aventura: estava era preocupado com o que acabara de ver. Mais precisamente, com o que acabara de não ver. O casal descera do calçadão para a areia uns dez metros à esquerda de onde ele estava e caminhara na direção da água. Segundos antes, também ele descera para a areia: estava apertado para urinar, e a sombra do paredão lhe oferecia um lugar discreto. Quando viu o casal descer, sentou-se na areia e ficou imóvel, encostado no paredão, para não ser visto e não dar a impressão de estar ali por razões condenáveis, fossem elas quais fossem. A mulher vestia minissaia, blusinha branca amarrada na cintura e carregava as sandálias na mão; o homem usava jeans, camisa para fora da calça e boné. Foi tudo o que Russo conseguiu ver no instante em que o casal pulou para a areia e avançou para a beira da água. Passados alguns minutos, o homem voltou sozinho, um pouco apressado e sem olhar para trás. Era como se ele soubesse que a mulher não o seguiria. Não vira o homem direito; apenas de costas e meio de perfil, quando o casal ia na direção do mar. Na volta ele fizera um percurso diferente, subindo para a calçada em um ponto mais distante do lugar onde estava Russo. Em nenhum momento Russo conseguira ver o rosto do homem de boné. No entanto, tinha a vaga impressão de já tê-lo visto antes. Ainda sentado, tentou ver a mulher; não viu ninguém. Ficou de pé e, sempre sob o abrigo do paredão, vasculhou a praia com o olhar, sem sucesso. Decidiu esperar um pouco mais, até o homem se afastar do calçadão, para ir ver de perto o que acontecera com a mulher. Talvez os dois tivessem brigado e ela agora estivesse sentada na beira da água, chorando. Russo percebeu que a imagem daquele homem lhe provocava um sentimento desagradável. Era por isso que continuava ali, no escuro. Era ele, Russo, quem estava se escondendo, não o homem. Esperou mais uns quinze minutos, levantou-se e arriscou uma olhada para a calçada. Foi quando notou mais uma vez o movimento percebido minutos antes junto à saída da galeria de águas pluviais, perto de onde estava. Só teve tempo de ver o menino sair correndo rente ao paredão até o ponto em que pôde pular para a calçada e desaparecer em segundos. [...]