PARTE I 1. Chegada a Shanghai (1930) Nasci no Hospital Geral de Shanghai em 15 de novembro de 1930, após um parto difícil que minha mãe, de compleição delicada e quadris estreitos, gostava de descrever para mim em detalhes, falando como se isso revelasse a injustiça reinante no mundo. Durante o jantar ela sempre me contava como a minha cabeça ficara deformada com o parto, e desconfio que acreditava que isso explicava meu comportamento rebelde na adolescência e juventude (amigos médicos me dizem que não há nada fora do comum nesse tipo de parto). Minha irmã Margaret nasceu de cesariana em setembro de 1937, e nunca ouvi minha mãe refletir sobre esse assunto. Morávamos no número 31 da avenida Amherst, em um bairro residencial na zona oeste de Shanghai, mais ou menos setecentos metros depois da fronteira do Assentamento Internacional, mas dentro da área mais ampla controlada pela polícia de Shanghai. A casa ainda está em pé e, na minha última visita a Shanghai, em 1991, fora transformada na biblioteca do Instituto Estadual de Eletrônica. O Assentamento Internacional que se limitava ao sul com a Concessão Francesa, quase do mesmo tamanho, se estendia desde o Bund - a larga avenida ao longo do rio Huangpu, com seus bancos, hotéis e lojas comerciais - até uns oito quilômetros mais a oeste. Quase todas as lojas de departamento, restaurantes, cinemas, boates e estações de rádio ficavam no Assentamento Internacional, mas as indústrias se situavam em grandes áreas nos arredores da cidade. Os cinco milhões de habitantes chineses tinham livre acesso ao assentamento, e quase todas as pessoas que eu via na rua eram chinesas. Acredito que havia mais ou menos 50 mil não chineses - entre eles britânicos, franceses, americanos, alemães, italianos, japoneses, e ainda um grande número de russos brancos e refugiados judeus. Shanghai não era uma colônia inglesa, como a maioria das pessoas imagina, tampouco se parecia com Hong Kong ou Cingapura - locais que visitei antes e depois da guerra e mais se assemelhavam a ancoradouros de navios de guerra e bases de abastecimento da marinha do que a vibrantes centros comerciais. Eram, também, muito dependentes do pink gin e do tradicional brinde à Rainha. Shanghai era, como é até hoje, uma das maiores cidades do mundo, 90% chinesa e 100% americanizada. Estranhos cartazes de propaganda - não sai da minha memória a tropa de honra com cinquenta corcundas chineses na estreia de O corcunda de Notre Dame - faziam parte do dia a dia, embora às vezes eu me pergunte se o que faltava na cidade era, justamente, o dia a dia comum. Com seus jornais e rádios em todas as línguas, Shanghai era uma cidade da mídia, muito antes que isso fosse moda. Era considerada a Paris do Oriente, e também a cidade mais pervertida do mundo, embora na minha infância eu não soubesse nada sobre seus milhares de bares e prostíbulos. O capitalismo selvagem corria solto pelas ruas cheias de mendigos exibindo suas chagas e feridas. Shanghai tinha importância política e comercial, e por muitos anos foi a principal base do Partido Comunista chinês. Nos anos 1920 houve violentas lutas de rua entre os comunistas e as forças do Kuomintang, comandadas por Chiang Kai-shek; depois, nos anos 1930, foram frequentes os atentados terroristas - embora quase inaudíveis, suponho, abafados pela música das intermináveis noitadas nas boates, os shows de acrobacias aéreas e a corrida desenfreada, implacável, atrás do dinheiro. Enquanto isso, caminhões da prefeitura passavam todos os dias pelas ruas recolhendo os corpos dos chineses miseráveis que morriam de fome pelas calçadas da cidade, as mais duras do mundo. As festas, o cólera e a varíola coexistiam com as animadas idas e vindas de um garotinho inglês para a piscina do Country Club, no banco de trás do Buick da família. As violentas dores de ouvido causadas pela água infectada da piscina eram aliviadas pelo consumo ilimitado de Coca-Cola e sorvete, e pela promessa de que na volta o motorista pararia em uma banca de jornais para comprar revistas em quadrinhos americanas. Em retrospecto, pensando na criação dos meus filhos em Shepperton, vejo o quanto tive que assimilar e digerir. Em cada passeio de carro por Shanghai, sentado ao lado de Vera, minha babá russa (supostamente para me proteger contra alguma tentativa de sequestro pelo motorista, embora eu nem imagine até que ponto aquela jovem sensível estaria disposta a se arriscar por mim), eu via alguma coisa estranha e misteriosa, mas a encarava como algo normal. Creio que era a única maneira possível de enxergar aquele caleidoscópio brilhante e sangrento que era Shanghai - os prósperos comerciantes chineses parados na rua Bubbling Well para apreciar um fio de sangue escorrendo do pescoço de um ganso furioso, amarrado ao poste telefônico; jovens gângsteres chineses, com seus ternos americanos, espancando um lojista; mendigos brigando por um espaço na calçada; lindas garotas de programa russas, sorrindo para os transeuntes (eu sempre imaginava como seria se elas fossem minhas babás, se comparadas a Vera, sempre emburrada, sempre controlando rigidamente meu cérebro em constante atividade). Mesmo assim, Shanghai me impressionava como um lugar mágico, uma fonte inesgotável de fantasia que deixava no chinelo a minha própria imaginação infantil. Havia sempre algo de inusitado e incongruente para se ver: um grande espetáculo de fogos de artifício comemorando a inauguração de uma nova boate, enquanto os carros da polícia avançavam contra uma multidão de trabalhadores aos gritos; o exército de prostitutas de casacos de pele na porta do Park Hotel, "esperando amigos", como me dizia Vera. Os esgotos a céu aberto desaguavam no fedorento rio Huangpu, e a cidade inteira exalava um cheiro de lixo e doenças, mais os miasmas de fritura das incontáveis barraquinhas de comida chinesa. Na Concessão Francesa passavam bondes imensos em alta velocidade, com suas sinetas tocando, pelo meio da multidão. Tudo era possível e qualquer coisa podia ser comprada e vendida. Tu do isso me parece um palco; mas, na época, era real. Creio que grande parte da minha ficção é uma tentativa de evocar essas coisas todas, por outro meio que não a memória. Ao mesmo tempo, havia um lado estritamente formal na vi da em Shanghai - recepções de casamentos no Clube Francês, onde já fui pajem e provei pela primeira vez canapés de queijo, tão horrorosos que pensei que tivesse contraído alguma terrível doença desconhecida. Havia corridas de cavalo na pista de corrida de Shanghai, com gente muito bem-vestida, e reuniões patrióticas na embaixada britânica no Bund - ocasiões ultraformais, com horas e horas de espera que quase me deixavam louco. Meus pais ofereciam elaborados jantares formais, em que todos os convidados acabavam bêbados, e que para mim costumavam terminar quando algum dos alegres colegas do meu pai me encontrava escondido atrás do sofá, ouvindo conversas que eu não compreendia em absoluto. "Edna, temos um clandestino a bordo..." Minha mãe me contou sobre uma recepção no início dos anos 1930, quando fui apresentado a madame Sun Yat-sen, viúva do homem que derrotou a dinastia Manchu e se tornou o primeiro presidente da China. Mas acho que meus pais preferiam a irmã dela, madame Chiang Kai-shek, boa amiga dos Estados Unidos e dos grandes empresários americanos. Na época, minha mãe era uma bela jovem na casa dos trinta anos, muito popular no Country Club. Certa vez foi eleita a mulher mais bem-vestida de Shanghai; mas não tenho certeza se considerou isso um elogio; tampouco se realmente desfrutou do tempo que passou na cidade (mais ou menos de 1930 a 1948). Bem mais tarde, por volta dos sessenta anos, tornou-se uma veterana das longas viagens aéreas e esteve em Cingapura, Bali e Hong Kong, mas não voltou a Shanghai. "É uma cidade industrial", explicava ela, como se isso encerrasse o assunto. Desconfio de que meu pai, com sua paixão por H. G. Wells e sua crença na ciência moderna como salvadora da humanidade, desfrutou muito mais de Shanghai. Sempre pedia ao motorista que diminuísse a velocidade quando passávamos por algum marco local importante - o Instituto Radium, onde algum dia se descobriria a cura do câncer; a grande propriedade dos Hardoon, no centro do Assentamento Internacional, fundada por um magnata iraquiano do ramo imobiliário. Certa vez uma cartomante lhe disse que, se ele parasse de construir, morreria, e assim Hardoon continuou construindo elaborados pavilhões por toda a cidade - muitos deles sem portas e sem nada dentro. No meio da confusão do trânsito no Bund, meu pai me mostrava o "Cohen Dois-Revólveres", na época um famoso segurança dos chefes das gangues. Eu ficava olhando, com todo o deslumbramento de um garotinho, aquele carrão americano com vários homens armados em pé no estribo, no estilo dos gângsteres de Chicago. Antes da guerra, meu pai sempre me levava à fábrica da sua empresa, do outro lado do rio Huangpu, na margem leste - ainda me lembro do medonho barulho das máquinas nos galpões de fiação e tecelagem, das centenas de imensos teares Lancashire, cada um deles vigiado por uma adolescente chinesa, pronta para desligar a máquina se um único fio se partisse. Essas meninas do interior já tinham ficado surdas há muito tempo com a barulheira dos teares, mas eram todas arrimo de família, e meu pai abriu uma escola ao lado da fábrica para que pudessem aprender a ler, escrever e ter alguma esperança de um dia trabalhar em um escritório. Isso me impressionava, e eu pensava muito a respeito no caminho de volta, atravessando o rio no ferry China Printing, que avançava desviando de dezenas de corpos de chineses, cujas famílias não tinham como comprar um caixão e os atiravam nas correntes de esgoto do rio Nantao. Enfeitados com flores de papel, eles boiavam para cá e para lá enquanto o trânsito intenso de barcos motorizados cortava ao meio aquela estranha regata de cadáveres flutuantes. Shanghai era extravagante, mas cruel. Mesmo antes da invasão japonesa de 1937, havia centenas de milhares de chineses expulsos do campo para a cidade. Poucos encontravam trabalho, e nenhum encontrava caridade. Nessa época, antes dos antibióticos, havia epidemias de cólera, febre tifoide e varíola, mas nós, de alguma forma, sobrevivemos. Talvez porque nossos dez empregados moravam conosco (no alojamento dos criados, duas vezes maior que minha atual casa em Shepperton). O consumo desenfreado de bebidas alcoólicas pode ter tido um papel profilático; anos mais tarde minha mãe me contou que muitos funcionários ingleses do meu pai bebiam discretamente durante todo o expediente, e ainda continuavam à noite. Mesmo assim, tive disenteria amebiana e passei longas semanas no Hospital Geral de Shanghai. De modo geral eu vivia bem protegido, considerando o medo de um sequestro. Meu pai se envolveu em disputas trabalhistas com os líderes do sindicato comunista, e minha mãe achava que eles tinham ameaçado matá-lo. Imagino que chegaram a algum acordo, mas meu pai guardava uma pistola automática no armário, no meio das camisas, a qual acabei encontrando um dia. Eu costumava sentar na cama da minha mãe com essa arma pequena, porém carregada, praticando sacar rápido da cinta e apontando a arma para o meu reflexo no espelho. Tive muita sorte por não atirar em mim mesmo, e fui sensato o bastante para não me gabar a respeito com meus amigos da Cathedral School. Passávamos os verões no resort de Tsingtao, uma praia ao norte da cidade, longe do calor implacável e do fedor de Shanghai. Os maridos eram deixados para trás, e as jovens esposas se divertiam a valer com os oficiais da Real Marinha Britânica, de folga em terra. Há uma foto mostrando várias esposas bem-vestidas, sentadas em poltronas de palha, e atrás de cada uma, em pé, um belo oficial, bronzeado e sorridente. Quem eram os caçadores, e quem eram os troféus? A avenida Amherst, com suas casas grandes, em estilo ocidental, se prolongava por uns mil e quinhentos metros além do perímetro do Assentamento Internacional. Do telhado da minha casa se via o campo aberto, uma área interminável com arrozais, pequenas aldeias, canais e plantações que se estendiam até a área que mais tarde se tornou o campo de prisioneiros de Lunghua, a uns oito quilômetros para o sul. Era uma casa de três andares, com estrutura de madeira aparente, em estilo Surrey. Em Shanghai, cada nacionalidade estrangeira construía sua casa em seu próprio idioma - os franceses erguiam vilas provençais e mansões art déco; os alemães, caixotes brancos à la Bauhaus, e os ingleses, casas com estrutura de madeira aparente, uma fantasia que lembrava a elegância dos clubes de golfe, com uma nostalgia meio falsa que reconheci décadas depois quando visitei Beverly Hills. Mas todas as casas, inclusive a número 31 da avenida Amherst, tinham o interior em estilo americano - uma cozinha superespaçosa, uma despensa enorme com geladeiras gigantescas, aquecimento central, janelas duplas e um banheiro para cada quarto. Isso significava privacidade física total. Nunca vi meus pais nus nem juntos na cama, e sempre usava o banheiro ao lado do meu quarto. Meus filhos, ao contrário, foram criados com intimidade quase total comigo e com minha mulher - compartilhando a pia, as toalhas e os sabonetes e, espero, a mesma franqueza a respeito do corpo e de suas funções, tão humanas. Para meus pais, porém, deve ter sido mais difícil manter a privacidade na nossa casa em Shanghai do que eu imaginava quando menino. Tínhamos dez empregados - o Criado (Boy) no. 1 (na casa dos trinta anos e o único com fluência em inglês), seu assistente, o Criado no. 2, o Ajudante (Coolie) no. 1 para o trabalho pesado da casa, seu assistente, o Ajudante no. 2, um cozinheiro, duas amas (mulheres de punhos firmes e pezinhos enfaixados que jamais sorriam ou davam o menor sinal de amabilidade), um jardineiro, um motorista e um vigia noturno que patrulhava o jardim e a entrada da casa enquanto dormíamos. Por fim, havia sempre uma babá europeia - normalmente alguma jovem exilada russa, que morava em casa conosco. O filho do cozinheiro era um menino da minha idade cujo nome minha mãe recordava até os noventa anos. Eu tentava desesperadamente fazer amizade com ele, mas nunca consegui. Ele não tinha permissão para entrar no jardim principal, e se recusava a me acompanhar quando eu o convidava para subir nas árvores comigo. Passava o tempo todo no corredor do pátio, entre a casa principal e o alojamento dos empregados, e seu único brinquedo era uma lata vazia de leite em pó Klim. Havia três furos na tampa, por onde ele jogava pedrinhas; em seguida tirava a tampa e espiava lá dentro. Passava horas fazendo isso, o que me deixava extremamente intrigado, desafiando minha brevíssima capacidade de atenção. Como eu tinha plena consciência de ter um quarto repleto de brinquedos ingleses e alemães muito caros (encomendados todos os anos, em setembro, da Hamleys, em Londres), fiz uma seleção de carros, aviões, soldadinhos de chumbo e navios de guerra e levei para ele. Como ele pareceu perplexo com aqueles objetos estranhos, saí de perto para que os explorasse. Duas horas depois, voltei discretamente e o encontrei rodeado pelos brinquedos intactos, jogando as pedrinhas na lata. Hoje compreendo que aquilo devia ser um jogo, um tipo de aposta com as pedrinhas. Os brinquedos tinham sido um presente sincero, mas naquela noite, ao deitar, vi que todos tinham sido devolvidos. Espero que esse menino chinês, tímido e agradável, tenha sobrevivido à guerra. Sempre penso nele, com sua lata e suas pedrinhas, lá longe, em seu próprio universo. O grande número de empregados, nada mais que a norma entre as famílias ocidentais abastadas, era possível devido aos salários baixíssimos que recebiam. O Criado no. 1 ganhava cerca de trinta libras por ano (talvez o equivalente a mil libras hoje), e os ajudantes e amas, mais ou menos dez libras anuais. Eles não pagavam aluguel, mas tinham que comprar a própria comida. De tempos em tempos uma delegação liderada pelo Criado no1 procurava meus pais, que bebericavam seu uísque com soda na varanda, e explicava que o preço do arroz tinha subido de novo; presumo que meu pai, então, aumentava os salários de acordo. Mesmo após a tomada do Assentamento Internacional pelos japoneses, em 1941, meu pai conservou todo seu quadro de empregados, embora seus negócios tivessem caído drasticamente. Depois da guerra, ele me explicou que os empregados não tinham para onde ir e provavelmente morreriam se fossem demitidos. [...]