Agostinho e o protestantismo Neste ano se comemora em todo o mundo católico o aniversário de 1500 anos da morte de Agostinho.Na Itália, França e Alemanha, inúmeros artigos em jornais católicos anunciam o evento e, em encontros dedicados à memória de Agostinho, religiosos e intelectuais avaliam a importância de sua obra, de sua pessoa e de sua influência.Mas no mundo protestante ele está bastante esquecido. Ao chamá-lo de santo Agostinho, os católicos o confiscaram com tanta exclusividade que os protestantes parecem ter vergonha de invocá-lo em seu favor. Nem sempre foi assim. Na Idade Média, até Lutero, o nome Agostinho tinha o mesmo peso para ortodoxos e heréticos, reformadores e contra-reformadores. O próprio Lutero recorria à autoridade de Agostinho e achava que seguia os passos dele com a mesma intensidade com que rejeitava Tomás de Aquino e, junto com ele, a tradição aristotélica, que Lutero considerava a escolado "filósofo tolo". E, de fato, a consciência protestante, a individualidade protestante e a exegese bíblica protestante, que começou com os comentários do jovem Lutero sobre as cartas aos Gálatas e aos Romanos, seriam inconcebíveis sem as Confissões de Agostinho, por um lado, e de outro lado sem seus grandes comentários sobre o Evangelho e as cartas de são João, sobre o Gênesis e os Salmos. Como era cidadão do Império Romano e homem do final da Antiguidade, Agostinho, ao abandonar o mundo cultural de sua juventude e se tornar cristão, foi um pioneiro sob dois aspectos. Quando jovem, entregou-se a todas as correntes culturais e intelectuais da época: foi maniqueu, cético e depois neoplatônico. Na verdade, nunca abandonou seu neoplatonismo, o legado de Plotino, o último grego. Nunca deixou de tentar compreender e interpretar o mundo em termos filosófico - cosmológicos, e trouxe à incipiente Igreja católica todos esses elementos - a ordem hierárquica, a eloqüência retórica, a pretensão de universalidade - que, até hoje, nos permitem considerar a Igreja como herdeira do Império Romano. Em seu De civitate Dei, Agostinho legitimou essa herança fornecendo uma história específica para a Igreja como instituição secular. Ele sabia que a Igreja só poderia basear sua universalidade sobre a universalidade do Império Romano em declínio, e lhe deu esse direito. Só conseguimos compreender a envergadura e a riqueza do Agostinho cristão levando em conta sua condição ambígua de romano e cristão, entendendo claramente que ele se situava no próprio limiar entre o fim da Antiguidade e o começo da Idade Média. As Confissões dão prova daquele outro império, cristão, que Agostinho, ao término da Antiguidade, inaugurou para os séculos futuros: o império da vida interior. A "alma", para os gregos, nunca significou vida interior. A alma representava a essência do homem,mas não os recessos misteriosos e desconhecidos de seu mundo interior, tão ocultos a ele quanto os distantes recantos do mundo exterior. Os gregos não achavam que esses recessos interiores constituíam a história da vida deles, sua biografia. É claro que a literatura grega tem bioi, vidas de grandes homens, escritas por terceiros (mas mesmo elas só vêm a existir a partir do período helênico). Elas glorificam homens famosos. Agostinho, porém, olha para sua vida não para glorificar a si mesmo, e sim a Deus.Nossa vida tem significado não só por ser terrena, mas também porque nela decidimos estar próximos ou distantes de Deus, decidimos pelo pecado ou pela redenção. No momento da conversão, Agostinho foi redimido por Deus - não o mundo todo, mas apenas ele, Agostinho,que se pôs diante de Deus. Foi redimido de sua vida pecaminosa, e o fato de se confessar para essa redenção resulta na glória de Deus e é um testemunho humano do poder divino. Nessa confissão, ele deve relembrar toda a sua vida anterior, e na verdade cada pedacinho de sua vida anterior,porque todos os momentos dessa vida foram pecaminosos e,portanto, cada um deles engrandece o poder e o milagre da redenção.Por meio dessa confissão, a vida da pessoa adquire uma continuidade unificada e significativa: torna-se o caminho para a redenção.A memória revela essa vida a nós; apenas na memória o passado adquire um significado duradouro; apenas na memória o passado é, ao mesmo tempo, cancelado e preservado para sempre. Surgiram muitas dúvidas sobre a veracidade das Confissões: Agostinho exagerou seus pecados, deliberadamente ou não; distorceu sua vida, apresentou-a diferente do que tinha sido; esqueceu tudo o que havia de bom; em suma, dizem, sua memória falseou as coisas. Mas sem essa memória, sem essa "representação", que sempre é algo no fundo diferente da realidade ingenuamente vivenciada, esse passado não nos teria sido preservado; continuaria perdido. Foi a memória "falseadora" que salvou a realidade para nós. É inútil buscar a realidade "real", uma realidade à parte da que foi resgatada nas Confissões. As Confissões terminam, bastante logicamente, com um longo discurso filosófico sobre a memória, apresentando-a como a essência da vida interior, isto é, da vida do ser humano cristão. A descoberta da vida interior individual e sua ampla e minuciosa exploração não guardam nenhuma relação com a psicologia ou o pensamento moderno, apesar dos inúmeros detalhes psicológicos surpreendentes que Agostinho revela. Pois a vida interior nesse contexto é valiosa não por ser individual e, portanto, interessante, e sim porque era má e se tornou boa. A vida individual é merecedora de atenção não por ser individual e única no sentido moderno,ou por ser capaz de um desenvolvimento e plena realização de seu potencial pessoal. Ela tem valor não por ser única,mas por ser exemplar. Tal como foi minha vida, podem ser todas as vidas. A confissão individual traz um significado de aplicação geral: a graça de Deus pode entrar na vida de cada um dessa mesma maneira.As vidas não têm suas próprias histórias autônomas;o princípio básico da mudança é a conversão, que divide uma vida em duas partes distintas. O que torna uma vida digna de ser lembrada, o que a converte num monumento para o cristão, não é nenhum princípio imanente naquela vida em si,mas algo totalmente outro: a graça de Deus. Na tradição cristã européia, esse tipo de rememoração tomou dois caminhos diferentes em sua evolução posterior: um é o confessionário católico, o outro é a consciência protestante. Por sua própria natureza, o confessionário alterou o significado original da confissão. Em Agostinho, o indivíduo que confessa é lançado de volta à solidão de sua vida interior e se posta perante Deus com essa vida interior revelada. Se esse solitário "revelar-se perante Deus" pode ser uma advertência e um testemunho para os outros, nem por isso sua natureza fundamental sofre minimamente qualquer alteração. Agostinho se confessa apenas a Deus, não a outros seres humanos, embora talvez possamos dizer que ele se confessa pelos outros. O confessionário, porém, coloca a autoridade da Igreja entre a alma e Deus, e é exatamente isso que Lutero combateu como uma distorção do cristianismo original. Recuando nos séculos até antes da era católica,Lutero derivou de Agostinho seu conceito do crente cuja consciência se põe numa relação direta com Deus. Ainda que as Confissões não tenham nenhuma intenção psicológica, mesmo assim Agostinho é o pai fundador do romance autobiográfico e psicológico moderno. Na Alemanha, esse desenvolvimento deu a volta pelo pietismo. Com a crescente secularização, a auto-reflexão religiosa perante Deus perdeu seu significado.Não havia mais uma autoridade à qual fazer confissões, e a autoreflexão religiosa se tornou simples reflexão sobre a vida pessoal, esvaziada do elemento religioso. O primeiro romance na Alemanha a exemplificar claramente esse aspecto é Anton Reiser, de Karl Philip Moritz. Embora as raízes do próprio Moritz fossem pietistas, foi sua obra que marcou o afastamento definitivo das histórias de vida "edificantes" à maneira pietista. O conceito de graça cedeu lugar ao conceito de autodesenvolvimento autônomo, e temos o ponto culminante dessa mudança em Goethe, que concebia a história pessoal como "uma imagem moldada em constante e viva transformação". Publicado em alemão com o título "Augustin und der Protestantismus", Frankfurter Zeitung, 902, 4 de dezembro de 1930. Tradução para o inglês de Robert e Rita Kimber.