CAPÍTULO 1 1 O defunto dominava a casa com a sua presença enorme. Anoitecia, e os homens que cercavam o morto ali na sala ainda não se haviam habituado ao seu silêncio espesso. Fazia um calor opressivo. Do quarto contíguo vinham soluços sem choro. Pareciam pedaços arrancados dum grito de dor único e descomunal, davam uma impressão de dilaceramento, de agonia sincopada. As velas ardiam e o cheiro da cera derretida se casava com o perfume adocicado das flores que cobriam o caixão. A mistura enjoativa inundava o ar como uma emanação mesma do defunto, entrava pelas narinas dos vivos e lhes dava a sensação desconfortante duma comunhão com a morte. O velho calvo que estava a um canto da sala voltou a cabeça para o militar a seu lado e cochichou: - Está fazendo falta aqui é o Tico, capitão. O oficial ainda não conhecia o Tico. Era novo na cidade. Então o velho explicou. O Tico era um sujeito que sabia animar os velórios, contava histórias, tinha um jeito especial de levar a conversa, deixando todo o mundo à vontade. Sem o Tico era o diabo... Por onde andaria aquela alma? Entrou um homem magro, alto, de preto. Cumprimentou com um aceno discreto de cabeça, caminhou devagarinho até o cadáver e ergueu o lenço branco que lhe cobria o rosto. Por alguns segundos fitou na cara morta os olhos tristes. Depois deixou cair o lenço, afastou-se enxugando as lágrimas com as costas das mãos e entrou no quarto vizinho. O velho calvo suspirou. - Pouca gente... O militar passou o lenço pela testa suada. - Muito pouca. E o calor está brabo. - E ainda é cedo. O capitão tirou o relógio: faltava um quarto para as oito. Da rua vinham ruídos alegres, gritos de crianças, a música dum rádio, longe. Estralou uma viga do teto. As velas crepitavam. Os soluços continuavam. E os homens que faziam companhia ao morto pareciam não ter coragem de falar. O senhor de preto voltou do quarto, sacudindo a cabeça e, enxugando novas lágrimas, foi sentar-se perto da porta e ali ficou muito quieto, fazendo um cigarro. Passaram-se os minutos. A noite caiu por completo. Alguém falou em acender a luz elétrica. O velho calvo achou que não era direito: quem devia fazer isso era alguma pessoa da família, algum parente... O senhor de preto só ouviu a palavra parente. Ergueu-se, de cigarro na mão, e disse, muito atencioso, com certo orgulho: - Eu sou primo terceiro do falecido. O velho calvo compôs no rosto uma expressão de pesar: - Então aceite os meus pêsames. Abraçaram-se sem nenhuma cordialidade. E de repente o homem de preto - nem ele mesmo soube por quê - desandou a chorar em grandes soluços. O velho suspirou, olhou para o capitão como a pedir socorro. O militar ergueu-se, caminhou para o homem de preto e bateu-lhe no ombro: - Que é isso, nosso amigo? Tenha coragem. O velho calvo sacudiu a cabeça: - Foi uma coisa bárbara... E entraram no assunto. O capitão contou: - Por questão de dois minutos quase assisti ao crime... - Veja só... O homem de preto parou de chorar. - Me dê o fogo, capitão. O capitão passou-lhe o isqueiro aceso. - 'brigado. - Pausa. Suspiro. - Pois nesta mesma sala já velei três defuntos. Os outros sentiram que essas palavras eram a introdução da longa história que o homem de preto queria contar. Esperaram. - E nenhum dos três teve morte natural. Minto: o velho Olivério morreu de doença, uremia, se não me engano... Mas o filho se atirou na lagoa e morreu afogado. Se lembram? O velho lembrava-se. O militar era novato na cidade, estava em Jacarecanga havia poucos meses, não conhecia o morto, viera ao velório "por uma questão de solidariedade humana" - como já tinha explicado ao velho, acrescentando que era "espírita dos quatro costados". O homem de preto chupou o cigarro. - Pois... Me dê outra vez o fogo, capitão. Obrigado. Pois teve uma sobrinha do velho Olivério que tomou cianureto... ou arsênico, não me lembro bem. Parece que ainda estou vendo a cara da coitadinha. - Desgostos? - perguntou o capitão. - O marido abandonou ela com um filho pequeno depois do casamento. - Veja só... - O senhor compreende: dois suicídios. Agora... esse desastre: o pobre do João de Deus! Suspirou e olhou para o defunto. O velho calvo repetiu: - Foi uma coisa bárbara... Os soluços estavam mais fortes. Os homens do velório também sofriam; tinham uma vaga piedade pela pessoa que soluçava assim; mas sentiam-se ao mesmo tempo incomodados por aquele som desagradável que os deixava ansiados, que lhes dava um esquisito mal-estar. E chegavam então quase a querer mal à mulher que soluçava. O homem de preto lutou com o cigarro por alguns segundos. O capitão tornou a olhar o relógio. O velho pigarreou e depois disse, baixinho: - Eu vi logo que essa pendenga ia terminar na bala... O capitão chegou os lábios perto dos ouvidos do companheiro e lhe perguntou com um mistério na voz: - Então o senhor acha?... O velho confirmou com um aceno de cabeça. Se o chamassem para depor, ele diria sem medo tudo quanto sabia. Vira o Zé Cabeludo encilhar o cavalo no pátio da prefeitura aquela mesma tarde. E havia duas testemunhas que tinham visto o Cabeludo balear João de Deus. - Canalhas! - murmurou o homem de preto, convencionalmente, sem o menor calor. E de repente entrou o Tico. O rosto do velho iluminou-se. - O Tico! Olá, bichão! Estendeu a mão para o recém-chegado. O Tico era um sujeito magro, de barba de dois dias, dentes pretos e nariz furado de bexigas. Foi logo apertando a mão do capitão, que não conhecia, e do homem de preto, que conhecia só de longe. - Mas então? - Sua voz era metálica e cantante. - Então? - Olhou para o caixão e sacudiu a cabeça. - Pobre do João de Deus! - E em seguida, quase sem mudar de tom: - Onde está a viúva? - O velho mostrou com o beiço o quarto vizinho. - Coitada da dona Clemência. - Exprimiu seu pesar num muxoxo. - E a Clarissa? Coitadinha. É ela que está soluçando? Menino, é horrível quando a gente quer chorar e não pode. Mas então conseguiram pegar o bandido? O Tico se dirigia ora a um, ora a outro, mas não dava a ninguém tempo para responder. De quando em quando olhava o caixão de soslaio ou acenava para algum conhecido. Num dado momento, aproximou-se do morto, ergueu o lenço, contemplou-lhe longamente o rosto e voltou para o grupo: - Já viram que pontaria? Aquele Cabeludo é tremendo. Uma vez na Soledade... E começou a contar a história dum grande crime. O velho escutava com gosto. Finalmente chegara o Tico para salvar a situação! O capitão estava também fascinado, olhava para o velho com um ar fraternal, como a lhe dizer que realmente o Tico era o homem que estava fazendo falta. Começou então o duelo entre Tico e o morto. O morto, com seu silêncio, pedia silêncio, lembrava aos presentes que todos como ele um dia tinham de morrer, apodrecer, ir embora para todo o sempre; o morto, sem falar, contava os segredos medonhos da morte. Mas Tico lutava contra o cadáver. Tico queria lembrar a todos (e nem chegava a ter consciência do duelo) que a vida continuava, apesar do defunto. Tico falava. Tinha a sua técnica: saltava duma história para outra. E ia aos poucos vencendo o silêncio que o morto espalhava na sala. Começava num meio-tom discreto, ia subindo, subindo até que por fim chegava ao diapasão natural. Mas agora Tico lutava com desvantagem. Tinha contra si também os soluços ansiados de Clarissa. E esses soluços como que faziam parte do silêncio do morto. E era por isso que, impressionados, os homens em sua maioria não achavam interesse nas histórias do conversador. Até o velho calvo ao cabo de alguns minutos perdeu o entusiasmo. E sacudiu a cabeça, só atinando com dizer: - Foi uma coisa bárbara... Tico fez ainda uma tentativa: - Por falar em crime, vocês nunca ouviram falar naquele degolamento de Passo Fundo? Ninguém prestou atenção à pergunta. Porque, naquele momento, a menina que soluçava desatou o pranto. Todos sentiram um alívio. Por baixo do lenço, o rosto do morto tinha uma estranha cor esverdinhada. Uma atadura envolvia-lhe a cabeça de negros cabelos duros, passando-lhe por cima de um dos olhos. Um filete de sangue coagulado, dum vermelho quase negro, manchava a face esquerda de João de Deus. Era como se seu olho ferido tivesse chorado sangue.