Trecho do livro O SENHOR EMBAIXADOR

PARTE I As credenciais I No dia em que William B. Godkin completou trinta e cinco anos de serviços à Amalgamated Press, na qualidade de correspondente e especialista em assuntos latino-americanos, seus colegas ofereceram-lhe um almoço na sede do National Press Club, em Washington. O companheiro encarregado de saudá-lo temperou, em sua oração, biografia com humor e teve também o cuidado de deitar à mistura uma pitada de sentimento. Recordou incidentes - dramáticos uns, anedóticos outros - da longa carreira de Godkin. Entre outras coisas, disse: "Para nós, Bill, você é mais que um bom amigo e leal colega. É um símbolo e - por que não? - já uma espécie de monumento". Ao terminar o discurso, entregou ao homenageado, como lembranças dos rapazes da Amalpress, um relógio-pulseira suíço e um cachimbo inglês. Bill Godkin julgou a princípio que podia liquidar o assunto dizendo um "muito obrigado" geral e fazendo um largo gesto que abrangesse os vinte e poucos amigos que o cercavam. Detestava toda e qualquer espécie de oratória, especialmente a que de hábito se produz após os banquetes. Como, porém, de vários setores da mesa partissem gritos - "Discurso! Vamos, Bill! Discurso!" -, não teve outro remédio senão erguer-se e falar. Não largou o velho cachimbo que tinha na mão, aceso, nem mudou o tom de voz, de ordinário arrastado e monótono, sem qualquer inflexão dramática. Mesmo quando não tinha o cachimbo entre os dentes, articulava com pouca clareza as palavras, pois mal movia os lábios. Falou mais do que esperava, revelando sentimentos que preferia manter secretos. Apontando com a haste do cachimbo para o colega que o saudara, disse: "Quando eu tinha a idade desse moço, orgulhava-me de possuir a qualidade essencial do repórter: a de só noticiar fatos. Hoje, na adolescência da velhice (pois vocês não ignoram que percorro com certa relutância a derradeira milha que me separa dos sessenta), começo a ter dúvidas...". Fez uma pausa para uma cachimbada, e prosseguiu: "Isso a que chamamos fato não será uma espécie de iceberg, quero dizer, uma coisa cuja parte visível corresponde apenas a um décimo de seu todo? Porque a parte invisível do fato está submersa nas águas dum torvo oceano de interesses políticos e econômicos, egoísmos e apetites nacionais e individuais, isso para não falar nos outros motivos e mistérios da natureza humana, mais profundos que os do mar". Prendeu o cachimbo entre os dentes e daí por diante falou e fumou ao mesmo tempo, o que lhe tornou ainda menos clara a dicção. "Ao desintegrarem o átomo, os cientistas de nosso século desintegraram também a semântica e até a ética. Quem é que sabe hoje com certeza absoluta o sentido de palavras que usamos com tão leviana frequência como liberdade, paz, direito e justiça? Quanto ao Palavrão, verdade... que bicho é esse? Quantas verdades existem no mundo de nossos dias? Conheço tantas... A da Casa Branca. A do Kremlin. A do Vaticano. A da Wall Street. A da Broadway. A da United States Steel Corporation. A da AFL. Sim, e convém não esquecer a da Madison Avenue, talvez a mais fantástica de todas." Teve um curto acesso de tosse, pigarreou, refez-se, e retomou o discurso: "O jovem orador disse que sou um símbolo... Mas símbolo de quê? Talvez dum tipo de jornalismo em processo de liquidação. Pertenço a uma era em que os correspondentes escreviam sobre os acontecimentos. Vocês os modernos querem competir com Deus Nosso Senhor. Não só procuram dar hoje as notícias de amanhã como também se avocam o direito de, na falta de notícias, criarem acontecimentos para depois escreverem sobre eles!" Calou-se por um instante e ficou a olhar fixamente para a toalha da mesa, como se nela estivesse escrito o texto de seu discurso. "Quanto a ser eu um monumento, bom, talvez o que meu amável colega tenha querido dizer é que já sou uma estátua de cera de mim mesmo, prestes a ser recolhida à poeira dum museu municipal de jornalismo." Ouviram-se apartes: "Não apoiado!" - "Que é que há com você, homem?" - "Não apoiado!". William B. Godkin ergueu a mão, pedindo silêncio, e perorou: "Seja como for, não pensem que não sei apreciar o gesto de vocês... este almoço, as palavras do orador, os belos presentes... Bom, mas vou calar a boca para não dizer mais tolices. Obrigado, rapazes!". Sentou-se em meio de aplausos, mas desgostoso consigo mesmo. Levantara-se para fazer uma alocação breve e jocosa, como convinha à ocasião, e no entanto acabara falando sério e, o que era pior, dando um ridículo espetáculo de autocomiseração. Irritado, esvaziou o bojo do cachimbo batendo-o contra a beira dum cinzeiro com uma força exagerada. Voltou ao escritório da Amalpress, ficou por alguns instantes sentado à sua mesa, examinando com mãos e olhos vagos os papéis que tinha diante de si. Ergueu depois a cabeça e fitou o calendário, na parede fronteira. Abril 6. Segunda-feira. Só havia uma coisa decente a fazer - decidiu. Chamou a secretária. Miss Kay entrou, de caderno estenográfico em punho, um lápis amarelo enfiado nos cabelos oxigenados, entre a cabeça e a orelha. Era uma mulherinha de idade incerta, perfil agudo e olhos de aço. - Algo de importante? - Nada, Mister Godkin. - Muito bem. Diga aos rapazes que vou sair e não volto mais hoje. - Perfeitamente, Mister Godkin. Admirável Miss Kay! Exata como um cronômetro. Eficiente como uma máquina. Nas horas de trabalho jamais se permitia qualquer observação ou gesto de natureza pessoal. - Acabo de fazer uma grande descoberta... - resmungou o jornalista, enquanto vestia o sobretudo e apanhava o chapéu. - Sim, Mister Godkin? - A coisa mais importante de Washington não é a Casa Branca. Nem o Departamento de Estado. Nem o do Tesouro. Nem o FBI. Nem a Smithsonian Institution. Com o rosto impassível, a secretária esperava, perfilada. Junto da porta, Bill terminou o pensamento: - São as cerejeiras do Potomac na primeira semana de abril! Se os jornais não mentem, elas devem estar hoje completamente cobertas de flores. Enquanto acendia o cachimbo, olhou disfarçadamente para a secretária, esperando dela um sorriso ou qualquer outra reação humana. Miss Kay, porém, continuava séria, em posição de sentido. Recusava participar da brincadeira. Conservava sua indiferença metálica de máquina. Acaso um teletipo estremece de prazer ou indignação ante as notícias que recebe ou transmite? - Até amanhã, Miss Kay. - Até amanhã, Mister Godkin. Na rua, Bill Godkin sentiu na cara o hálito quase frio da primavera, que recendia a úmidas e verdes distâncias. Decidiu ir a pé até à Tidal Basin. As mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo, entrou na Rua 16, tomando a direção do sul. Pensou em seu amigo Pablo Ortega, primeiro-secretário da Embaixada da República do Sacramento. Num dia de firmamento limpo e luminoso como aquele, o rapaz olhara para o alto e exclamara: "Aposto como Deus hoje encarregou Fra Angélico de pintar o céu. Porque só ele conhece o segredo desse puro azul". Curioso - refletiu Bill -, era justamente nos dias bonitos assim que ele sentia com mais pungência sua solidão. Não tinha filhos e perdera a mulher havia apenas dois anos, de leucemia... E aquela criatura suave, que parecia um retrato pintado a pastel, se fora aos poucos apagando, sem jamais queixar-se, sem perder por um instante sequer o gosto e a esperança de viver, nem seu afetuoso interesse pelas pessoas, animais e coisas. "Deus sabe o que faz" - era a sua frase predileta. "O homem verdadeiramente maduro é aquele que entende a linguagem simbólica do seu Criador." Pensando ainda na esposa morta, Bill Godkin aproximou-se da Lafayette Square. Avistou a Casa Branca, do outro lado da praça. Era na sua opinião o mais belo edifício de Washington - feliz combinação de dignidade e graça, simplicidade e harmonia. Em alguma sala daquela mansão o Presidente Eisenhower àquela hora estaria decerto a refletir apreensivo sobre problemas do momento: o destino da Revolução Cubana e, coisa mais séria ainda, o drama de John Foster Dulles que, com um câncer de abdômen, encontrava-se num hospital com seus dias contados. Bill preparou-se para atravessar a Rua H. A imagem de Ruth, acompanhada do fantasma de sua voz, despontou-lhe na mente: "Meu bem, nunca atravesse uma rua sem primeiro olhar para os lados, sim?". Bill cumpriu a recomendação, mas de maneira apenas mecânica, pois nem chegou a ter consciência clara de se podia ou não fazer a travessia sem perigo. Avançou no seu lento trancão habitual, mas teve de acelerar o passo quando viu surgir à sua direita e a pequena distância um Cadillac negro, de aspecto funéreo. Oops! Ganhou finalmente a calçada. (Um carro como aquele levara para o cemitério o corpo de Ruth...) Lá estava no centro da praça a estátua equestre de Andrew Jackson: o cavalo com as patas dianteiras no ar, o cavaleiro com o braço direito erguido, a mão segurando o chapéu bicorne... Segundo os entendidos, a posição do cavalo, que se equilibrava nas patas traseiras, oferecera difícil problema de mecânica que o artista resolvera de maneira brilhante. (Orlando Gonzaga, seu amigo brasileiro, lhe dissera um dia: "Vocês americanos confundem arte com artesanato".) Godkin não tinha nenhum entusiasmo pelas estátuas da capital. Em sua grande maioria eram convencionais e careciam de grandiosidade e beleza. Os mais admiráveis monumentos de Washington eram suas árvores e parques - concluiu, caminhando à sombra dos olmos, ao longo da calçada de Jackson Place. Aquelas árvores altas e esguias, de nobre aspecto, evocavam-lhe a figura de Abraham Lincoln. Bill parou um instante para observar um bando de estorninhos de escura plumagem iridescente e de bicos amarelos, que chilreavam alvorotados nos ramos duma magnólia. Ruth costumava dizer que as árvores, as flores, os pássaros, as crianças e as outras coisas belas da vida são palavras soltas duma mensagem que Deus manda repetidamente aos homens, um recado de esperança em meio deste mundo cruel, sórdido e absurdo. Sórdido e absurdo... Godkin lembrou-se de que, havia alguns anos (cinco? seis? talvez sete...), numa madrugada de agosto, de calor úmido e opressivo, depois dum serão particularmente estafante nos escritórios da Amalpress, ele viera espairecer ali na praça, e ficara por alguns instantes parado debaixo daquela mesma árvore. A fragrância adocicada das flores de magnólia no ar estagnado era como uma cálida presença física, perturbadora como uma carícia carnal. Bill jamais esquecera aquela noite e aquele lugar pelas coisas que então e ali lhe haviam acontecido. Um homossexual abordara-o, fazendo-lhe claramente uma proposta obscena. Ele se limitara a lançar um olhar rápido para o desconhecido - louro, esguio, bem-vestido, trinta e poucos anos presumíveis - e pusera-se a caminhar, sem responder ao convite nem sequer indignar-se. O que sentia era um certo constrangimento mesclado de piedade pela pobre criatura. O outro o seguira, repetindo a proposta com uma insistência cada vez maior. Ofegava um pouco, e sua voz de contralto era dum grotesco doloroso. E, quando o tipo agarrou-lhe o braço, Bill desvencilhou-se dele num repelão, ameaçando esmurrá-lo. O pederasta estacou, recuou dois passos e disse em voz alta: "Se você veio passear aqui a esta hora da noite é porque tem tendências inconscientes". Bill Godkin não podia compreender por que razão - se é que a razão entrava na história - os desviados sexuais de Washington haviam escolhido para seus encontros amorosos aquela praça a tão pequena distância da Mansão do Executivo. Parou a uma esquina, já na Pennsylvania Avenue. Depois que a sinaleira, à frente de um dos portões da Casa Branca, lhe deu a luz verde, atravessou a avenida e continuou a andar na calçada oposta, ao longo do mastodôntico edifício cor de osso velho e em estilo neoclássico francês, onde antigamente estivera instalado o Department of State. Tornou a pensar em Dulles. Era um homem corajoso e íntegro, mas prejudicado pela sua visão calvinista do mundo. Como poderia um estadista puritano compreender a América Latina? E que iria acontecer agora em Cuba? Continuavam os fuzilamentos dos partidários de Fulgêncio Batista responsáveis por atrocidades e vários outros crimes. O Governo Revolucionário havia empolgado "provisoriamente" a direção da Cuban Telephone Co., subsidiária da U.S. Telephone & Telegraph Co. A nacionalização de outras empresas americanas - refletiu Godkin - viria fatalmente, mais tarde ou mais cedo. Como se portaria diante desses fatos o Governo dos Estados Unidos? Bill sabia que eventualmente um que outro congressista de seu país, invocando os direitos humanos, faria um discurso no Capitólio, protestando contra os fuzilamentos de Havana, mas os Pais da Pátria só ficariam realmente indignados, ameaçando o céu e a terra, quando Fidel Castro começasse a confiscar os bens de cidadãos norte-americanos. Bill Godkin estacou, esvaziou o bojo do cachimbo apagado, batendo-o contra o salto de um dos sapatos. Depois, enquanto o reenchia de fumo e riscava um fósforo, lembrou-se de que Maquiavel aconselhara ao Príncipe que mandasse assassinar seus súditos, quando necessário, mas que evitasse tocar em suas propriedades, porque um homem com mais facilidade esquece a morte do pai do que a perda de seu patrimônio... Mas como pode alguém ter pensamentos cínicos numa tarde de primavera como esta? - perguntou Godkin a si mesmo, ao começar a travessia da Elipse, em diagonal, na direção do monumento a Washington. Andava no ar um contentamento vadio e luminoso de feriado. Centenas de pessoas (ou seriam milhares?) caminhavam no gramado e nas calçadas: homens, mulheres e crianças, manchas multicores e móveis que sugeriam a Bill uma paródia moderna dum quadro de Brueghel - A boda campestre- que ele vira com Ruth num museu de Viena. (Pobre Ruth! Apesar de saber que teria apenas mais um ano de vida, com que menineira alegria ela gozara sua primeira e última viagem à Europa!) Todas aquelas pessoas encaminhavam-se para os cerejais da beira do Potomac ou voltavam de lá. Os ônibus da Greyhound - azul e prata -, embandeirados e cheios de turistas, rolavam pela Constitution Avenue, onde o tráfego era intenso. Numa das calçadas da South Executive Avenue, muita gente fotografava ou apenas olhava por entre as grades os jardins e a fachada meridional da Casa Branca. O cheiro de relva nova, entrando pelas narinas de Bill, trouxe-lhe à mente uma paisagem da infância: os prados do Kansas em abril. Sem tirar o cachimbo da boca, pôs-se a chiar por entre os dentes uma melodia que sempre associava à ideia de folga e feriado. Parou um instante para atirar migalhas de pão a três esquilos, dois cinzentos e um negro, que se haviam aproximado dele. Durante o almoço no Press Club tivera o cuidado de meter no bolso algumas bolotas de miolo de pão, pensando especialmente naqueles "fregueses". Olhou para o obelisco do Monumento, no cume de sua colina verde, todo cercado de bandeiras nacionais, que a brisa bulia. De novo lhe voltou ao pensamento a voz de Orlando Gonzaga: "O obelisco? Está claro que este burgo federal precisava dum imponente falo artificial de pedra, como compensação para seu complexo de castração". Bill, sorrindo à observação do amigo, perguntara: "Castração por quê?". A resposta viera rápida: "Ora, para principiar, Washington, a capital do tédio e da impotência, é um conglomerado de funcionários públicos e diplomatas (alguns de sexo duvidoso) e de velhos aposentados. E depois, meu caro, este enclave apertado entre Maryland e a Virgínia não tem sequer o direito de voto". Subindo lentamente a colina do Monumento, Bill mantinha agora um diálogo imaginário com o primeiro secretário da Embaixada do Brasil. "Veja bem, Gonzaga. Como podem vocês chamar-nos de povo materialista, preocupado apenas com o dólar, quando essas pequenas árvores japonesas que florescem em abril têm o poder de atrair todos os anos a esta cidade centenas de milhares de cidadãos, de todos os quadrantes do país?" Já na metade do caminho, Bill Godkin avistou a copa das cerejeiras que cercavam a Tidal Basin. Parou ofegante, não sabia bem se do esforço da subida ou se de pura emoção ante a paisagem. Ali estava um quadro tão belo e ao mesmo tempo tão frágil, que a simples tentativa de descrevê-lo com palavras, pintá-lo ou mesmo fotografá-lo poderia quebrar-lhe o encanto... Sentiu que devia aproximar-se do cerejal florido com a maior cautela, pisando e respirando de leve. Pensou na esposa morta, a tristeza embaciou-lhe o olhar. Pobre Ruth! Ela tinha razão. Deus era um poeta. O maior de todos. Desgraçadamente os homens, obtusos e analfabetos, não sabiam ler os poemas que o Criador escrevia. "Obtusos e analfabetos", murmurou Bill, continuando a andar na direção das cerejeiras. "Todos! Inclusive eu. Principalmente eu!"