Maio findava, haviam já começado a soprar as monções de sudoeste, mas naquele entardecer mormacento fizera-se uma súbita calmaria em toda a região. Era como se a abóbada celeste, emborcada como uma ventosa sobre a terra, tivesse sugado quase todo o ar dum largo trato de planície, montanha e mar. E a velha cidade imperial, de tão ilustres palácios, templos e tumbas, ali plantada sobre ambas as margens do rio, parecia um organismo vivo, palpitante e intumescido, a sufocar à míngua de oxigênio. Fazia um calor ardente de febre. A luz do sol tingia dum amarelo de maleita a atmosfera úmida e morta, em que havia algo de vagamente decomposto. Dos fossos atufados de lótus que cercavam a cidadela murada, por entre enxames de mosquitos desprendia-se uma fragrância adocicada, de mistura com um bafio de lodo. Pinheiros perfilavam-se plácidos no jardim do Palácio da Harmonia Perfeita. Na esplanada do museu alongava-se cada vez mais sobre as lajes a sombra das estátuas de pedra de mandarins d'antanho. À frente dum pagode, no ponto em que na manhã daquele mesmo dia uma estudante budista de dezessete anos se suicidara, ateando fogo às vestes ensopadas de gasolina, ficara sobre o pavimento uma nódoa escura e gordurosa. O tráfego, que começara a engrossar depois das cinco horas, atingia agora a sua densidade máxima. Milhares de automóveis, bicicletas, motonetas e velotáxis rodavam, num desconcerto de buzinas, pelas ruas e avenidas daquela antiga capital provinciana, alma e cérebro duma nação dividida. Os veículos de duas rodas deslizavam sinuosos, com uma graça ágil e fácil de peixes num aquário pululante. Nas calçadas, muitas delas orladas de árvores - jasmins-manga, palmeiras, mangueiras, coqueiros e mangostões -, caminhavam homens e mulheres em geral de pequeno porte, epidermes acobreadas, faces de malares salientes, olhos oblíquos. Tinham um ar quase equívoco e uma certa leveza delgada de figurinhas de papel. Os homens, em sua maioria vestidos à ocidental, estavam em mangas de camisa e com as cabeças descobertas, mas viam-se também entre eles outros nativos metidos em seus pijamas dum preto ruço ou de cores indefinidas, os olhos meio escondidos sob os chapéus cônicos de palha de bambu. Todo aquele ir e vir de criaturas humanas e veículos sobre as pedras e o asfalto ainda quentes da soalheira do dia, os contrastes de luz e sombra, a névoa de azulado leite que a fumaça de gasolina e óleo queimados deixava no ar variolado pelas tachas escarlates e estáticas das flores dos flamboyants e pelas manchas móveis e vaporosas dos ao dais das mulheres, em tons de pastel - tudo isso produzia no observador esfumadas sensações de cor e volume, mais que percepções nítidas de desenho, de sorte que algumas daquelas ruas sugeriam pinturas impressionistas que tivessem ganho animação e voz. Juncos, sampanas e outras embarcações pequenas coalhavam as águas, umas em movimento, outras atracadas em pencas ao longo de ambas as margens do rio, formando aldeamentos fluviais. Do ponto de observação do piloto do helicóptero militar que em dado momento sobrevoou a cidade, de volta duma missão de reconhecimento, os veículos que em linha dupla atravessavam a ponte grande, lembravam vermes a rastejarem disciplinados dentro das carcaças de monstros antediluvianos. Um incidente ocorrido ao pé das muralhas da cidadela, perto do Portão Imperial, interrompeu o tráfego por alguns minutos. Suspeitando de um vendedor de frutas, um policial derribara com um pontapé o seu balaio, e, entre as mangas e romãs que rolaram pela calçada, descobrira uma meia dúzia de explosivos plásticos. O fruteiro rompeu a correr cidadela adentro, mas foi logo subjugado por outro guarda. Populares assistiram à cena aparentemente apáticos e neutros. À frente do mercado central, uma velha que tentava atravessar a rua, equilibrando sobre o ombro uma vara de cada uma de cujas extremidades pendia um cesto contendo gansos, foi atropelada por uma motocicleta e atirada ao solo. As aves, de pés amarrados, romperam a voejar, grasnando assustadas por entre os veículos, enquanto a mulher se deixava ficar estendida na sarjeta, chorando mansinho. Nas várzeas e arrozais que cercavam a cidade, estendendo-se até à cordilheira, a oeste, e até ao mar, a leste, os camponeses começavam a recolher-se às suas palhoças, onde, encerrados com seus familiares, enfrentariam os azares da noite. A essa hora já se sabia na cidade e arredores que guerrilheiros comunistas, vindos das montanhas à hora da sesta, haviam atacado de surpresa uma aldeia situada a poucos quilômetros ao sul da zona desmilitarizada, matando e ferindo muitos dos seus habitantes, pilhando e incendiando as suas choupanas. Tropas do exército regular do Sul, ajudadas pelos seus aliados brancos de além-mar, tinham sido levadas em helicópteros para o lugar onde se presumia estivesse o inimigo, mas este se havia sumido por completo. Um ancião, envolto em sua toga cerimonial de seda preta e acompanhado de seu primogênito, saiu do grande templo aonde tinha ido queimar incenso e prosternar-se diante do altar de seus ancestrais. Parou à porta, ficou por alguns instantes a contemplar os muros da Cidade Proibida e depois ergueu os olhos para o céu. Seus lábios chegaram a mover-se como se ele fosse dizer alguma coisa; mas permaneceu calado. O moço baixou a cabeça, respeitando o silêncio do velho. Sabia o quanto doíam no espírito e na carne daquele confucionista devoto as violências que dilaceravam a sua terra e a sua gente. Como se não bastasse aquela guerra fratricida entre Norte e Sul, irrompera fazia pouco, insuflada pelos bonzos, outra revolta contra o novo Governo. O velho presenciara demonstrações populares nas ruas de sua cidade: por trás de barricadas feitas com mesas, cadeiras e até altares domésticos, centenas de estudantes tinham enfrentado as tropas da Polícia e do Exército. Pagodes transformaram-se em praças de guerra. Soldados do Governo haviam feito fogo contra o povo... Na Capital do país, no extremo sul, um sacerdote budista dos mais representativos, como sinal de protesto contra os desmandos do Governo, fazia a greve da fome. Os suicídios rituais continuavam: havia poucas horas, o ancião tivera nas mãos farrapos carbonizados do vestido da menina que se imolara aquela manhã, consumindo-se numa labareda. Meneou tristemente a cabeça e, sempre em silêncio e seguido pelo filho, continuou o seu caminho, atravessando o jardim do templo, por entre grifos de pedra. Naquele mesmo instante, sob o toldo fechado duma sampana atracada à margem esquerda do rio, um guerrilheiro comunista, cuja cabeça tinha sido posta a prêmio pelo Governo do Sul, mas que entrava e saía incólume da cidade, onde contava com centenas de parentes, amigos e cúmplices, conversava em voz baixa com dois rapazes, dando-lhes instruções. Sua voz era um crepitar de palha. Tinha estendida a seus pés uma planta rústica da cidade. Os dois moços escutavam o líder com grave atenção, e a pupila de ambos refletia a imagem daquele homem franzino, de idade indefinida, rosto emaciado e anguloso e olhar autoritário. De quando em quando sacudiam a cabeça num assentimento. O terceiro irmão estava de sentinela, na proa da embarcação, olhando furtivamente de um lado para outro, enquanto uma rapariga, acocorada na popa, olhava fixamente para a panela de ferro em que fervia o arroz, sobre um fogo de gravetos. A poucos quilômetros dali, sentado sobre os calcanhares, no meio dum arrozal, um camponês idoso, de rosto enrugado e cor de ocre, fumava e sorria para a armadilha de bambu onde acabava de cair a pomba-rola que no dia seguinte lhe ia servir de chamariz para as outras pombas que pretendia apanhar. Imaginou-se a caminho do mercado da cidade. Venderia as aves por um bom preço: dinheiro para comprar fumo e sal... sim, e azeite para a lâmpada. Seus lábios, dum vermelho-pardacento, abriram-se num sorriso sem dentes. E o velho ficou a contemplar por trás da fumaça do cachimbo a brasa do sol, que descia para as bandas da cordilheira. Havia pouco mais de uma semana, o coronel branco escrevera à sua filha adolescente - da qual o separavam milhares de milhas de terra e mar - uma carta em que, entre outras histórias isentas de qualquer resíduo sangrento, lhe contara que, nos jardins do edifício onde se instalara como governador militar provisório da cidade, "florescem orquídeas e metralhadoras, lírios aquáticos e baionetas". E agora, à janela de seu gabinete de trabalho, naquele fim de tarde viscoso e opressivo, seguia com o olhar amortecido de fadiga os vultos dos soldados de sua polícia militar, que se moviam como perdigueiros por entre as árvores e arbustos daquela selva em miniatura, à cata de algum terrorista que porventura ali se houvesse infiltrado. Essa operação se repetia muitas vezes durante o dia e a noite. O inimigo era esquivo, ardiloso e dotado duma tenacidade de mosca e duma capacidade de pulga ou piolho para insinuar-se, despercebido, pelos menores interstícios. Como o camaleão, podia tornar-se invisível em qualquer terreno. E nunca se sabia como, quando e com que armas ia atacar. O casarão, noutros tempos sede da Administração Militar do país europeu que por vários anos ocupara aquela península do Sudeste da Ásia, estava rodeado por um muro de três metros, sobre o qual fora recentemente erguida uma tela de arame grosso, da mesma altura, para proteger o recinto contra granadas. O coronel passou o lenço já úmido de suor pelo rosto e pelo pescoço, e começou a escrever mentalmente uma carta. Filha querida: Entardece, e de minha janela vejo o disco avermelhado do sol descendo sobre as montanhas... Mas que tolice! O Sol não é um disco e o Sol não se move com relação à Terra. Um soldado profissional não se deve entregar a metáforas poéticas. Tem de ser antes de tudo um lógico. Mas qual! Que força pode ter o pensamento lógico numa terra em que predomina o pensamento mágico? Ficou por algum tempo a escutar o rolar surdo do tráfego. Depois olhou para as muralhas que cercavam o jardim e sentiu um apagado mal-estar. Continuou a carta imaginária: Quando menino, teu pai sonhava ser um dia comandante de submarino, mas um teste psicológico cortou-lhe os planos, provando que ele é um claustrófobo, isto é, uma dessas pessoas que não suportam os ambientes fechados. Tive então de optar pelo corpo de fuzileiros navais, que vocês moças acham tão destemido e romântico. E aqui estou eu agora encerrado como um monge neste claustro cercado de altos muros. E faz quarenta e oito horas que praticamente não abandono esta sala e a minha mesa de trabalho, onde se empilham papéis e problemas... Eu, que tanto detesto a burocracia! Uma dura missão de combate seria mil vezes preferível a esta responsabilidade de governar, ainda que por poucos dias, uma cidade asiática agitada por lutas internas, tudo isso perigosamente em face dum inimigo comum que não nos dá trégua. Soltou um suspiro de impaciência consigo mesmo. Como poderia escrever uma carta nesses termos a uma criança de quinze anos para quem uma guerra devia ser apenas uma série de episódios heróico-romanescos de televisão e cinema? Voltou-se e mediu com o olhar aquela sala mobiliada às pressas, numa improvisação pragmática: a ampla mesa de trabalho munida de três telefones, o arquivo de aço, verde-oliva como seu uniforme, meia dúzia de cadeiras singelas sem conforto nem história... As hélices do grande ventilador giravam e zumbiam, sem contudo conseguirem atenuar o calor ambiente, pois o ar que deslocavam era grosso e morno. O tapete de linóleo lembrava ao coronel o da cozinha de sua casa na pátria distante. (A imagem aborrecida de sua mulher cruzou-lhe a mente.) Uma das paredes estava coberta de mapas daquela região, do território inimigo e dos países vizinhos supostamente neutros naquela guerra. A única peça daquele gabinete que parecia ter conotações humanas era um divã de estofo desbotado e seboso, possivelmente relíquia - achava o comandante - duma administração de funcionários epicuristas que sabiam entremear o trabalho cotidiano de interlúdios eróticos. Ouvia-se, meio abafado pelas grossas paredes, o matraquear de máquinas de escrever vindo das salas contíguas. Apesar de saber que naquele momento cerca de oitenta pessoas trabalhavam naquele edifício, todas ao alcance dum chamado seu, o coronel se sentia tão solitário e no tempo e no espaço como se o tivessem abandonado num planeta deserto, distante da Terra mil anos-luz. Teve de súbito a sensação de estar encerrado a afogar-se num boião cheio de óleo quente. (Para o menino que lia As mil e uma noites, o Oriente era um pouco Morgiana, a serva de Ali Babá, despejando azeite escaldante nos odres em que se escondiam os ladrões.) Suava abundantemente. Sentia o blusão do uniforme colado ao tórax, como se entre a sua pele e a fazenda houvesse uma camada de goma-arábica. Não dormira um minuto sequer naquelas últimas vinte e quatro horas. Sentia um vácuo no crânio e os globos oculares lhe doíam, como que machucados. Bebericando café preto e forte, sem açúcar, e fumando cigarro sobre cigarro, passara em claro toda a noite anterior, dirigindo dali de seu gabinete, pelo telefone e pelo rádio, as operações de seus soldados que davam batidas em lugares suspeitos, procurando localizar e apreender o grande contrabando de bombas plásticas que seus informantes lhe garantiam ter entrado na cidade no dia anterior. E até aquele momento nada se encontrara, a não ser uma pequena quantidade de granadas de mão e explosivos de fabricação doméstica, escondidos em cestos de frutas de vendedores de rua, em porões suburbanos e numa que outra sampana. Era exasperante! Havia dois dias, uma bomba explodira no saguão do Hotel Continental, o mais importante da cidade, matando oito pessoas e ferindo vinte e cinco. Poucas horas mais tarde, um plástico detonara no recinto do Cinema Delta, fazendo ainda mais vítimas, pois os que não haviam sido mortos ou mutilados pela explosão, tinham sido espezinhados quando em pânico procuravam fugir da sala. O general lhe confiara a custódia daquela cidade durante o período de negociações entre o Governo do Sul e os bonzos. A revolta budista cessara praticamente com a rendição da cidade vizinha, seu último reduto. Agora o resto dependia de conversações ao redor duma mesa. Mas enquanto não se chegasse a um acordo definitivo de paz, cabia a ele a responsabilidade de manter a ordem naquela região. O motivo que seu comandante invocara para lhe entregar aquela missão era o de que ele compreendia a mentalidade oriental. Ridículo! Sentia-se naquele posto como um touro em loja de porcelanas... Despejou num copo de papel um pouco do chá frio temperado com sumo de limão que havia num jarro bojudo em cima da mesa. Levou-o à boca, bebeu dele com avidez, fazendo propositalmente o líquido escorrer-lhe ao longo da pele ardida do queixo, do pescoço dopeito. E o tênue cheiro de papel encerado do copo transportou-o à infância... Uma tarde, no saguão dum cinema... Ele devia ter uns doze anos... ou treze? Pôs um níquel na fenda dum vendedor automático de refrescos gelados... Via-se apertando o botão sob a palavra cereja... lembrava-se até do formato das letras... Depois comprara um cone de papel com pipocas recendentes a gordura vegetal... Por que lhe vinham à lembrança imagens desse dia e não das centenas de outros em que, em várias idades, bebera de copos de papel? Decerto era porque naquela tarde ele se escondera no lavatório do cinema, fechara-se num cubículo, sentara-se completamente vestido no vaso sanitário e ali fumara o seu primeiro cigarro, trêmulo de medo e gozo (ou náusea?) com uma dolorosa consciência de pecado, pensando no pai, pastor protestante, e no fogo do inferno com que ele vivia a ameaçá-lo. O coronel tomou um novo gole de chá. O cheiro de papel encerado dessa vez projetou-o num outro dia do passado... Tinha vinte e poucos anos e estava no piquenique em que conhecera a moça que dali a um ano viria a ser sua esposa... Era abril e as forsítias e os cornisos estavam floridos. Ambos beberam um brinde ao futuro: limonada em copos de papel. Eram metodistas e repudiavam o álcool. Ela tinha um riso primaveril e uma graça de salgueiro. O coronel amassou entre as mãos o copo de papel e atirou-o num ímpeto agressivo dentro da cesta de arame, ao pé da mesa. Passara o dia evitando pensar no seu caso doméstico. Esfregou as faces com a palma da mão e sentiu a aspereza da barba de doze horas. "Não vais te barbear, querido? Não esqueças que hoje vamos jantar na casa do coadjutor." Detestava o tom sacarino da voz da mulher. Educada num dos melhores colégios para moças do país, ela costumava pronunciar as palavras de maneira excessivamente correta e com entonação declamatória, como se estivesse sempre num palco. (Espetáculo de amadores, naturalmente.) Por outro lado, seus cuidados maternais para com ele o irritavam. Tinham quase a mesma idade, mas ela havia envelhecido prematuramente: seus cabelos estavam já completamente grisalhos e a pele do pescoço era um calendário inexorável. A filha lhes chegara um tanto tardiamente, o que para os três podia ser muito bom ou muito mau... Marido e mulher sempre haviam dormido em camas separadas, e fazia agora mais de dois anos que não mantinham relações carnais. Ela parecia achar aquilo não só muito cômodo mas também muito natural. "Seria ridículo, coração, na nossa idade, nós..." Ele, porém, que na vizinhança dos cinqüenta anos se sentia tão viril como aos trinta, passara a viver uma frustração que o deixava num desassossego irritado. Cessara de desejar o corpo da esposa. Aquela pobreza de ancas e seios, que na juventude lhe haviam dado um esquisito ar de adolescente (pajem, álamo, gazela), agora a tornavam assexuada (tábua, poste, bruxa de pano). E, à medida em que o tempo passava, ele a via portar-se cada vez mais como uma mãe com relação a ele - e mãe de filho único! As expressões "meu filhinho" ou mesmo o tratamento de "papai", que ela empregava habitualmente, causavam-lhe um certo mal-estar, uma espécie de vergonha, como se ambos vivessem em incesto. Mais de uma vez perdera a paciência com a mulher e lhe dissera palavras rudes ou sarcásticas. A criatura rompera a choramingar e isso provocara nele um sentimento de culpa que acabara por agravar-lhe a exasperação. "Tu me tratas como se eu fosse um dos teus soldados. O Exército te deformou, meu pobre querido!" O coronel reconhecia e deplorava a própria intolerância. Talvez sua filha fosse a única pessoa no mundo com quem jamais perdera a paciência: era com ela que gastava suas relutantes reservas de ternura e benevolência. Tornou a aproximar-se da janela. Olhou o mostrador do relógio-pulseira, num gesto automático, sem chegar a tomar consciência da hora que os ponteiros indicavam. Agora ocupava-lhe a mente, com uma nitidez perturbadora, a imagem da outra. A coisa acontecera dum modo que o levava a acreditar na fatalidade. Tinham-se conhecido numa festa na casa de amigos comuns, fazia pouco mais de dois anos. Fora ela quem o convidara para dançar. Sua mão pousara quente e provocante no seu pescoço, puxando seu rosto para junto do dela. Os corpos de ambos uniram-se como duas metades que finalmente se encontram e completam. Era uma fêmea dotada dum irresistível magnetismo animal, em tudo o oposto de sua esposa: cálida e opulenta de curvas e carnes, sólida sem ser gorda, descuidada, natural e livre no falar (tom, vocabulário, assunto, sintaxe) e, acima de tudo, capaz de soltar uma risada no meio dum salão cheio de gente, fosse onde fosse, uma dessas risadas que dão a impressão de vir das profundezas do ser, das entranhas, do útero, do sexo - vibrantes, orgásticas, quase cósmicas. Era divorciada e tinha três filhos, que viviam ora com ela ora com o ex-marido. Trabalhava numa casa de decoração interior e tinha trinta e dois anos. Tornaram-se amantes na semana seguinte. Passaram a encontrar-se em motéis. Ou então metiam-se no carro dele ou no dela e iam-se para os subúrbios. E ele entrou então no Jardim das Delícias, o Éden depois do pecado original e antes da expulsão. E o que havia de mais excitante nas relações entre ambos era que, diferentes do primeiro homem e da primeira mulher, eles não se amavam num tateante estado de inocência, mas aproveitavam a experiência de milênios de prática sexual. Ele se sentia rejuvenescer ao calor da paixão do corpo e do espírito daquela mulher extraordinária, que em tudo era a negação do mundo puritano em que ele nascera e fora criado, e do qual só a vida da caserna conseguira afastá-lo um pouco, e assim mesmo de maneira superficial. A lembrança dos momentos que passava com a amante tornava-lhe mais difícil suportar a presença da esposa legítima. Ademais, começava a sentir-se como um traidor perante a filha, como se a tivesse abandonado para adotar os filhos da outra, um rapaz e duas meninas que via com alguma freqüência, e que lhe davam um tratamento de tio. Desagradava-o profundamente aquela duplicidade de vida. Detestava a hipocrisia: não era homem de duas caras. E, ao cabo de certo tempo, a imagem do pai, um bispo metodista muito respeitado na sua comunidade, começou a persegui-lo como a encarnação mesma de sua culpa. Por outro lado, a amante insistia com ele para que pedisse divórcio à esposa e fosse viver com ela. Era-lhe também desagradável ter de fazer as coisas às escondidas. "Se eu me pude divorciar, por que você não há de poder também?" Ele explicava que não queria traumatizar a filha, que estava numa idade difícil e que vivia numa grande dependência sentimental tanto dele como da mãe. Na realidade - bem sabia -, a pessoa que tinha nas mãos a chave de seu cárcere, era o pai. E assim se foi passando o tempo, numa espécie de alternação de paraíso, inferno e, talvez mais freqüentemente, purgatório. E o pior - refletia agora o coronel, olhando mas sem ver o trecho de jardim que a janela enquadrava -, o pior eram as manhãs de domingo em que, seguindo velho hábito, ele e a esposa iam juntos ao culto divino na igreja da paróquia, e rezavam juntos, juntos cantavam salmos e escutavam sermões. O cheiro de verniz dos bancos do templo mesclava-se com o perfume de cravo que se exalava do corpo da mãe de sua filha. E ela cantava os hinos com seu trêmulo soprano, miniatural e grotescamente operático, movendo a cabeça como um passarinho e, nos trechos mais agudos da melodia, erguendo-se um pouco na ponta dos pés, sempre a sorrir inefavelmente, numa espécie de fervor religioso pré-fabricado. E a todas essas ele se sentia ridículo, farisaico, desprezível. E o resultado de tudo aquilo fora uma úlcera gástrica. O médico que consultara, não tardara a ir ao fundo do problema. "De pouco ou nada adiantará a dieta ou o remédio que lhe vou prescrever, se o senhor, coronel, não arrancar o mal pela raiz..." Era um homem retaco, meio encolhido, que respirava forte e costumava mirar os outros obliquamente com os olhos miúdos e vivos, sob sobrancelhas híspidas. "Divórcio? E a minha filha, doutor? E a minha mulher, de quem não tenho a menor queixa, e que talvez não suporte o golpe moral?" O homenzinho encolhera os ombros, murmurando: "Esses problemas eu não posso resolver. Talvez um analista...". Ele, um oficial do Exército de quase cinqüenta anos, deitar-se num divã e romper a falar como uma comadre, contando a um estranho os seus problemas mais recônditos? Repeliu, indignado, a sugestão, como se o médico lhe houvesse feito uma proposta indecorosa. Um dia em que estava particularmente agitado, forrou-se de coragem e foi à casa do pai. Fechou-se com ele numa sala e contou-lhe tudo, sentindo estranhamente que não fazia aquilo para pedir-lhe perdão ou conselho, nem mesmo para aliviar-se do peso dum segredo. Era um puro ato de agressão. No fundo talvez o que ele queria mesmo era escandalizar aquele moralista austero, como se de certo modo ele fosse o culpado de todo aquele embrulho sentimental e moral que o atormentava. O velho escutou-o num silêncio atônito, as mãos agarrando com força os braços na poltrona em que estava sentado. Depois de abundantes e iradas citações bíblicas, balbuciou: "Que decepção! O meu filho, o meu único filho, de quem tanto eu me orgulhava... cometendo adultério com uma... uma...". Calou-se, e quando tornou a falar foi no tom dum profeta antigo: "Pois se queres matar de desgosto teu pai e tua mãe, vai e pede divórcio à limpa e digna mulher que recebeste como esposa legítima perante Deus e o mundo. Será um belo espetáculo! Já ouço as murmurações... O filho do bispo metodista separou-se da esposa legítima para casar-se com uma divorciada com quem vive em pecado há mais de um ano. Um belo exemplo para a comunidade! Já pensaste na tua filha? Que vai ser dela? Já... já...". Tornou a cair em silêncio. E por fim, como estava habituado a fazer sempre que a mulher ou os paroquianos o contrariavam, recorreu ao seu apocalipse particular e simulou um dos seus famosos ataques cardíacos. Começou a respirar de boca aberta, como sufocado, espalmou a mão sobre o peito... O farsante! Sua face continuava com a rosada cor natural... E então o filho resolvera, como um bom jogador de pôquer, "pagar para ver". Continuara imóvel. O pai tirara duma caixinha de metal dourado uma pastilha de trinitrina e pusera-a debaixo da língua. Aquela era a tragicomédia que o velho costumava encenar quando queria sensibilizar a mulher, que havia mais de meio século o servia como uma criada e lhe aturava as impertinências. Era egocêntrico e tirânico. O que lhe importava acima de tudo era manter a sua imagem na comunidade. Vendo que o filho não corria ao telefone para chamar o médico nem fazia qualquer gesto de socorro, o velho balbuciara, sentido: "Pouco se te dá que teu pai morra. O que te importa são as fomes da tua carne mortal. Pois então vai! Mas não esperes a minha aprovação, a minha bênção para a loucura que pensas cometer. Lembra-te de Deus Nosso Senhor, que tudo vê e tudo sabe e julga...". O comandante agora olhava fixamente para a copa duma mangueira. No jardim, as sombras se acentuavam. Alguém soltou uma exclamação na língua daquela terra, e a palavra subiu no ar como um pássaro exótico. Naquela tarde remota - lembrou-se ainda o coronel -, ao deixar a casa paterna, exacerbado mas nem por isso sentindo menos o peso de sua culpa, ele fora diretamente para os braços da amante. E tivera com ela a sua mais furiosa hora de amor. Desde que chegara ao teatro de operações, havia meses, ele mantivera a castidade, o que lhe era fácil quando saía em missões de combate. Ouvira dizer que nas penitenciárias era costume deitar cânfora no alimento dos prisioneiros, como um anafrodisíaco. Sua cânfora agora eram o trabalho e as preocupações daquele comando. Mantinha assim a castidade do corpo; a do espírito, essa não era possível controlar: com freqüência tinha sonhos eróticos com a amante. Repelia com repugnância a idéia de dormir com as nativas. Havia nas faces daquelas mulheres algo de bicho, que talvez estivesse nos olhos enviesados, uma certa "expressão" que tantas vezes ele observara nos zoológicos, no focinho das corças. Temia, por outro lado, as doenças contagiosas. Lembrava-se do caso de um de seus oficiais, que costumava ir para a cama com uma prostituta nativa e que acabou descobrindo, horrorizado, que ela era leprosa. A criatura, certa noite, divertia-se com um orgulho inocente a mostrar ao oficial branco como podia queimar os dedos na chama duma vela sem sentir a menor dor... O coronel meteu a mão dentro do jarro de chá e apanhou o último cubo de gelo que ali havia, já quase reduzido a uma lâmina, e passou-o pelas faces. Depois, mais uma vez desafiando o pai, que reprovava tanto o uso do álcool como o do tabaco, tirou um cigarro do maço que estava sobre a mesa e levou-o à boca. Sentiu-o úmido e flácido. Acendeu-o, e o clique do isqueiro e o cheiro de gasolina trouxeram-lhe à mente aquela derradeira noite... Ele e a mulher amada dentro dum automóvel, numa esplanada à beira do rio... Diziam-se adeus, pois no dia seguinte ele embarcaria para o além-mar, para a guerra. Haviam a princípio permanecido num longo silêncio, de mãos dadas. Depois ele acionara o isqueiro para acender o cigarro que ela tinha entre os lábios, apagado e possivelmente esquecido. E a pequena chama iluminara por um instante aquela face querida, a boca de sugestivo desenho.Mal ela inalara a primeira fumaça, ele já a beijava com tal açodamento que queimara o próprio rosto na brasa do cigarro. Ela soprara para dentro de sua boca uma baforada de fumaça e aquilo lhe incendiara as entranhas. E então amaram-se sobre o banco traseiro do carro. Depois, numa saciedade lânguida e triste, tinham ficado num novo silêncio a seguir com o olhar um navio de turismo que passava iluminado pelo meio do rio. O coronel começou a andar dum lado para outro à frente de sua mesa de trabalho. Fosse como fosse - refletia -, o seu problema, se não estava resolvido, tivera pelo menos a sua solução transferida para mais tarde ou para nunca mais. Talvez um daqueles raquíticos guerrilheiros comunistas pudesse servir de instrumento da Providência e liquidar o assunto com uma bala. Postou-se junto da janela e olhou para a copa das árvores. Naquele mesmo instante não era impossível que um inimigo estivesse ali encarapitado em algum galho, apontando para ele a carabina ou preparando uma granada para atirar dentro do gabinete, pela janela. Diabo! Aqueles pensamentos mórbidos e até certo ponto covardes eram indignos dum militar. A obrigação do soldado é sobreviver para levar a cabo o aniquilamento completo do adversário. O calor e a falta de sono, a canseira de corpo e de espírito deviam ser responsáveis por aquelas idéias absurdas. Foi naquele instante que um dos telefones tilintou. O coronel apanhou o fone, ouviu o que o seu ajudante-de-ordens lhe comunicava, e respondeu: "Diga ao major que entre". [...]