Na linha do horizonte, uma melodia mais justa

21/09/2021

Poema de Joaquim Cardozo, retirado do livro Signos estrelados

 

Contam que o poeta pernambucano Joaquim Cardozo (1897-1978) sabia de cor todos os seus poemas e nunca alterava nada nos textos, uma vírgula sequer, depois de publicados, como se estivessem “solucionados”. A anedota condiz com a imagem do poeta engenheiro – metódico com a própria escrita – mas também com certa leitura, tornada uma espécie de lugar comum, do poema ligado a um esforço de construção e precisão em detrimento da emoção, da indeterminação etc.

Joaquim Cardozo encarna bem esse papel, já que foi engenheiro calculista e teve um papel fundamental na construção de Brasília, ao lado de Niemeyer. Com seus cálculos, ele daria corpo à leveza das formas, erguendo do chão prédios como a Catedral Metropolitana de Brasília (com agulhas simulando movimento) e ajudaria a criar, em meio ao utópico projeto da capital, a paisagem com formas que parecem flutuar na linha do horizonte. Se pensarmos na outra direção do clichê que vincula a poesia ao extremo rigor, poderíamos dizer, vendo tais formas arquitetônicas, que o engenheiro fez uso da inventividade do poeta. Mas as coisas não são estanques assim; a poesia sempre exige sua parte de construção e cálculo, mas um calculista também precisa de caminhos mais sinuosos para passar da abstração dos números para o concreto dos traços. A convivência desses dois polos na dupla atuação do poeta certamente foi feita de riscos mútuos – ao menos é o que a leitura de seus poemas parece dizer.

Neste sentido, a poesia tem a capacidade de deslocar os discursos gastos; ou melhor, de manter vivas as tensões e questões indecidíveis. Deixo aqui dois poemas de Cardozo que acredito realizarem tal operação (sem necessariamente “solucionar” nada)[1]

O primeiro poema é a imagem que abre esse texto. Nele, o gesto da escrita está contido no poema: a linha curva registra o movimento da mão que calcula, e do corpo, deixando ali seu rastro.

Já o segundo, foi um poema que me marcou muito desde a primeira vez em que o li, e segue me comovendo a cada leitura. Ele tem início numa sala de laboratório fechada. E silenciosa. Neste espaço, busca-se, por meio de uma experiência científica, uma resposta para a vida: encontrar a pulsação originária.

 

O silêncio expectante e a voz inesperada

Na penumbra da sala do laboratório, uniforme e absolutamente fechada,
Isolada do som e da luz, isolada do tempo e do espaço,
Procedia-se à investigação memorável.

Procurava-se descobrir o espaço completo e geral
Onde se pudesse definir a pulsação originária;
Pulsação que seria a substância de todas as vibrações,
Desde as que iluminam as estrelas Cefeides
Até as que comovem o coração humano,
As que marcam, domesticamente, o tempo civil nos relógios
E as que passam ondulando nas cordas dos violoncelos;
Pulsação que fosse o sangue de futuros nascimentos e de novas cosmogonias.
Dela viria a angústia da matéria dispersa em meio às nebulosas
E que ainda não pôde se converter em estrelas,
Viria a angústia das almas inascidas que, com o frio, e o medo de não nascer,
Se abrigam no ventre das mulheres.

Naquele ambiente inerte e indeterminado
Reinava um silêncio liso e sinistro:
Um silêncio que fora a consequência de rumores especiais e preciosos,
Um silêncio-fronteira de ruídos apagados em macios de paina e de veludo.
Temia-se, porém, a inversão do tempo ou o pânico da luz,
Temia-se, sim, temia-se alcançar a essência do milagre...
Foi então que uma onda ligeira, perdida e vagabunda,
Uma onda que rondava, que rondava na sombra do jardim,
Entrou sorrateira, inesperadamente,
Por uma fresta imperceptível no rádio:

Era uma voz de mulher cantando nas Antilhas.

 

A canção antilhana, na voz de uma mulher, entra por uma onda de rádio e eis que a vida aparece: não do cálculo, mas daquilo que não pode ser previsto nem controlado e que, contudo, está ali. O mundo, a vida, machine à emouvoir.

*

A primeira vez que li este poema foi com um grande professor da UERJ, José Carlos de Azeredo, numa aula de estilística. Lembro do silêncio naquela manhã de inverno, mas não havia nada de ascético ali, nem de impessoal. A emoção da leitura compartilhada, a análise rigorosa do texto, o amor pela experiência com a língua. Deixo aqui este breve epílogo, pessoal e emotivo, para lembrar que a UERJ, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, tem sofrido ameaças descabidas com um recente projeto de Lei que propõe a sua extinção. Apresentada na Assembleia legislativa do Rio de Janeiro, a proposta é inconstitucional e o atual presidente da assembleia já declarou que não será votada. Mas é assustador termos de viver uma era em que o inconstitucional é reiteradamente nomeado e posto em cena. A cada vez é preciso recolocar os discursos no lugar e reafirmar os direitos, neste caso ao ensino público e de qualidade, em uma das maiores universidades que temos, lugar aberto, vivo e dos mais democráticos deste triste país.

Que venha um tempo em que possamos criar novas utopias para aquela linha do horizonte de formas leves – e que ele possa vir povoado por vozes que tragam melodias mais justas.

 

[1] Os dois pertencem ao seu segundo livro, Signos estrelados, de 1960

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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