Que se Chama Solidão Chão da infância. Nesse chão de lembranças movediças estão fixadas minhas pajens, aquelas meninas que minha mãe arrebanhava para cuidarem desta filha caçula. Vejo essa mãe mexendo enérgica o tacho de goiabada ou tocando ao piano aquelas valsas tristes. Nos dias de festa pregava no ombro do vestido o galho de violetas de veludo roxo. Vejo a tia Laura, a viúva eterna que suspirava e dizia que meu pai era um homem muito instável. Eu não sabia o que queria dizer instável, mas sabia que ele gostava de fumar charuto e de jogar baralho com os amigos no clube. A tia então explicou, Esse tipo de homem não conseguia parar muito tempo no mesmo lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade para outra como promotor ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro, resmungava um pouco e ia arrumar as malas. - Escutei que a gente vai se mudar outra vez? perguntou a minha pajem Juana. Descascava os gomos de cana que chupávamos no quintal. Não respondi e ela fez outra pergunta, Essa sua tia Laura vive falando que agora é tarde porque a Inês é morta, mas quem é essa tal de Inês? Sacudi a cabeça, também não sabia. Você é burra, ela resmungou e eu fiquei olhando meu pé machucado onde ela pingou tintura de iodo (ai, ai!) e depois amarrou aquele pano. No outro pé a sandália pesada de lama. Essa pajem, órfã e preta, era uma ovelha desgarrada, escutei o padre dizer à minha mãe. Ela me dava banho, me penteava e contava histórias nesse tempo em que eu ainda não frequentava a escola. Quando ia encontrar o namorado que trabalhava no circo, repartia a carapinha em trancinhas com uma fita amarrada na ponta de cada trancinha e depois soltava as trancinhas e escovava o cabelo até vê-lo abrir-se em leque como um sol negro. Com a mesma rapidez fazia os papelotes no meu cabelo em dias de procissão porque avisou que anjo tem que ter o cabelo anelado. Costurava nas costas da minha bata branca as asas de penas verdadeiras e foi esse o meu primeiro impulso de soberba porque as asas dos outros anjos eram de papel crepom. Ficava enfurecida quando eu dava alguma ordem, Pensa que sou sua escrava, pensa? Tempo de escravidão já acabou! Fui perguntar ao meu pai o que era isso, escravidão. Ele me deu o anel do charuto, soprou para o teto a fumaça e começou a recitar uma poesia que falava num navio cheio de negros esfaimados, presos em correntes e chamando por Deus. Fiz que sim com a cabeça e fui oferecer à Juana a melhor manga que colhi naquela manhã. Ela me olhou meio desconfiada, guardou a manga no bolso do avental e levantou o braço, Depressa, até a casa da Diva Louca, mas quem chegar por último vira um sapo! Eu sabia que ia perder mas aceitava a aposta com alegria porque era assim que anunciava as pazes. Quando não aparecia nada melhor a gente ia até o campo colher as fores que a Juana enfeixava num ramo e com cara de santa oferecia à Madrinha, chamava minha mãe de Madrinha. Naquela tarde em que os grandes saíram e fiquei por ali banzando, ela começou a desenhar com carvão no muro do quintal as partes dos meninos, Olha aí, é isto que fica no meio das pernas deles, está vendo? É isto! repetiu mas logo foi apagando o desenho com um trapo e fez a ameaça, Se você contar você me paga! Depois do jantar era a hora das histórias. Na escada de pedra que dava para a horta instalavam-se as crianças com a cachorrada, eram tantos os nossos cachorros que a gente não sabia que nome dar ao filhote da última ninhada da Keite e que ficou sendo chamado de Hominho, era um macho. Por essa época apareceu em casa a Filó, uma gata loucona que deve ter abandonado a ninhada, segundo a Juana, e agora amamentava os cachorrinhos da Keite que estava com crise e rejeitou todos. Tia Laura então avisou, Cachorro também tem crise que nem a gente, olha aí, apontou para Keite que mordia os filhotes que procuravam suas tetas. Minha mãe concordou, mas nesse mesmo dia comprou na farmácia uma mamadeira. Antes do jantar tinha a lição de catecismo e das primeiras letras. Íamos para a sala da minha mãe onde havia sempre um folhetim em cima da mesa. Juana ficava olhando a capa, Lê, Madrinha, lê esse daí! Minha mãe tirava o folhetim das mãos de Juana, Você vai ler quando souber ler! As histórias das noites na escada. Eu fechava olhos-ouvidos nos piores pedaços e o pior de todos era aquele quando os ossos da alma penada começavam a cair do teto diante do viajante que se abrigou no castelo abandonado. Noite de tempestade, o vento uivando, uuuuuuh!... E a alma penada ameaçando cair, Eu caio! gemia a Juana com a mesma voz fanhosa das caveiras. A única vela acesa o vento apagou e ainda assim o valente viajante ordenava em voz alta, Pode cair! Então caía do teto um pé ou um braço descarnado, ossos cadentes se buscando e se ligando no chão até formar o esqueleto. Em redor, a criançada de olho arregalado e a cachorrada latindo. Às vezes, Juana interrompia a história só para jogar longe algum cachorro mais exaltado, Quer parar com isso? Quando ela fugiu com o moço do circo que estava indo para outra cidade eu chorei tanto que minha mãe ficou aflita, Menina ingrata aquela! Acho cachorro muito melhor do que gente, queixou-se ao meu pai enquanto ia tirando os carrapichos enroscados no Volpi que era peludo e já chegava gemendo porque sofria a dor com antecedência. A pajem que veio em seguida também era órfã, mas branca. Não sabia contar histórias, mas sabia cantar e rodopiar comigo enquanto cantava. Chamava-se Leocádia e tinha duas grossas tranças nas quais prendia as florinhas do jasmineiro no quintal. Todos paravam para escutar a cantiga que ela costumava cantar enquanto lavava a roupa no tanque: Nesta rua nesta rua tem um bosque que se chama que se chama Solidão. Dentro dele dentro dele mora um Anjo que roubou que roubou meu coração. - Menina afinada, tem voz de soprano! disse a tia Laura e eu fui correndo abraçar a Leocádia, A tia disse que sua voz é de soprano! Ela riu e perguntou o que era isso e eu também não sabia mas gostava das palavras desconhecidas, Soprano, soprano! repeti e rodopiamos juntas enquanto ela recomeçou a cantar, Nesta rua nesta rua... Vem brincar, eu chamava e ela ria e dava um adeusinho, Depois eu vou! Fiquei sondando, e o namorado? Descobri tudo de Juana, mas dessa não consegui descobrir nada. Às vezes ela queria sair sozinha, Vou até a igreja me confessar, avisava enquanto prendia as florinhas nas tranças. Comecei a rondar a Maria, uma cozinheira meio velha que sabia fazer o peru do Natal, A Leocádia tem namorado? Ela fechou a cara, Não sei e não interessa. Já fez sua lição? Morávamos agora em Descalvado depois da mudança com o piano no gemente carro de boi e o caminhão com a cachorrada e mais a Leocádia e a Maria. No fordeco que o meu pai ganhou numa rifa seguimos nós, o pai, tia Laura e minha mãe comigo no colo. O carcereiro guiando, o único que sabia guiar. Naquela tarde, quando voltei da escola encontrei todo mundo assim de olho arregalado. No quintal, a cachorrada se engalfinhando. E a Leocádia? perguntei e tia Laura foi saindo assim meio de lado, andava desse jeito quando aconteciam coisas. Fechou-se no quarto. Não vi minha mãe. Sondei a Maria que evitava me encarar. Pegou de repente a panela e avisou, Vou estourar pipoca. Puxei-a pelo braço, A Leocádia fugiu? perguntei e ela resmungou, Isso não é conversa de criança. Quando a minha mãe chegou já era noite. Tinha os olhos vermelhos e andava assim curvada como se o xale nos ombros fosse de chumbo. Fez um sinal para a Maria, acariciou minha cabeça e foi para o quarto de tia Laura. Banzei com o prato de pipoca mas assim que Maria desceu para o quintal, corri para escutar detrás da porta. Agora era minha mãe que falava chorando, Não, Laura, não, ela está morrendo!... A pobrezinha está morrendo, imagina, grávida de três meses, três meses! E a gente que não desconfiou de nada, que tragédia, meu Deus, que tragédia! Respirou fundo e veio então a voz da tia, Mas quem fez esse aborto, quem?! E o nome do namorado, ela não disse o nome dele, não disse? Minha mãe falava agora tão baixinho que precisei colar o ouvido na fechadura, Não vai passar desta noite, a pobrezinha... Agonizando e assim mesmo me reconheceu, beijou minha mão, Ô Madrinha, Madrinha!... Perguntei, mas por que você não me contou, eu te ajudava, criava com tanto amor essa criança... Ela fechou os olhos, sorriu e acho que depois não escutou mais nada. Daí o doutor, um santo, me pegou pelo braço e pediu que eu saísse da enfermaria, precisava dar nela a última injeção, ah! Laura, Laura. Que tragédia! Expliquei que o meu marido tinha viajado para São Paulo, só nós duas aqui e acontece uma coisa dessas! A voz de tia Laura veio quase aos gritos, Mas e o nome dessa parteira, do namorado?! Minha mãe voltou a se assoar e me pareceu mais calma, Ora, os nomes, o que adianta agora?... Nem para o doutor ela disse, um santo esse médico, um santo! Pediu que eu saísse, me deu um calmante e pediu ainda que eu não voltasse mais, cuidaria de tudo, estava acostumado com essas coisas... A pobrezinha foi embora com o seu segredo, ah, meu Deus, meu Deus! Lembra, Laura? Quando eu tocava piano ela vinha correndo e se sentava no chão para ouvir, Toca mais, Madrinha! Tinha uma voz linda, lembra? Eu cuidaria dela, da criança, cuidaria de tudo, disse minha mãe e afastou a cadeira. Começou a andar. Apertei contra o peito o prato de pipocas e recuei. Tia Laura também se levantou, Agora é tarde! disse e suspirou. Ainda esperei um pouco, mas ela não tocou na Inês. Eu não gostava do mês de dezembro porque era nesse mês que vinha o último boletim da escola, melhor pensar na quermesse do Largo da Igreja com as barracas das prendas e a banda militar tocando no coreto. Nesse sábado a minha mãe e tia Laura foram na frente porque eram as barraqueiras, meu pai iria mais tarde para ajudar no leilão. Precisei fazer antes a lição de casa e assim combinei de ir com a Maria quando ficasse pronto o peru. Já estava escurecendo quando passei pelo jasmineiro e parei de repente, o que era aquilo, mas tinha alguém ali dentro? Cheguei perto e vi no meio dos galhos a cara transparente de Leocádia, o riso úmido. Comecei a tremer, A quermesse, Leocádia, vamos? convidei e a resposta veio num sopro, Não posso ir, eu estou morta... Fui me afastando de costas até trombar na Keite que tinha vindo por detrás e agora latia olhando para o jasmineiro. Peguei-a apertando-a contra meu peito, Quieta! ordenei, Cala a boca senão os outros escutam, você não viu nada, quieta! Ela começou tremer e a ganir baixinho. Encostei a boca na sua orelha, Bico calado! repeti e beijei-lhe o focinho, Agora vai! Ela saiu correndo para o fundo do quintal. Quando voltei para o jasmineiro não vi mais nada, só as florinhas brancas no feitio das estrelas. Subi pela escada nos fundos da casa e entrei na cozinha. Maria embrulhava o peru assado no papel-manteiga. Andou sumida, ela disse e me encarou. Mas o que aconteceu, está chorando? Enxuguei a cara na barra do vestido, Me deu uma pontada forte no dente do fundo! Ela franziu a boca, Mas o dentista não chumbou esse dente? Espera que eu vou buscar a Cera do Doutor Lustosa, avisou mas puxei-a pelo braço, Não precisa, já passou! Ela abriu a sacola e enfiou dentro o peru: - Então vamos lá. Na calçada tomou a dianteira no seu passo curto e rápido, a cabeça baixa, a boca fechada. Fui indo atrás e olhando para o céu, Não tem lua! eu disse e ela não respondeu. Tentei assobiar, Nesta rua nesta rua tem um bosque e o meu sopro saiu sem som. Fomos subindo a ladeira em silêncio.