REMO MORÁN: Eu o vi pela primeira vez na rua Bucarel Eu o vi pela primeira vez na rua Bucareli, na Cidade do México, isto é, na adolescência, na zona indistinta e vacilante que pertencia aos poetas de ferro, numa noite carregada de neblina que obrigava os carros a trafegar com lentidão e que predispunha os pedestres a comentar, com regozijada estranheza, o fenômeno brumoso, tão incomum naquelas noites mexicanas, pelo menos até onde me lembro. Antes de ser apresentado a ele, na porta do café La Habana, ouvi sua voz, profunda, como de veludo, a única coisa que não mudou com o passar dos anos. Falou: é uma noite sob medida para o Jack. Referia-se a Jack, o Estripador, mas sua voz soou evocativa de terras sem lei, onde qualquer coisa seria possível. Éramos todos adolescentes, adolescentes cheios de energia, isso sim, e poetas, e ríamos. O desconhecido se chamava Gaspar Heredia, Gasparín para os amigos e inimigos gratuitos, mas lembro-me da neblina por baixo da porta giratória e dos destinos que iam e vinham. Mal se vislumbravam os rostos e as luzes, e a gente envolta naquela echarpe parecia enérgica e ignorante, fragmentada e inocente, como realmente éramos. Agora estamos a milhares de quilômetros do café La Habana, e a neblina, feita sob medida para Jack, o Estripador, é mais densa do que então. Da rua Bucareli, na Cidade do México, ao assassinato!, pensarão... O propósito deste relato é tentar persuadi-los do contrário... GASPAR HEREDIA: Cheguei a Z no meio da primavera Cheguei a Z no meio da primavera, numa noite de maio, vindo de Barcelona. Não me sobrava quase nada de dinheiro, mas isso não me preocupava, pois em Z me esperava um trabalho. Remo Morán, que eu não via fazia muitos anos mas de quem constantemente tivera notícias, salvo naquela época em que dele nada se soube, me ofereceu, por intermédio de uma amiga comum, um trabalho para a temporada, de maio a setembro. Devo esclarecer que não pedi o trabalho, que nem então nem antes tentei entrar em contato com ele e que nunca tive a intenção de viver em Z. É verdade que tínhamos sido amigos, mas isso fazia muito tempo, e não sou dos que vão atrás de caridade. Até então morava num apartamento que dividia com outras três pessoas, no bairro chinês, e as coisas não iam tão mal para mim como se poderia imaginar. Minha situação legal na Espanha, salvo nos primeiros meses, era, para dizer de uma forma suave, desesperadora: não tenho visto de residência, não tenho visto de trabalho, vivo numa espécie de purgatório indefinido à espera de conseguir dinheiro suficiente para bater as asas ou pagar um advogado que legalize minha situação. Claro, esse dia é um dia utópico, pelo menos para os estrangeiros que, feito eu, pouco ou nada possuem. De todo modo, as coisas não iam mal para mim. Por muito tempo andei fazendo uns bicos, vendendo numa lojinha da Rambla ou costurando numa Singer caindo aos pedaços bolsas de couro para uma fábrica clandestina, e assim comia, ia ao cinema e pagava a moradia. Um dia conheci Mónica, uma chilena que tinha uma banquinha na Rambla e, conversando, descobrimos que ambos, em diferentes épocas da nossa vida, eu anos antes, ela na Europa e de forma mais regular, tínhamos sido amigos de Remo Morán. Por ela soube que ele agora vivia em Z (eu sabia que ele vivia na Espanha, mas não sabia onde) e que era imperdoável que na minha atual situação não fosse visitá-lo ou não lhe telefonasse. Para lhe pedir ajuda! Claro que não fiz nada; a distância entre mim e Remo me parecia intransponível, e eu também não estava a fim de incomodá-lo. De modo que continuei vivendo, ou vivendo mal, depende, até que um dia Mónica me contou ter visto Remo Morán num bar de Barcelona e que, depois de lhe explicar a minha situação, ele dissera que era para eu partir imediatamente para Z, porque lá poderia morar e trabalhar pelo menos durante a temporada de verão. Morán se lembrava de mim! A verdade, devo reconhecer, é que eu não tinha nada melhor e que as perspectivas até aquele momento eram negras como um barril de petróleo. Além do mais, a proposta me emocionou. Nada me prendia a Barcelona, eu acabara de sair da pior gripe da minha vida (cheguei a Z ainda com febre), a simples idéia de viver cinco meses seguidos à beira-mar me fazia sorrir como um boboca, era só pegar o trem da costa e ir embora. Dito e feito: enfiei na mochila os livros e a roupa e me mandei. Tudo que não coube, dei de presente. Ao deixar para trás a estação de Francia, pensei que nunca mais tornaria a viver em Barcelona. Para trás e para fora de mim! Sem dor nem amargura! Na altura de Mataró comecei a esquecer todos os rostos... Mas, claro, isso é uma maneira de dizer, nada se esquece... ENRIC ROSQUELLES: Até há alguns anos meu caráter era proverbialmente agradável Até há alguns anos meu caráter era proverbialmente agradável; disso dão fé meus familiares, meus colegas, meus subordinados, todas as pessoas que tiveram a oportunidade de se relacionar comigo. Todos dirão que o indivíduo menos indicado para se ver envolvido num crime sou eu. Meus hábitos são regrados e até severos. Fumo pouco, bebo pouco, quase não saio de noite. Minha capacidade de trabalho é conhecida: se necessário posso prolongar minha jornada de trabalho até dezesseis horas por dia, e meu rendimento não cai. Aos vinte e dois anos obtive o diploma de psicólogo e sem falsa modéstia devo salientar que fui um dos melhores alunos da minha turma. Atualmente estudo direito, curso que faz tempo deveria ter terminado, eu sei, mas preferi ir com calma. Não tenho pressa. A verdade é que muitas vezes achei que cometi um erro ao me matricular em direito, para que fazer isso, não é mesmo? Um curso que à medida que se passaram os anos foi se tornando cada vez mais pesado. O que não significa que vou desistir. Nunca desisto. Às vezes sou lento, às vezes sou rápido, metade tartaruga, metade Aquiles, mas nunca desisto. Aliás, notemos, não é fácil trabalhar e estudar ao mesmo tempo, e, como já disse, meu trabalho costuma ser intenso e absorvente. A culpa normalmente é minha. Era eu que determinava o ritmo. Entre parênteses, permitam-me uma pergunta: que pretendia eu com isso tudo? Não sei. Em alguns momentos os fatos me suplantam. Às vezes acho que fiz o pior dos papéis. Outras vezes acho que durante quase todo aquele tempo andei com uma venda nos olhos. As noites que ultimamente passei em branco não me fizeram encontrar as respostas. Também não foram propícias as vexações e os insultos que, segundo dizem, tive recentemente de suportar. A única coisa certa é que comecei a assumir responsabilidades cedo demais. Durante um breve e feliz período da minha vida trabalhei como psicólogo num centro de crianças desajustadas. Devia ter ficado lá, mas há coisas que a gente não entende antes de muitos anos se passarem. Por outro lado, creio que é normal que um jovem tenha ambições, desejo de superação, metas. Eu, pelo menos, tinha. Desse modo, cheguei a Z pouco depois da primeira vitória socialista nas eleições municipais. Pilar precisava de alguém para dirigir a Área de Serviços Pessoais, e eu fui o escolhido. Meu currículo não era extraordinário, mas reunia as condições necessárias para levar adiante aquele trabalho delicado, quase experimental em tantas prefeituras socialistas. Claro, também tenho a carteirinha do partido (da qual serei privado pública e exemplarmente dentro em breve, se é que já não o fizeram), mas isso não teve nada a ver com a decisão finalmente tomada: consegui meu cargo depois de ser observado à lupa, e os primeiros seis meses, além de instáveis, foram exaustivos. Portanto, permitam-me erguer aqui minha voz contra aqueles que agora querem envolver Pilar nessa sujeira. Ela não me empregou por amizade; se bem que, depois de dois mandatos (em Z adoram a sua prefeita, então não têm por que reclamar), nasceu entre nós algo que me honra chamar desta forma: amizade de companheiros de canseiras e de ilusões, e que no meu caso é extensiva ao seu digníssimo esposo, meu xará Enric Gibert i Vilamajó. Os chacais disfarçados de jornalistas podem dizer o que quiserem. Se por acaso Pilar cometeu algum pecado, foi o de depositar cada vez mais sua confiança em mim. Se observarmos o estado dos diversos departamentos antes da minha chegada e, digamos, dois anos depois, a conclusão é imediata: eu era o motor da prefeitura de Z, seus músculos e cérebro. Não importa quão cansado estivesse, sempre levava meu trabalho adiante e, em não poucas ocasiões, o dos outros. Também suscitei rancores e invejas, inclusive entre gente do meu próprio círculo. Sei que muitos dos meus subordinados me odiavam secretamente. Meu caráter, com o passar do tempo, foi ficando seco e vazio de esperanças. Confesso que nunca pensei em ficar em Z toda minha vida, um profissional sempre deve almejar mais; no meu caso, teria adorado ser convidado para assumir um cargo similar em Barcelona ou pelo menos em Gerona. Muitas vezes sonhei, não me envergonha dizê-lo, que o prefeito de uma grande cidade me punha à frente de um arriscado projeto de prevenção ou de luta contra as drogas. Em Z eu já tinha feito de tudo! Um dia Pilar deixaria de ser prefeita e o que ia ser de mim, ante que classe de políticos teria de me arrastar! Pavores noturnos que eu aplacava ao dirigir cada noite de volta para casa. Cada noite, sozinho e esgotado. Meu Deus, quantas coisas precisei fazer, quanto tive de engolir e digerir a sós com a minha alma. Até que conheci Nuria e caiu nas minhas mãos o projeto do Palácio Benvingut...