RETRATO DO FALSÁRIO QUANDO JOVEM 1. O domador do leão Toda criança é artista. O problema é: como continuar sendo artista, depois de adulto. Pablo Picasso Han van Meegeren nasceu para ser pintor; infelizmente, chegou com cinqüenta anos de atraso. Em 19 de agosto de 1839, Paul Delaroche, um dos pintores franceses mais populares e respeitados do século XIX, solenemente declarou: "A partir de hoje, a pintura está morta". Paradoxalmente, fez essa declaração enquanto trabalhava para a École dês Beaux-Arts, retratando a história da arte numa pintura de 27 metros. O dobre fúnebre soou em resposta ao acontecimento mais espetacular da história da arte figurativa: a doação ao mundo, feita pelo governo francês, de uma nova e fascinante patente, o daguerreótipo. Por toda a Europa, a nova tecnologia de pintar com luz, apelidada de "fotografia", foi recebida com empolgação e assombro. Exposições realizadas nas grandes cidades européias celebraram esse processo mágico, capaz de congelar o tempo e criar uma semelhança perfeita. Observando um dos primeiros daguerreótipos, o velho J. M.W. Turner teria dito que estava contente por seu tempo já ter passado. Embora o processo de Louis Daguerre fosse caro e trabalhoso demais para suplantar a pintura de imediato, o medo de que a pintura estivesse morta era real e palpável. Na exposição parisiense de 1860, Charles Baudelaire definiu a fotografia como "o refúgio de pintores fracassados e bem pouco talentosos". E acrescentou: "É óbvio que essa indústria se tornou o inimigo mais mortal da arte. Se conseguir suplementar a arte em algumas de suas funções, a fotografia logo a terá suplantado ou corrompido, graças à estultícia da massa, que é seu aliado natural". Enquanto alguns artistas chamavam a fotografia de arte-fe-to-gráfica, outros eram mais otimistas: quando a rainha Vitória lhe perguntou se a fotografia representava uma ameaça para o pintor, o miniaturista Alfred Chalon respondeu secamente: "Não, senhora: a fotografia não consegue bajular". Na verdade, longe de destruir a pintura, a fotografia foi um fator crucial de sua evolução. Os temas tradicionais do pintor se restringiam a história, religião e mitologia; já a fotografia se insinuava em todas as áreas da experiência humana, registrando a vida de trabalhadores, capturando atitudes espontâneas,mudando para sempre os critérios que definiam o que se prestava à observação. Enquanto a fotografia se esforçava para imitar a bela arte, utilizando métodos que lhe permitiam obter efeitos do realismo romântico, os pintores davam início a uma radical reconsideração de temas e técnicas, abandonando o realismo como o auge da conquista artística e voltando-se para os estranhos e inacabados esboços "impressionistas". Em 1889, quando Han nasceu, o realismo declinava, mas a pintura florescia. Foi em 1889 que Gauguin se afastou do impressionismo para criar algo menos naturalista, que chamou de sintetismo; e que Georges Seurat fez seu esboço pontilhista da Torre de Gustave Eiffel, enquanto os operários se esfalfavam para concluir essa extravagância de ferro para a Exposition Universelle. Esse foi o ano em que um desconhecido pintor holandês se internou voluntariamente no asilo de St. Paul, em Arles, onde retratou o banco de pedra e os ciprestes dos jardins; o ano em que o jovem Henri Matisse, escrivão que nunca tinha posto o pé numa galeria de arte, matriculou-se num curso de pintura em sua Saint Quentin natal. E foi em 1889 que Picasso, aos oito anos de idade, pintou o que se considera sua primeira obra: Le Picador. Algo quase mágico estava acontecendo na arte ocidental. Uma centelha de loucura, uma faísca de gênio estava no ar, alimentando discussões e controvérsias em Paris e Londres. Nada disso havia chegado a Deventer. Han van Meegeren nasceu na histórica cidade hanseática de Deventer, que na época, como hoje, proporcionava um confortador vislumbre das glórias da Holanda, mil anos de história congelados em pedra. À distância, parecia pouco diferente da cidade retratada nas paisagens de Salomon van Ruisdael. Cercada de moinhos de vento, casas colmadas, antigas florestas e campos cercados, onde as ovelhas podiam pastar em segurança, era um cenário idílico. Han a detestava. Já na infância, apreciava o estilo de vida dos ricos; mais tarde na vida, penderia para a marginalidade. Deventer não lhe oferecia nem um, nem outra. Suas ruas medievais exalam bom senso burguês, porém uma breve caminhada aos arredores desse centro aprazível revela a dura crosta industrial: fábricas de produtos químicos, tecelagens e oficinas mecânicas do século XIX, sombrias e satânicas como Blake imaginou, cercam-na com a firme ética do trabalho holandesa. Henricus van Meegeren e sua esposa, Augusta Louise, batizaram seu terceiro filho com o nome de Henricus Antonius van Meegeren, seguindo o costume nacional de dar nomes latinizados aos filhos, mas, como os holandeses raramente resistem a um diminutivo, Henricus foi abreviado para Han, que se tornou Hantje - "pequeno Han" - para diferenciá-lo do pai. Henricus pai era a encarnação do pragmatismo vigoroso e ferrenho. Professor na escola Rijksweek, era formado em inglês e matemática pela Universidade de Delft e escrevera um punhado de áridos manuais.Morava com a família num elegante sobrado de três andares, com janelas salientes e mansarda, e governava os cinco filhos da mesma forma como conduzia seus alunos. Era um homem bom: correto, honrado e sem um pingo de imaginação. Católico fervoroso, todos os domingos fazia a família marchar em fila, por oito quilômetros, até a igreja onde seu irmão era pároco. Seus filhos - Hermann,Han, Joanna, Louise e Gussje - estavam proibidos de brincar com crianças protestantes. Eles logo aprenderam que fugir ao futuro que o pai lhes reservava produziria sofrimento e decepção. Henricus já havia decidido que Hermann, o primogênito, seria padre; Han, que era um bom estudante, seguiria os passos do pai, dedicando-se ao magistério. Quanto às meninas, só podiam esperar casar com um homem bem-criado e instruído, que exercesse uma profissão. Na infância, Han desenhava leões. Quando tinha oito anos, as margens de seus livros escolares haviam se transformado em onduladas planícies e em picadeiros onde bandos de enormes felinos brigavam e brincavam. A mãe o levara para vê-los. Augusta Louise alimentava no filho a mesma centelha criativa que um dia sentira em si mesma e que o casamento extinguira. Conduzia Han pelo emaranhado de ruas medievais que Erasmo percorrera, quando era estudante. Falava-lhe de Gerard Ter Borch, grande pintor, o filho mais famoso de Deventer.Mostrava-lhe as casas com empena que davam para o Ijssel, a St. Lebuinuskerk e a Bergkerk, mas ele sempre lhe implorava que o levasse à De Waag, a Casa de Pesagem medieval que dominava a praça da cidade com sua curiosa torre octogonal e um torreão em cada ângulo. Han se sentava ali com seu caderno de desenho e contemplava os leões esculpidos. Dois deles ficavam sentados nos pilares que flanqueavama grande escadaria; outros pareciam se esgueirar pelas balaustradas de pedra, agachados, ameaçadores, prontos para dar o bote. Às vezes, ao voltar da escola para casa, Han ia até lá só para vê-los. Os desenhos eram seu segredo. Ele gastava toda a sua mesada com lápis e papel. Intuitivamente desconfiava que pappa não aprovaria. Tinha dez anos, quando o pai, furioso com a aparente piora em seu desempenho escolar, encontrou os desenhos e rasgou-os, diante de seus olhos perplexos. "Filho meu não vai ficar vadiando, sonhando, jogando a vida fora", Henricus esbravejou, com todo o desprezo que conseguiu reunir. "Que serventia você acha que o desenho vai ter quando você for homem?" Han trocou a posição dos pés. "Nenhuma! Você vai concentrar as suas energias nos estudos." Como castigo, o pai o mandou escrever cem vezes: Ik weet niets, ik ben niets, ik kan niets Ik weet niets, ik ben niets, ik kan niets Ik weet niets, ik ben niets, ik kan niets Eu não sei nada, eu não sou nada, eu não sou capaz de nada. Augusta Louise providenciou outro caderno de desenho. Comprava crayons e lápis e estimulava a imaginação de Han. Fazia o possível para defender os sonhos dos filhos contra o furioso pragmatismo do marido. Todas as crianças desenvolveram defesas próprias. Joanna, a menina mais velha, era sinuosa e manipuladora e constantemente direcionava a raiva do pai para os irmãos. Hermann se submetia à vontade paterna com manso estoicismo. Gussje, a caçula, esforçava-se quanto podia para continuar sendo o bebê mimado da casa. Han canalizava a frustração para a travessura. Foi ele que persuadiu um relutante Hermann a invadirem a sacristia da igreja do tio, onde se embriagaram com o vinho da missa. O crime só foi descoberto no domingo seguinte, quando o tio deu por falta do vinho.Han, olhos baixos, mas com um tênue sorriso, confessou. Hermann ficou envergonhado. Foi uma travessura mais ousada que transformou Han numa lenda viva entre as crianças de Deventer. Uma tarde, passando pela delegacia de polícia, ao voltar da escola, ele viu as chaves na porta, tilintando ao vento frio. A modorrenta cidade estava longe de ser um antro do crime, e os policiais estavam lá dentro, conversando e jogando cartas. Han trancou a porta, sem fazer barulho, tirou a chave da fechadura e lançou-a no canal. Depois, escondeuse no jardim vizinho e aguardou. Sabia, como todo mundo em Deventer, que não havia outra porta. Minutos depois, um dos policiais tentou sair para fazer sua ronda. Deparando com a porta fechada, praguejou e xingou e chamou os colegas para ajudá-lo. Formou-se uma pequena multidão, atraída pelo tumulto. Durante meia hora, os policiais martelaram e berraram, até que um deles pulou a janela do térreo e constatou que a porta estava trancada e sem a chave. Um a um, os embaraçados policiais saíram pela janela. Como não encontrassem nenhum serralheiro, tiveram de improvisar um aríete e deitar a porta abaixo. A notícia da travessura voou até a escola, mas ninguém sabia quem era o culpado. Certo de que seu triunfo só seria completo quando fosse descoberto, Han se gabou da façanha para seus colegas. A história chegou aos ouvidos de Henricus, que arrastou o filho de doze anos até a delegacia, onde o menino confessou, fingidamente contrito. Apesar de toda a sua bravura, Han era uma criança solitária. Alto, magro, desajeitado, gostava de ler - filosofia, literatura e história -, não tinha interesse em esporte e abominava a turbulência dos outros garotos. Quando não era obrigado a ficar rezando na escola, isolava-se para desenhar, no bloco que a mãe lhe dera, criaturas saídas do vasto bestiário de sua imaginação. Quase sempre conferia ao leão mais feroz do bando as feições severas do pai e, no canto da página, retratava a si mesmo - um calunga com uma cadeira e um chicote, como se Henricus pudesse ser domado.