1. Em busca de William Shakespeare Antes de herdar um monte de dinheiro em 1839, Richard Plantagenet Temple Nugent Brydges Chandos Grenville, segundo duque de Buckingham e Chandos, levava uma vida bem monótona. Teve um filho ilegítimo na Itália, falava de vez em quando na Câmara dos Comuns contra a revogação das Leis do Grão e manifestou um precoce interesse pelo encanamento de água (sua casa de Stowe, em Buckinghamshire, tinha nove das primeiras privadas com descarga da Inglaterra), mas fora isso não se distinguia em nada, a não ser em seus gloriosos projetos e muitos nomes. Porém, depois de herdar seus títulos e uma das grandes propriedades da Inglaterra, ele assombrou seus associados e, sem dúvida, a si mesmo ao conseguir perder até o último tostão de sua herança em apenas nove anos, em uma série de investimentos espetacularmente arriscados. No verão de 1848, falido e humilhado, ele fugiu para a França, deixando a casa de Stowe e tudo o que ela continha para seus credores. O leilão que se seguiu transformou-se em um dos grandes acontecimentos sociais da época. Era tal a riqueza do mobiliário de Stowe que uma equipe de leiloeiros da empresa londrina Christie & Manson levou quarenta dias para inventariar tudo. Entre os artigos menos notados havia um escuro retrato oval, de 55 centímetros de altura por dezoito de largura, comprado pelo conde de Ellesmere por 355 guinéus e conhecido desde então como o retrato Chandos. A pintura havia sido muito retocada e tão enegrecida pelo tempo que grande parte dos detalhes estava (e ainda está) perdida. Mostra um homem quase calvo, mas nada feio, de cerca de quarenta anos, que exibe uma barba aparada. Na orelha esquerda, usa um brinco de ouro. A expressão é confiante, de uma tranqüila sensualidade. Não é um homem, você pensa, que mereça total confiança para acompanhar uma esposa ou uma filha crescida. Embora não se saiba nada sobre a origem da pintura ou onde se encontrava durante a maior parte do tempo antes de ir parar na família Chandos em 1747, há muito se afirma tratar-se de William Shakespeare. Com toda certeza se parece com William Shakespeare - mas na verdade não há como não parecer, uma vez que é uma das três imagens de Shakespeare das quais todas as outras foram tiradas. Em 1856, pouco antes de sua morte, lorde Ellesmere doou a pintura à National Portrait Gallery de Londres como obra inaugural. Sendo a primeira aquisição da galeria, goza de um certo prestígio sentimental, mas quase imediatamente surgiram dúvidas quanto a sua autenticidade.Muitos críticos na época acharam que o retratado tinha a pele escura demais e um ar estrangeiro demais - italiano ou judeu - para ser um poeta inglês, e muito menos um grande poeta. Alguns, para citar o falecido Samuel Schoenbaum, incomodaram-se com seu ar “libertino” e com os lábios “lascivos”. (Outro sugeriu, talvez com certa esperança, que ele havia sido retratado com maquiagem de palco, provavelmente no papel de Shylock.) “Bem, a pintura é do período certo - isso podemos afirmar com segurança”, me disse um dia a dra. Tarnya Cooper, curadora dos retratos do século XVI da galeria, quando eu estava começando a investigar o que podíamos saber e presumir com alguma probabilidade sobre a mais venerada figura da língua inglesa. “O colarinho é de um tipo muito usado entre 1590 e 1610, justamente quando Shakespeare estava produzindo seus maiores sucessos e era, portanto, muito provável que posasse para um retrato. Podemos afirmar também que o retratado era um tanto boêmio, o que seria coerente com uma carreira teatral, e que ele estava razoavelmente bem financeiramente, como Shakespeare devia estar nesse período.” Perguntei como ela podia saber essas coisas. “Bem, o brinco nos diz que era boêmio”, explicou. “Um homem de brinco significava na época o mesmo que significa hoje - que em termos de elegância a pessoa era um pouco mais ousada que uma pessoa comum. Drake e Raleigh foram ambos retratados com brincos. Era o jeito de anunciarem que tinham um temperamento aventureiro. Homens de posses usavam muitas jóias naquela época, sobretudo bordadas na roupa. Então este indivíduo ou é bem discreto, ou não é imensamente rico. Eu ficaria com a segunda possibilidade. Por outro lado, podemos dizer que ele é próspero - ou quer que pensemos que é próspero -, porque está vestido de preto.” Ela sorriu diante do meu ar de surpresa. “É preciso muito corante para fazer um pano realmente preto. Fica muito mais barato produzir roupas marrom, bege ou de alguma outra cor mais clara. Então as roupas pretas no século XVI eram quase sempre sinal de prosperidade.” Ela olhou o quadro e qualificou assim: “Não é um quadro ruim, mas com certeza também não é incrivelmente bom. Foi pintado por alguém que sabia preparar uma tela, então devia ter algum treinamento,mas é bem prosaico e não é bem iluminado. O principal é que, se for Shakespeare, trata-se do único retrato conhecido que pode ter sido pintado com o modelo vivo, então devia ser essa a verdadeira aparência de William Shakespeare - se for William Shakespeare”. E quais são as chances de ser? “Sem documentação da proveniência do quadro nós nunca saberemos, e agora, depois de tanto tempo, é muito pouco provável que essa documentação venha a aparecer.” E, se não for Shakespeare, quem é? Ela sorriu. “Não temos a menor idéia.” Se o retrato Chandos não for genuíno, então só restam duas outras imagens possíveis para nos ajudar a concluir qual era a aparência de William Shakespeare. A primeira é a gravura em cobre que aparece no frontispício das obras completas de Shakespeare, de 1623 - o famoso Primeiro Fólio. A gravura de Droeshout, como é conhecida (por causa de seu autor, Martin Droeshout), é uma obra de impressionante - podemos quase dizer magnífica - mediocridade. Quase tudo nela é equivocado. Um olho é maior do que o outro. A boca está estranhamente mal colocada. O cabelo é mais comprido de um lado do que de outro e a própria cabeça do sujeito é desproporcional ao corpo, dando a impressão de flutuar acima dos ombros, como um balão. Pior de tudo, o retratado parece tímido, defensivo, quase amedrontado - nada semelhante à figura galante e segura que nos fala com suas peças. Droeshout (ou Drossaert, ou Drussoit, como era conhecido às vezes em sua época) é geralmente citado como pertencente a uma família de artistas flamengos, embora na verdade os Droes-hout vivessem na Inglaterra havia sessenta anos e três gerações quando Martin nasceu. Peter W.M. Blayney, a maior autoridade no Primeiro Fólio, sugeriu que Droeshout, nos seus vinte e poucos anos e não muito experiente quando executou a obra, podia ter recebido a encomenda não porque fosse um artista talentoso, mas porque possuía o equipamento certo: uma prensa de rolo, do tipo necessário para fazer uma gravura em cobre. Poucos artistas possuíam essa máquina nos anos 1620. Apesar de suas muitas limitações, a gravura traz um endosso poético de Ben Jonson, que diz no seu memorial a Shakespeare do Primeiro Fólio: Ah, se o quanto era sagaz pudesse no metal gravar, tal como gravou sua face gravura tal era sem par. Já se sugeriu, o que é um tanto plausível, que Jonson pode não ter visto de fato a gravura de Droeshout antes de escrever seus generosos versos. O que é certo é que o retrato não foi feito em vida: Shakespeare morrera havia sete anos quando surgiu o Primeiro Fólio. Isso nos deixa apenas uma outra imagem possível: o busto colorido em tamanho natural que constitui a peça central de uma parede-monumento a Shakespeare na igreja da Santíssima Trin- dade em Stratford-upon-Avon, onde ele foi enterrado. Assim como o Droeshout, é uma obra artisticamente insignificante, mas supõe-se que tenha sido considerada satisfatória por pessoas que conheceram Shakespeare. Foi executada por um arte-são chamado Gheerart Janssen e instalada na capela-mor da igreja em 1623 - mesmo ano do retrato de Droeshout. Janssen viveu e trabalhou perto do Globe Theatre em Southwark, Londres, e pode muito bem ter visto o dramaturgo em vida - embora fosse preferível que não, uma vez que o Shakespeare retratado por ele é uma figura presunçosa, de cara inchada, com (como aponta inesquecivelmente Mark Twain) a “profunda, profunda, sutil, sutil expressão de uma bexiga”. Não sabemos ao certo que aspecto tinha a efígie originalmente, porque em 1749 as cores de sua pintura foram “renovadas” por uma alma anônima, mas bem-intencionada. Vinte e quatro anos depois, ao visitar a igreja, o estudioso de Shakespeare Edmond Malone ficou horrorizado ao ver o busto pintado e ordenou que os zeladores o caiassem, devolvendo-o ao que ele erroneamente supôs ser seu estado original. Na época em que foi repintado, anos depois, ninguém fazia idéia de que cores aplicar. A questão é importante porque a pintura atribui à imagem não apenas cor, mas definição, uma vez que muitos detalhes não são esculpidos, mas pintados. Caiado, o busto devia se parecer muito com aqueles manequins sem traços usados numa certa época para exibir chapéus em vitrines de lojas. Assim, nos vemos na curiosa posição de termos três imagens de William Shakespeare, das quais todas as outras derivaram: duas que não são muito boas, feitas por artistas que trabalharam anos depois de sua morte, e uma bem mais atraente como retrato,mas que pode simplesmente mostrar outra pessoa. A conseqüência paradoxal disso é que nós todos reconhecemos um retrato de Shakespeare assim que o vemos, e na verdade não sabemos como ele era. É assim com praticamente todos os aspectos de sua vida e personalidade: ele é ao mesmo tempo a mais conhecida e a menos conhecida das criaturas. [...]