Maria Bráulia Munhoz, no nono andar de seu apartamento no Itaim Bibi, prepara-se para o almoço. A mesa está posta para duas pessoas: ela e o sobrinho. A toalha sobre a mesa redonda, pequena, é de linho branco adamascado e no centro há um lago também redondo e pequeno, de espelho. Sobre a superfície de espelho pousa um cisne de Murano. Maria Bráulia - de velhice definida mas idade não declarada, com movimentos seguros e rápidos, acompanhados de tapinhas, faz aderir ao rosto o seu segundo rosto, o "social", de pele entre o rosa e o marfim, boca e face rosadas. Os cílios com rímel espevitam o azul dos olhos e atiçam o amarelo pintado dos cabelos. Com o rosto social mais uma vez encenado, o outro, o estritamente particular, recua, como acontece todas as manhãs, e é esquecido imediatamente por sua dona. Um rosto que de tão pouco visto por terceiros adquire a mesma modéstia do corpo murcho; e assim, trazê-lo à luz do dia, sustentá-lo sobre o pescoço como se fosse a coisa mais natural do mundo (o que vem aliás exatamente a ser), exibi-lo para algum outro, ainda que muito íntimo, como o sobrinho, lhe pareceria um ato da mais absoluta e indesculpável falta de pudor. Lá embaixo na portaria o sobrinho pede ao moço da guarita que avise no apartamento 91 que Julião Munhoz está subindo. É o secretário oficioso da tia, um cargo que foi conquistado aos poucos nesses últimos anos. No final de um almoço com poucos pratos, mas refinado e substancioso, Maria Preta, a empregada há muito tempo na família, apresenta, como sempre faz diante de cada um, uma vasilha pequena de cristal com uma pétala de rosa boiando em um pouco de água perfumada. Ambos mergulham a ponta dos dedos no finger-bowl que têm defronte, e os três, Maria Bráulia, Maria Preta e Julião, o secretário oficioso, de maneira quase imperceptível entreolham-se e confirmam pelo olhar alguma coisa muito secreta e prazerosa que lhes é comum. Maria Preta aparenta uns quinze anos menos que Maria Bráulia e o seu pixaim alisado está todo grisalho. Usa óculos de aro dourado, um uniforme cinzento de riscas com avental branco. Julião é um moreno de cabelo cortado à escovinha e um tanto corpulento para os seus trinta e poucos anos. Veste camisa esporte e um blazer claro. Tia e sobrinho levantam-se para tomar o café na varandinha alegrada com plantas. O dia está muito bonito e lá ficarão a salvo dos ouvidos de Maria Preta. Maria Preta é discreta mas não é surda; e o apartamento é pequeno. Maria Preta é como se fosse da família. Em algumas circunstâncias isso quer dizer exatamente o que enuncia: que Maria Preta é como se fosse da família. Em outras, que Maria Preta não é como se fosse da família, uma vez que não é da família, é apenas "como se fosse". Hoje é uma dessas circunstâncias. Pois além de falarem de várias coisas do interesse de Maria Bráulia e que para Maria Preta podem parecer distantes, talvez mesmo remotas, vão falar de jóias, mais especificamente do famoso rubi sangue-de-pombo, presente de noivado do defunto juiz Munhoz a Maria Bráulia. Tia e sobrinho esperam a porta da cozinha ser fechada. O ar à volta da varanda tremula em uma fina malha dourada. Os sons estão suspensos, o céu esmaltado de azul sem uma rachadurinha, um fiapo de nuvem. Ah, o veranico de maio. Maria Bráulia respira fundo aquele ar tingido de ouro, aquele verão fingido e perfeito, sem os excessos do verdadeiro. - Pois é... - está lhe dizendo o sobrinho, a voz um tanto ansiosa - quem diria... sei que vai ter um grande choque, minha tia, não queria eu lhe trazer a notícia, me admira que durante todo esse tempo nunca... nunca tenha feito uma avaliação... Maria Bráulia não o ajuda. Está ali quieta, as mãos finas e compridas de nós dos dedos salientes com o palor e o formato de pérolas barrocas, brincam os dedos na echarpe verde-musgo presa por um alfinete de prata e malaquita onde de cada lado os peitinhos simetricamente modelados pelo sutiã (trazido de Paris por uma amiga de uma casa especializada em confecções para a terceira idade avançada) mal se anunciam sob a blusa de seda natural. - Minha tia, o rubi é falso! Maria Bráulia firma as mãos nos braços da cadeira. - Não é possível! Um autêntico sangue-de-pombo! Seu joalheiro avaliador... - O melhor no ramo, minha tia, veja aqui a firma. - ... um reles mentiroso! Um falsário! - Mas como um falsário, minha tia, se justamente ele é quem denuncia falsificações... O melhor no ramo... - Um avaliador falsificador! - Minha tia... - Sei absolutamente do que estou falando. Você vai voltar e dizer ainda hoje para esse senhor melhor no ramo que ele não passa de um reles falsificador! Que sou eu que o afirmo! Acha então que com minha experiência em jóias eu não ia perceber? Que nunca vi rubis na minha vida? Esse vermelho tão puro com a pequena tonalidade azulada! Qual a imitação que ia conseguir reproduzir esse fogo azulado por dentro do vermelho? Um rubi autêntico, um autêntico sangue-de-pombo de quase dois quilates, lapidação antique, da região de Ratnapura no Ceilão, no... no Sri Lanka! Como eu disse quando lhe passei o anel. Não tem preço! Maria Bráulia Munhoz deve estar profundamente chocada, conjetura o sobrinho. Tão profundamente chocada que a voz perdeu qualquer modulação; como se tivesse sido desossada e guardada em formol. Uma voz ameaçadoramente átona. "É como se lesse o que está dizendo, não mostra a raiva das outras vezes em que eu a contrariei", continua a pensar Julião horrorizado. "Na sua idade tudo é muito perigoso, isso pode ser mau sinal, vamos devagar..., bem devagar." - Minha tia, antes de tudo peço-lhe calma, muita calma. - Pareço acaso nervosa? - Justamente, minha tia, não parece. Tiro o chapéu para o seu autocontrole. - E o que vocês da sua geração entendem de chapéus? Já chegou a usar algum chapéu na sua vida? Se usasse talvez não teria esse comecinho de clareira aí bem no meio da cabeça! Julião, que se havia curvado para pegar o papel da avaliação no chão de lajota, endireita o busto surpreso e ofendido. Nunca teria podido imaginar que com o cabelo cortado à escovinha alguém tivesse percebido qualquer coisa. - Então, então, estou calma, o que mais tem para dizer sobre o meu rubi sangue-de-pombo? Julião se cala. - Meu filho, vamos lá, vamos até o fim agora; quero alcançar a extensão da tolice. - Muito bem, tia Brau, mas espere então eu dizer tudo. Só para começar, assim que ele botou o olho na pedra... - Na gema. Que joalheiro é esse que chama gema de pedra? - Sou eu que estou chamando, não é ele, minha tia, desse jeito a senhora não me deixa terminar nunca. - Muito bem então. - Ele viu assim que pegou o anel; para início de conversa, a cor do vermelho não era sangue-de-pombo nenhum. - Não era então? - Não senhora tia Brau, não tinha as características. Ele foi taxativo. - Poderia me dar o nome desse ele que afirma asneiras com uma tal empáfia? - Mas nunca lhe escondi, minha tia! Já lhe havia dito ontem no telefone, está aqui no papel, senhor Benedito Moreira Zanni, um dos donos da joalheria MZ; não há no Brasil quem não conheça. Toda hora saem encartes nas melhores revistas do país com a reprodução de suas coleções de jóias, na Em Dia, Janela, Expô. Maria Bráulia Munhoz olha para fora, para a doce penugem dourada de maio depositada nos prédios distantes e próximos, nas suas guarnições, quinas, parapeitos. Não diz nada. Maria Preta nesse momento abre a porta da cozinha, atravessa a sala e entra na varanda para retirar a bandeja do café; entra no momento certo, parece ter estado aguardando um sinal qualquer, talvez aquele minuto de silêncio, para fazer sua aparição; como no teatro. Nas comediazinhas cantadas a que Maria Bráulia assistia nos tempos do Munhoz, desaparecia-se aqui, a empregadinha surgia ali. A patroa saía por lá, o patrão beijava a criadinha, ali, ali, no lugarzinho. Abria-se a boca e se começava a cantarolar no canto direito do palco, no canto esquerdo... no canto esquerdo, ah. A cortina está aberta e o palco iluminado e cheio de ouro é como maio derramado sobre esses prédios; uma borracha dourada vai apagando o que acontecia nesses palcos e só deixa a luz esfarinhada e brilhante sobreviver no ar da varanda embandeirada de plantas. Se Maria Preta esteve escutando atrás da porta não foi apenas para fazer a sua entrada no momento certo, mas Maria Bráulia sabe que da cozinha com a porta fechada não se pode entender o sentido do que se conversa na varanda. A não ser que os dois estivessem gritando. Não estão. E ao observar as costas da empregada que se afasta, tão retas quanto as suas, Maria Bráulia duvida um pouco de uma Maria Preta meio fora de prumo como uma vassoura encostada atrás da porta. Impossível. Julião continua nervosamente: - O Zanni não ficou nada espantado. Disse que é muito comum casos assim com jóias de família. A montagem da jóia é boa, a imitação bem-feita, quem não é especialista... Ele foi muito objetivo tia Brau, fiquei sabendo muito sobre falsificações, no caso dos rubis principalmente a coisa se complica. Além dos rubis sintéticos ele falou dos reconstituídos, feitos com lasquinhas de rubi, e também das pedras compostas, os doublets, compostos de duas partes, os triplets, compostos de três. - Ah, sim? Compostas? Como é isso? "O tom da voz!", vai anotando Julião. "Nenhum, nenhum!" - Uma parte é de rubi sintético, em cima uma camada fina de granada, no meio cimento colorido, a montagem da jóia esconde cimento. Ou cristal de rocha e vidro, por exemplo, ou vidro e topázio e cristal, ou rubi sintético em cima e embaixo vidro, ou cristal. E tem ainda outras pedras valiosas mas que não são rubis e antigamente passavam por rubis, espinélios por exemplo ele disse, até na coroa imperial inglesa houve enganos naturalmente o tio Munhoz não sabia que estava lhe dando uma jóia falsa veja os espinélios se até na coroa imperial imagine, não tinha qualquer idéia, deu de boa-fé. - Eu me ocupo com a honra do Munhoz, você se ocupa em me explicar muito direitinho essa história toda. "Mas por que ela insiste nessa voz sem ossos, nessa voz de papa", aflige-se cada vez mais Julião, o sobrinho-secretário que, tal como as gemas compostas, é dois em um, padecente enquanto sobrinho, padecente enquanto secretário. "Deve estar estarrecida, pela pedra, pelo tio", vai tirando a sua conclusão também composta. - Em suma, minha tia, a imitação é bem-feita, bem-feitinha reconheceu o Zanni. - É? E o que tinha em cima, no meio, embaixo? Julião Munhoz espreguiça-se para fingir descontração, cruza as mãos no alto da cabeça, bem no ponto da pequena quase invisível clareira: - Minha tia aí é que está, ele não precisou fazer todos os testes já foi falando. Tia Brau, nem ao menos é um doublet ou triplet, é vidro, só vidro, vidro bom, usado nas imitações boas, flint, mas vidro, vidro, um rubi de vidro! Somente. O Zanni ficou uns bons minutos abanando a cabeça e resmungando: sangue-de-pombo, sangue-de-pombo. Parecia um pouco envergonhado pela gente. Se a senhora quiser que eu leve em outra joalheria, para outro avaliador, ourives ou... - Não vale a pena. Maria Bráulia Munhoz levanta-se com elegância, rejeita com um movimento imperceptível, uma espécie de pequena cotovelada no ar, a ajuda do sobrinho. - Me dê aqui o anel. Julião, o sobrinho-secretário, tira pressuroso uma caixinha do bolso. A tia abre a caixa, segura o anel, coloca-o no anular da mão esquerda, distancia um pouco a mão que faz graciosos arabescos no ar enquanto ela o observa com os olhos entrefechados: - Não é a melhor hora para apreciá-lo e ainda assim... veja que beleza! Você sabia que o rubi é uma gema que na luz artificial ainda fica mais bonita, o que não acontece por exemplo com a safira? "Age como certas pessoas que não aceitam a morte de um ente querido e continuam falando dele como se estivesse cheio de vida, jogando saúde fora", pensa Julião. "É preciso dar tempo ao tempo para ela cair na realidade!" - Bom meu filho, é a horinha da minha sesta, você vai me dar licença... - Mas tia Brau, todo o resto, não falamos ainda do resto, só do rubi. - Alguma coisa muito urgente? - Bem, urgente, urgente, propriamente... - Vamos deixar para a semana que vem então. Acho que vou ter uma das minhas enxaquecas. O anel volta para o cofre. Por enquanto fica lá. Julião está abalado com o fim brusco da entrevista. Desapontadíssimo. Abre a boca; hesita. Tem mais medo das enxaquecas da tia do que das cotações da Bolsa. Corre a mão pela mureta da varanda, olha lá para baixo, pensa no comércio do Itaim Bibi, nos comerciantes pequenos e grandes que por lá circulam, ou vendem ou não vendem, tudo tão simples, pode ser um apartamento ou mesmo um prédio inteiro, ou só cortinas, um pufe, alpiste, flanelas ou panelas, computadores, escovas interdentais, uma bíblia ilustrada, ou uma bíblia simplesmente sem qualquer ilustração, ou mesmo ilustrações sem nenhuma figura bíblica dentro, muito pelo contrário, muito pelo contrário; conhece bem o comércio dali, o que não se vende! Que importa o quê? Grandes ou pequenos, tanto faz, tudo tão simples, tão claro, tão... - Minha tia, tia Brau - ousa por fim timidamente Julião -, talvez a safira... - Ah não meu filho, desculpe. Primeiro foi o rubi, agora a safira, depois serão as pérolas, a turmalina, para acabar tudo virando um montinho de pedregulho? Quando precisei me desfazer dos diamantes depois da morte do Munhoz, chorei. Vejo agora que tive sorte. Não querido, deixemos as coisas por enquanto como estão. Não há pressa. Abandonam a varanda, dão as costas ao amarelo cheio e derramado de maio, mas o outono se esconde nesse pequeno, cálido e falso verão, um fulgor azulado em seu centro escurecendo, talvez já nos próximos dias, o vermelho do sol. Não há por que voltar ao assunto. Julião permanece um instante em silêncio no meio da sala. Estende a mão e se curva um pouco para beijar a tia no rosto. Apesar de tudo é um sobrinho-secretário modelo. Não insiste quando sabe que não é hora. Aquele rubi sangue-de-pombo, sangue da puta da pomba que o pariu isso sim, botou tudo a perder. Por que teria que começar justamente por ele? Depois de meses de insistência, de amolação mesmo, reconhecia - finalmente a tia havia concordado na semana passada que fosse feita uma avaliação criteriosa de todas as suas jóias, aos poucos. Ele tinha razão, dissera, ele estava com carradas de razão, era preciso mesmo saber ao certo o quanto valiam, um dia quando precisasse, se precisasse (espero que nunca tia Brau) fazer dinheiro com as jóias, não seria apanhada de surpresa. Ele estava certo sim, tinha carradas de razão. E a tia por fim o deixara profundamente emocionado quando lhe havia ainda dito inesperadamente quase na hora de se separarem: Vamos começar pelo meu rubi sangue-de-pombo. Acho que é o que tenho de mais precioso. Avalie muito direitinho viu? Agora não fique muito assanhado com o que eu vou lhe dizer, mas quando fizer cinco anos de serviço aqui comigo (daqui a um ano, tia Brau), então a gema será sua (tia Brau). Se você for louco o bastante para vendê-la (nunca tia Brau), bem, não me importa, não estou lhe dizendo que vai ser sua? Não é você o único sobrinho do Munhoz? Você apura o que puder e aplica como quiser só que para mim um rubi desse tipo não tem preço! (tia Brau). E ele havia então se erguido ligeiramente da poltrona, curvado o dorso e lançado os braços para a frente, o que teria dado a um possível observador localizado em qualquer ponto da sala (menos à própria Maria Bráulia, que já abrira as pálpebras dos seus olhos interiores e só observava agora o que se movia do lado de cá, na câmara escura de suas divagações) a exata impressão de que iria no momento seguinte rojar-se de joelhos diante da tia, a seus pés. Porém havia então apenas lhe agarrado as mãos e as apertado demoradamente nas suas; e durante todo o tempo a sua parte posterior esteve suspensa no ar em um trêmulo e respeitoso equilíbrio. Mais tarde, depois da costumeira sessão do cafezinho, o diálogo foi retomado: Não, o aumento que me pede é impossível. Não seja tão pidão! Já não lhe prometi a jóia? Sei, sei, está apertado, vai tirando a sua parte dos aluguéis como sempre, posso adiantar alguma coisa. Se estou dizendo como sempre, como aumentar a porcentagem? Em setembro lhe dou um aumento. Se precisa de um dinheiro extra por que não arranca aquele casal choramingas da minha melhor casa no Paraíso e a aluga por um bom preço? Você leva de gratificação os dois primeiros aluguéis inteiros (tia Brau, a lei do inquilinato). Não quero saber. Um bom advogado é como um bom tintureiro dizia sempre o Munhoz. Pinta qualquer lei com as cores da sua bandeira! Estude advocacia (mas me formei em comunicação tia Brau). E não pratica, não pratica! (saí do emprego para ficar só com a senhora minha tia). Se fosse advogado seria outra coisa (vou pensar tia Brau). Você sempre diz isso. Pense mesmo. Pense. Em vista do que, antes de se dirigir para a porta ele ainda ficara ali parado de pé. O que repete agora relembrando a exortação; mais uma vez de pé diante de Maria Bráulia. A cabeça baixa e as sobrancelhas alçadas. Almejando passar um certo ar de submissão (educada e até certo ponto altiva, e que fosse o resultado de um longo hábito de respostas sintonizadas com seus desejos) misturado ao de uma reflexão vivaz (dando seguimento a um movimento sempre espontâneo e renovado em busca das melhores soluções para os seus negócios). Tem alguma dúvida porém quanto ao efeito alcançado. Pois em uma súbita visão vê ali parado diante da tia um ursão manso com o pêlo um pouco ralo, estropiado mesmo, talvez devido às andanças entre os humanos, ou pelo fato de nunca ter usado chapéu. Diversamente das aparições religiosas, porém, esta não lhe dirige a palavra reveladora (ou qualquer outra) e o seu mutismo se explica por sua identidade, que ele, no fundo, nunca duvidara qual fosse. Julião Munhoz finalmente chama o elevador e logo mais se encontra pisando terra firme, o solo do Itaim Bibi. Nove andares o separam do apartamento 91. Longe está da pequena mesa redonda paralisada no ar, lá no alto; do cisne de Murano no centro, deslizando tão velozmente através dos muitos anos de fartura vividos por Maria Bráulia Munhoz, com o majestoso porte refletindo-se na superfície polida do lago de espelho, que nem parece sair do lugar. Longe está de Maria Preta, que ora olha de baixo para cima, ora de cima para baixo, conforme as circunstâncias. Por isso seu rosto não se memoriza com facilidade e até nas fotografias dos álbuns da família Munhoz tem-se dificuldade em fixá-lo; é um rabisco, um ziguezague; as íris, além de subirem e descerem, rolam freqüentemente também para os lados, e os cantos dos olhos ficam iguais aos rabinhos dos ratos cinzentos. Zucti, somem; onde estão? Longe está do sol que se deposita na pequena varanda como uma bola de ouro enquanto aqui embaixo a tardinha já escurece nas entradas das lojas e as esquinas cruzam corredores de frio. Jurema irá encontrá-lo mais tarde, e hoje também Bento, para o chope com salaminho. Tudo considerado, o que fez de mais concreto nesse dia foi comer. Bento vai dar o murro de sempre na mesa quando souber dos sucessos do dia, mas Jurema irá se mostrar compreensiva, dirá que não se importa e que mais cedo do que ele pensa terão capital para o ponto de videopôquer. À noite não conseguirá fazer amor direito com Jurema, será obrigado a introduzir assuntos de digestão em um momento em que só deveriam sobreviver os amorosos, o que soará tão mal quanto aquela mistura (inevitável) da tia com jogos eletrônicos clandestinos, mas Jurema uma vez mais irá se mostrar compreensiva. E essa lembrança o leva de volta ao apartamento 91; e da compreensão jamais esgotada de Jurema retira força moral para se condoer de Maria Bráulia e de suas enxaquecas. Como estará passando? [...]