A concertista Mamãe me acordou dizendo para eu me levantar, dobrar a colcha e a esticar no pé da cama, sem deixar as pontas arrastando no chão, que devia estar cheio de pulgas do cachorro que dorme no meu quarto - era incrível como eu não sentia o fedor do animal! -, e que eu não demorasse para me vestir, descesse logo, e que acordasse meu irmão. E que era também para eu abrir a janela, para que o quarto ventilasse. Estava quase chegando o dia da audição. Meu Deus, como o tempo voa!, ela disse, saindo do quarto. Escutei tudo de olhos fechados e remelados. Quando eu crescer vou pra um lugar que esqueci o nome, e que fica do outro lado do mundo. E lá tem canguru. Será que deixam a gente chegar perto deles? Mamãe voltou a aparecer no quarto: era para eu não voltar do colégio suja de pilot, o tempo estava feio e a outra blusa ainda estava molhada. E bateu a porta. Deve ser engraçada a vida dos cangurus, aos pulos. E como o filhote nasce na bolsa? - Em que condições estão esses tênis! - disse mamãe, assim que me viu chegando do colégio com a empregada. Ela tinha certeza que eu havia pisado nas poças, o tempo estava horrível, não parava de chover, e eu nem podia pensar em ficar resfriada na semana da audição. Seria um desastre. Como eu iria me apresentar? Com o nariz escorrendo? Resfriados demoram para passar. A empregada disse que eu tinha vindo debaixo do guarda-chuva, e mamãe se virou para conversar com meu irmão, que não toma banho. Da última vez ele disse que abriu o chuveiro, sentou no chão do banheiro e ficou lendo revistinha. E se eu contasse pra mamãe ele me dava um cacete. Quando mamãe terminou de fazer carinho na cabeça dele, ela mandou eu trocar o uniforme e me sentar para comer, não antes de lavar as mãos e passar um pente no cabelo, a franja estava entrando nos olhos. E ao terminar o almoço tinha os deveres, depois a aula de balé, e a empregada já ia pôr a comida na mesa. - Olha o tempo correndo! - disse, apontando para a janela. A tia de mamãe, que passava dias na nossa casa chorando muito porque tinha perdido a gata dela de adoração, disse que a moça (a empregada) estava uma tripa de cansaço. Bastava olhar para ela. Eu ia perguntar o que era tripa, mas mamãe quase enfiou uma meia na minha boca, que ela tinha acabado de enrolar. Nessa noite sonhei que a tia estava presa dentro de um pote de tinta. Os cabelos dela boiavam vermelhos. Não sei como enfiaram ela lá dentro. Será que do outro lado só tem canguru, ou tem outros bichos também? Deve ter esquilo, zebra e pulga, porque em todo lugar tem pulga. Aqui em casa estão todas no Brutus, no meu cachorro. Assim que ele chegou na nossa casa se arriou nas patas e fez xixi no meio da sala. "Até tu faz cagada? Brutus!", meu pai disse. E o cachorro balançou a cabeça. Papai então disse que ele tinha concordado com o nome. Antes do jantar mamãe disse que a professora de piano devia estar chegando, e, como eu sabia, ela era uma mulher muito ocupada, cheia de compromissos, portanto que eu me apressasse, e prestasse muita atenção na aula porque eu seria a primeira a tocar; abriria a audição. Uma deferência por parte de sua mestra. Não entendeu o que eu disse, não é? Não faz mal, eu também não entendia o que minha mãe falava. E é uma pena que sua avó não esteja mais neste mundo para te assistir. Ela dizia que você tinha mãos de concertista, e acertou em cheio! É um dom!, um dom!, acabou de falar batendo palma. - É a cara da mãe! - a professora disse, logo ao chegar, e deu uma palmadinha no meu rosto. Minha professora tem bigode. Vai ver ela era homem, e quando estava pra nascer o peru caiu e ficou o bigode. Mamãe perguntou se eu estava ouvindo ela mandar eu lavar as mãos e os braços para a aula. Não sabia como eu conseguia sujar os braços. - Você se esfrega no chão? Brincando de quê?... - perguntou. - Hein? - eu disse. Depois ela avisou que iria inspecionar meus ouvidos, que deviam estar cheios de cera porque eu nunca escutava o que ela dizia. Quando a aula terminou, mamãe mandou que eu continuasse tocando a música do concerto. À exaustão. E eu não sabia o que era à exaustão, mas já estava cansada. E a toda hora ela passava atrás de mim e esticava minhas costas, que estavam doendo. Muito tempo depois, quando eu já estava enjoada de tocar, ela disse que eu podia ir dormir. Mas antes desse boa-noite a minha tia, fosse delicada com os mais velhos. Quando a tia se abaixou para me dar um beijo, caiu um pedaço da cara dela. Mostrei para mamãe, que assistia televisão ao lado de papai, e ela disse que era pancake, e meu pai falou que era reboco. Mamãe fez psst!, depois ela disse que a maquiagem deve ter secado e então tinha caído. E que era uma coisa muito comum em senhoras de idade. Velhas, papai disse, rindo. Depois mamãe mandou eu vestir a camisola e não esquecer de apagar a luz do corredor, e que tirasse o cachorro do meu quarto. O barulho que ele fazia de noite se levantando e despencando de um lado para o outro atrapalhava o sono dela e o do meu pai. Nesse momento meu irmão passou por nós com seu fedor. Mamãe nem nota que ele não toma banho. Diz que ele só tira dez em matemática. Papai e ela vivem discutindo se meu irmão vai ser diplomata ou embaixador. Eu acho que ele vai ser lixeiro. Até Brutus se levanta quando meu irmão passa. Dei boa-noite para os dois e chamei baixinho meu cachorro pra irmos para o quarto. - Vamos, levanta!, anda, já passa da hora, chegou o dia da audição, e não saia do quarto sem abrir a janela. Fica uma fedentina onde esse cachorro dorme! - disse mamãe, me sacudindo e, em seguida, batendo a porta do quarto. Na mesa do café, eu quis fazer uma pergunta, mas mamãe corria de um lado para o outro, chamando a empregada, enxotando Brutus, ajeitando a cúpula do abajur. Nesse dia, ela fez questão de me dar banho, ensaboando meu corpo várias vezes; depois, enquanto me enxugava, disse que eu ia brilhar de todas as maneiras. Ela tinha certeza que sua filha estava dando o primeiro passo em direção a uma grande carreira! Algo dizia a ela que isso iria acontecer. Quantas alegrias teríamos pela frente! Quantas! Havia comprado um vestido novo pra mim... uma gracinha!, disse, tirando-o de dentro de uma caixa e sacudindo-o na minha frente. Em seguida enfiou-o pela minha cabeça, e ali ele ficou, preso, me sufocando, ela então começou a puxá-lo para baixo, mas o vestido não saía de onde estava, e mamãe dizia para eu ficar quieta, e eu estava parada, sem me mexer e sem conseguir respirar direito, quando então ela deu vários puxões: - Maravilha! Amoldou-se inteiramente ao seu corpo... - disse, alisando-o. Depois ela sentou na beira da cama, mandou que eu me ajoelhasse e começou a fazer o rabo-de-cavalo. Sempre dói na hora que mamãe me penteia, e depois continua doendo. Para terminar, espalhou perfume no meu corpo, fazendo meu cachorro espirrar, ela então o empurrou com o pé para fora do quarto dizendo que estávamos atrasadas. - O tempo está correndo lá fora! - voltou a dizer e a apontar para a janela. E continuou me arrumando, limpando meus ouvidos com cotonete. Enquanto dava os últimos retoques, segundo disse, perguntei se ela queria ter uma bolsa igual à do canguru. Cangurua, consertei. Que bobagem é essa?, perguntou. Depois disse que devia ser nervoso. Estávamos todos uma pilha. Em seguida, ela saiu correndo e gritando os nomes do meu pai e do meu irmão, e eles saíram do quarto andando devagar. Fomos os quatro em direção à rua, com mamãe à frente, dizendo vamos, vamos e fazendo sinal para os táxis. Ela achava melhor papai não dirigir porque na hora do almoço ele tinha exagerado nas cervejas e podia entrar na traseira de um caminhão. Adeus, audição! Tudo isso ela disse quase correndo na nossa frente. Meu pai fumava soltando baforadas para o alto e mamãe mandava que eles se apressassem, ele e meu irmão, que botava a língua pra mim; ao cruzarmos a portaria do prédio onde seria a audição, mamãe começou a sorrir para os lados e papai disse para ela não se cansar porque muitas daquelas pessoas não deviam fazer parte do evento. Ora, Oswaldo, ela disse. Sim, Dirce, meu pai falou. Quando entramos na sala da audição, já havia pessoas lá dentro, sentadas, com sono, e um velho, caído na cadeira, apitava. Igual à minha avó quando dormia. Nesse momento, mamãe viu ao longe a professora, abanou a mão pra ela, que veio correndo, tropeçando, dizendo que a casa estava cheia, e o bigode dela nesse dia estava molhado. Depois ela me pegou pela mão e, me chamando de mascote, mandou que eu me despedisse da família, e que só pensasse na execução, em seus detalhes, na sonoridade de cada acorde. Mamãe movimentava a cabeça, concordando com o que a professora dizia. Depois de tudo o que disse, saiu de mão dada comigo e entramos pelo lado da sala, quando então ela abriu uma porta e eu vi uma porção de moças com as saias dos vestidos estufadas feito balão. Eram minhas colegas de audição, a professora disse, apresentando-as. Elas então se abaixaram para brincar comigo, perguntando o que eu ia tocar, e quando respondi, todas riram, e beliscaram minha bochecha, e passaram a mão no meu rabo-de-cavalo, me chamando de fofa. A professora sentou, mas se levantava a todo momento, tirava um lenço da bolsa e passava-o na boca, e voltava a guardá-lo, dizendo tudo bem, tudo bem. Depois contou que estava suando e me mostrou o braço, mas eu não vi nada, ela então falou que já que todos haviam chegado ela diria umas palavras e, em seguida, me chamaria ao palco. Que eu ficasse atenta. E apontou para onde eu deveria entrar. Em seguida se benzeu e saiu andando por um corredor, se sacudindo e passando as mãos no cabelo. Logo depois escutei meu nome, e as moças me mandaram ir atrás da professora; assim que me vi no palco, ao lado dela, ouvi o assobio de mamãe, procurei-a, mas não enxergava onde ela podia estar. Nesse instante, escutei a voz da professora dizendo que eu interpretaria Cai cai balão. Fui direto para o piano, que já estava de tampa aberta, e logo que me sentei pus os dedos nas teclas, mas não sei o que aconteceu que esqueci como a música começava. E também como acabava. De repente, escutei a professora cantarolar Cai cai balão baixinho lá dentro, acompanhada das moças; na platéia umas pessoas começaram a rir, e meu irmão chutava os pés da cadeira. Eu sei como ele ri. Abaixei a cabeça e escondi meu rosto entre os braços, então senti alguém sentando ao meu lado e dizendo vamos. Aí a música voltou para os meus dedos, e a professora e eu tocamos muitas vezes Cai cai balão; a platéia aplaudia, e mamãe assobiava sem parar. No final, a professora mandou que eu ficasse ali, em pé, no proscênio, ela disse, para os agradecimentos. Fiquei na frente de todo mundo. As pessoas continuavam a aplaudir, menos meu irmão, que batia com os pés na cadeira, vermelho, rindo. Então, dali mesmo onde eu estava, vi minha mãe, e, olhando pra ela, eu disse que não queria mais ser concertista, e as pessoas riram alto, se sacudindo nas cadeiras, e meu irmão se jogou para os lados, quase caindo de tanto rir. Mamãe tentou se levantar, mas papai segurou o braço dela, depois ele escorregou na cadeira desaparecendo, ela então ficou gesticulando, e eu continuei ali, esperando a professora vir me buscar. Olhei para o lado pra ver se ela vinha, e as moças sopraram que a professora estava no banheiro. As risadas então aumentaram. E teve até grito.