Trecho do livro FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL

INTRODUÇÃO O presente livro pretende ser tão-somente um esboço do processo histórico de formação da economia brasileira. Ao escrevê-lo, em 1958, o autor teve em mira apresentar um texto introdutório, acessível ao leitor sem formação técnica e de interesse para as pessoas - cujo número cresce dia a dia - desejosas de tomar um primeiro contato em forma ordenada com os problemas econômicos do país. A preocupação central consistiu em descortinar uma perspectiva o mais possível ampla. Na opinião do autor, sem uma adequada profundidade de perspectiva torna-se impossível captar as inter-relações e as cadeias de causalidade que constituem a urdidura dos processos econômicos. Embora dirigindo-se a um público mais amplo, o autor teve, de modo especial, em mente, ao preparar o presente trabalho, os estudantes de ciências sociais, das faculdades de economia e filosofia em particular. A assimilação das teorias econômicas requer mais e mais ser completada, em nível universitário, pela aplicação dessas teorias aos processos históricos subjacentes à realidade na qual vive o estudante e sobre a qual possivelmente terá de atuar. Como simples esboço que é, este livro sugere um conjunto de temas que poderiam servir de base a um curso introdutório ao estudo da economia brasileira. Omite-se quase totalmente a bibliografia histórica brasileira, pois escapa ao campo específico do presente estudo, que é simplesmente a análise dos processos econômicos, e não reconstituição dos eventos históricos que estão por trás desses processos. Sem embargo, as referências bibliográficas, incluídas nas notas de pé de página, poderão apresentar algum interesse do ponto de vista de análise histórico-comparativa. Na última parte (principalmente capítulos 28 a 32) o autor seguiu de perto o texto de análise apresentado em trabalho anterior (A economia brasileira, Rio de Janeiro, 1954). Todavia, os dados quantitativos foram todos revisados e estão agora referidos a suas respectivas fontes. Se bem que não haja discrepância no que respeita às conclusões fundamentais entre os dois trabalhos, em muitos pontos a mudança de enfoque ou ênfase e a inclusão de material novo adquirem particular relevância. Celso Furtado PARTE UM FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL 1.Da expansão comercial à empresa agrícola A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão comercial da Europa. Não se trata de deslocamentos de população provocados por pressão demográfica - como fora o caso da Grécia - ou de grandes movimentos de povos determinados pela ruptura de um sistema cujo equilíbrio se mantivesse pela força - caso das migrações germânicas em direção ao ocidente e ao sul da Europa. O comércio interno europeu, em intenso crescimento a partir do século XI, havia alcançado um elevado grau de desenvolvimento no século XV, quando as invasões turcas começaram a criar dificuldades crescentes às linhas orientais de abastecimento de produtos de alta qualidade, inclusive manufaturas. O restabelecimento dessas linhas, contornando o obstáculo otomano, constitui sem dúvida alguma a maior realização dos europeus na segunda metade desse século. A descoberta das terras americanas é, basicamente, um episódio dessa obra ingente. De início pareceu ser episódio secundário. E na verdade o foi para os portugueses durante todo um meio século. Aos espanhóis revertem em sua totalidade os primeiros frutos, que são também os mais fáceis de colher. O ouro acumulado pelas velhas civilizações da meseta mexicana e do altiplano andino é a razão de ser da América, como objetivo dos europeus, em sua primeira etapa de existência histórica. A legenda de riquezas inapreciáveis por descobrir corre a Europa e suscita um enorme interesse pelas novas terras. Esse interesse contrapõe Espanha e Portugal, "donos" dessas terras, às demais nações européias. A partir desse momento a ocupação da América deixa de ser um problema exclusivamente comercial: intervêm nele importantes fatores políticos. A Espanha - a quem coubera um tesouro como até então não se conhecera no mundo - tratará de transformar os seus domínios numa imensa cidadela. Outros países tentarão estabelecer-se em posições fortes, seja como ponto de partida para descobertas compensatórias, seja como plataforma para atacar os espanhóis. Não fora a miragem desses tesouros, de que, nos primeiros dois séculos da história americana, somente os espanhóis desfrutaram, e muito provavelmente a exploração e ocupação do continente teriam progredido muito mais lentamente. O início da ocupação econômica do território brasileiro é em boa medida uma conseqüência da pressão política exercida sobre Portugal e Espanha pelas demais nações européias. Nestas últimas prevalecia o princípio de que espanhóis e portugueses não tinham direito senão àquelas terras que houvessem efetivamente ocupado. Dessa forma, quando, por motivos religiosos, mas com apoio governamental, os franceses organizam sua primeira expedição para criar uma colônia de povoamento nas novas terras - aliás a primeira colônia de povoamento do continente -, é para a costa setentrional do Brasil que voltam as vistas. Os portugueses acompanhavam de perto esses movimentos e até pelo suborno atuaram na corte francesa para desviar as atenções do Brasil. Contudo tornava-se cada dia mais claro que se perderiam as terras americanas a menos que fosse realizado um esforço de monta para ocupá-las permanentemente. Esse esforço significava desviar recursos de empresas muito mais produtivas no Oriente. A miragem do ouro que existia no interior das terras do Brasil - à qual não era estranha a pressão crescente dos franceses - pesou seguramente na decisão tomada de realizar um esforço relativamente grande para conservar as terras americanas. Sem embargo, os recursos de que dispunha Portugal para colocar improdutivamente no Brasil eram limitados e dificilmente teriam sido suficientes para defender as novas terras por muito tempo. A Espanha, cujos recursos eram incomparavelmente superiores, teve que ceder à pressão dos invasores em grande parte das terras que lhe cabiam pelo Tratado de Tordesilhas. Para tornar mais efetiva a defesa de seu quinhão, foi-lhe necessário reduzir o perímetro deste. Demais, fez-se indispensável criar colônias de povoamento de reduzida importância econômica - como no caso de Cuba - com fins de abastecimento e de defesa. Fora das regiões ligadas à grande empresa militar-mineira espanhola, o continente apresentava escasso interesse econômico, e defendê-lo de forma efetiva e permanente constituiria sorvedouro enorme de recursos. O comércio de peles e madeiras com os índios, que se desenvolve durante o século XVI em toda a costa oriental do continente, é de reduzido alcance e não exige mais que o estabelecimento de precárias feitorias. Os traços de maior relevo do primeiro século da história americana estão ligados a essas lutas em torno de terras de escassa ou nenhuma utilização econômica. Espanha e Portugal se crêem com direito à totalidade das novas terras, direito esse que é contestado pelas nações européias em mais rápida expansão comercial na época: Holanda, França e Inglaterra. A Espanha recolhe de imediato pingues frutos que lhe permitem financiar a defesa de seu rico quinhão. Contudo, tão grande é este e tão inúteis lhe parecem muitas das novas terras, que decide concentrar seu sistema de defesa em torno ao eixo produtor de metais preciosos, México-Peru. Esse sistema de defesa estendia-se da Flórida à embocadura do rio da Prata. Ainda assim, e não obstante a abundância dos recursos de que dispunha, a Espanha não conseguiu evitar que seus inimigos penetrassem no centro mesmo de suas linhas de defesa, as Antilhas. Essa cunha antilhana foi de início uma operação basicamente militar. Contudo, nos séculos seguintes ela terá enorme importância econômica, como veremos mais adiante. Coube a Portugal a tarefa de encontrar uma forma de utilização econômica das terras americanas que não fosse a fácil extração de metais preciosos. Somente assim seria possível cobrir os gastos de defesa dessas terras. Este problema foi discutido amplamente e em alto nível, com a interferência de gente - como Damião de Góis - que via o desenvolvimento da Europa contemporânea a partir de uma ampla perspectiva. Das medidas políticas que então foram tomadas resultou o início da exploração agrícola das terras brasileiras, acontecimento de enorme importância na história americana. De simples empresa espoliativa e extrativa - idêntica à que na mesma época estava sendo empreendida na costa da África e nas Índias Orientais -, a América passa a constituir parte integrante da economia reprodutiva européia, cuja técnica e capitais nela se aplicam para criar de forma permanente um fluxo de bens destinados ao mercado europeu. A exploração econômica das terras americanas deveria parecer, no século XVI, uma empresa completamente inviável. Por essa época nenhum produto agrícola era objeto de comércio em grande escala na Europa. O principal produto da terra - o trigo - dispunha de abundantes fontes de abastecimento dentro do continente. Os fretes eram de tal forma elevados - em razão da insegurança no transporte a grandes distâncias - que somente os produtos manufaturados e as chamadas especiarias do Oriente podiam comportá-los. Demais, era fácil imaginar os enormes custos que não teria de enfrentar uma empresa agrícola nas distantes terras da América. É fato universalmente conhecido que aos portugueses coube a primazia nesse empreendimento. Se seus esforços não tivessem sido coroados de êxito, a defesa das terras no Brasil ter-se-ia transformado em ônus demasiado grande, e - excluída a hipótese de antecipação na descoberta do ouro - dificilmente Portugal teria perdurado como grande potência colonial na América.