Stênio Gardel: ‘talvez a tristeza do meu livro possa ser bem lida e recebida'

25/07/2024

“Raimundo Gaudêncio de Freitas, traço incerto, arredio ao toque do papel”.

Vô Cacá era saudável, valente e trabalhador”. 


Assim começam, respectivamente, os livros A palavra que resta (Companhia das Letras, 2023) e Bento vento tempo (Companhia das Letrinhas, 2024). São as primeiras linhas de dois livros do mesmo autor: Stênio Gardel. O primeiro, seu romance de estreia na literatura; o segundo, seu primeiro livro ilustrado.

 

Stênio Gardel (Crédito: Companhia das Letras)

Os dois trechos têm em comum os nomes próprios como suas primeiras palavras: é a vida e sua matéria-prima fina que move a literatura de Stênio. Nessas duas formas distintas de narrar vidas que não existiriam para o mundo - não fosse a mente fervilhante de um contador de histórias -, ele atesta as inumeráveis possibilidades que a literatura tem de inventar ficções em histórias reais e vice-versa.

Premiado e traduzido com A palavra que resta, obra contemplada com o National Book Awards, prestigiada premiação literária dos Estados Unidos, o escritor se lança com Bento vento tempo em mais uma estreia significativa em seu estrelado percurso literário. Além de ser seu primeiro livro ilustrado, que contempla (também) público infantil, a obra foi concebida em parceria com o artista Nelson Cruz, um dos grandes nomes já consagrados na literatura infantil.


O Blog Letrinhas conversou com Stênio para conhecer seus caminhos até aqui. Do ponto de vista de um recém-chegado no universo das produções para as infâncias, como ele enxerga o processo de escrever livros que as crianças (também) vão ler? Quais as percepções de Gardel sobre o mercado de livros e os desafios de publicar literatura ilustrada? Confira a entrevista na íntegra no final do texto.

LEIA MAIS: O que acontece quando a vovó ou o vovô precisam de cuidados?


Linguagens e biografias reinventadas

A chegada de Stênio Gardel na literatura para as infâncias, conforme ele mesmo conta, foi menos uma rota planejada e mais uma circunstância feliz, onde pôde se arriscar produzir algo que pudesse ser apreciado não só por adultos. “Eu não sabia se seria (um livro para a infância), foi um risco. No fundo, eu achava que talvez nem pudesse ser considerado como tal, talvez pela linguagem”.

Na época em que o livro começou a ser desenvolvido, Stênio era aluno de Socorro Acioli (Oração para desaparecer, Companhia das Letras, 2023), no curso de Especialização em Escrita e Criação que a escritora ministra na Universidade de Fortaleza. O ano era 2020, período em que a pandemia impedia os encontros presenciais. As aulas aconteciam com a mediação de uma tela, sem o corpo a corpo físico, mas com a presença possível da modalidade remota. Quando Acioli apresentou a disciplina de escrita para crianças e jovens, Gardel decidiu que era hora de desdobrar uma ideia que já povoava sua cabeça. Queria transformar em literatura um afeto de infância, sua vida de neto. Por enquanto, tinha três palavras que ressoavam entre si já como rimas: Bento, vento e tempo.

Se em A palavra que resta a vida real é uma música de fundo, em Bento vento tempo ela se transforma em orquestra executada ao vivo. O primeiro conta a história de Raimundo, homem analfabeto que carrega consigo uma carta nunca lida de um grande amor do passado. Concursado do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) do Ceará, Stênio diz ter se inspirado na história das pessoas que cruzam seu caminho diariamente. “Essas pessoas me marcaram ao ponto de tentar imaginar como seria a vida delas sem conhecer a língua escrita”, disse Gardel, em entrevista recente na Feira do Livro.

Ilustração de Bento vento tempo, de Stênio Gardel e Nelson Cruz

A 'parede dos esquecidos' ilustrada em Bento vento tempo (Companhia das Letrinhas, 2024)

Já o segundo traz como personagem central não uma figura criada pela labuta criativa, mas pela experiência afetiva, o vô Cacá. Trata-se de uma homenagem póstuma a Francisco Fidelis Maia, avô paterno de Stênio que partiu em 2010, e que agora experimenta a eternidade em forma de livro. 

Em cada uma das obras, é um procedimento de língua e linguagem completamente diferente que entra em cena, um idioma próprio. Em um, o tempo e a voz narrativa se articulam em uma divisão de capítulos que pode ou não ser escrita de forma linear. No outro, é a precisão total que conduz a criação.

Ao adequar a ideia das três palavras – “Bento”, “vento”, “tempo” – à literatura de cordel, Stênio mobilizou mais uma importante memória de vida nessa escolha, a leitura dos cordéis que conhecia desde pequeno. Dentre eles, textos consagrados como O romance do pavão misterioso (que tem autoria incerta entre José Camelo de Melo Rezende e João Melchíades Ferreira da Silva) e A chegada de Lampião no inferno. A partir daí, foi um trabalho minucioso de esculpir o texto em métricas e rimas específicas, com o cuidado de manter a fluidez narrativa. Cada detalhe tinha que ser contado em sílabas, para alcançar a estrutura formal do cordel, o que garante a musicalidade poética de quando lemos em voz alta.

“Depois de reler alguns cordéis e revisar os tipos (número de estrofes e número de sílabas características), comecei a escrever, estrofe a estrofe, anotando as rimas já utilizadas, tentando encaixar a narrativa no espaço dos versos metrificados”, conta o autor.

 

“No cordel, aprendi muito sobre a lida com a língua e suas possibilidades.” (Stênio Gardel, escritor)

 

Na escrita, seja de um romance ou de um livro ilustrado, o que parece estar em jogo é a capacidade de quem escreve e ilustra de lidar com as linguagem sem o receio de, vez ou outra, perder para ela, para logo em seguida chegar com ela a lugares nunca habitados antes. A limitação da linguagem frente à complexidade incapturável da vida parece ser uma das pistas de leitura para a literatura de Stênio Gardel. Não por acaso, sua reverência às palavras aparece na citação que o autor escolheu para ser a epígrafe de A palavra que resta, na voz de Carlos Drummond de Andrade: “São muitas, eu pouco”. 

Confira a entrevista na íntegra com Stênio Gardel

 

Blog Letrinhas: Pode contar sobre o contexto em que Bento vento tempo surgiu? O curso da Socorro Acioli chegou de que forma até você, e qual foi o papel dela no desenvolvimento desse projeto? 

Stênio Gardel: Bento vento tempo foi escrito durante o curso de Especialização em Escrita e Criação que a Socorro Acioli coordena na Unifor (Universidade de Fortaleza). À época (2019-2020) era um curso de 19 meses, que começou presencial, mas por causa da pandemia aconteceu de forma online síncrona, formato em que permanece até hoje. 

Escrevi o texto como trabalho da disciplina de Literatura para crianças e jovens. Queria escrever algo diferente de um conto e me lembrei do cordel, tinha lido alguns ao longo da vida. Tinha também essas três palavras (Bento, vento, tempo) como possível semente de ideia, e tudo se juntou ao que eu tinha visto na disciplina de crônicas, sobre fotopintura. Foi nessa miscelânea de elementos e ainda com algumas memórias minhas e do meu avô Cacá que a história começou a se traçar na minha cabeça. 

Depois de reler alguns cordéis e revisar os tipos (número de estrofes e número de sílabas características), comecei a escrever, estrofe a estrofe, anotando as rimas já utilizadas, tentando encaixar a narrativa no espaço dos versos metrificados. Foi muito interessante perceber como a limitação do formato acabava por vezes a ampliar as possibilidades de utilização das palavras, da língua. 

Concluí a primeira versão em três dias e meio, para enviar para avaliação da Socorro. Isso foi em 2020, e o livro foi publicado agora em 2024, com algumas poucas alterações na sequência de algumas estrofes, mas a história está toda lá.

Blog Letrinhas: Em que momento desse processo você decidiu que este seria um livro para a infância? E o que te motivou nessa escolha?

Stênio Gardel: Eu não sabia se seria, foi um risco. No fundo eu achava que talvez nem pudesse ser considerado como tal, talvez pela linguagem, mas essa impressão pode ter se dado por minha inexperiência mesmo de leitura e escrita de livros para crianças e jovens. Aprendi que poderia, sim, ser um livro voltado para o público infantil e juvenil com a recepção da Socorro e dos colegas e, depois, com a proposta da Companhia das Letrinhas.

Blog Letrinhas: Como aconteceu o encontro da sua ideia com o formato do cordel para estruturar a narrativa? Que desafios e aprendizados essa escolha trouxe para você como autor?

Stênio Gardel: Na minha busca por escrever algo diferente, me deparei com o cordel, com as três palavras (Bento, vento, tempo), com o documentário sobre fotopintura que assisti na disciplina de crônica e ainda minhas próprias vivências com um avô que também esqueceu. 

Acho que definir a história (o menino que quer ajudar o avô a recuperar as lembranças por meio da fotopintura de um retrato) não foi tão complicado, mas o mesmo eu não diria do formato. Nunca tinha escrito poesia, muito menos metrificada e rimada.  E fazer caber momentos narrativos em seis versos, cada um com no máximo sete sílabas poéticas e ainda atentando para a rima nos versos pares foram, com certeza, os grandes desafios. No entanto, ao mesmo tempo, esse desafio me estimulava, me instigava a buscar soluções, acrescentar, retirar ou trocar palavras; a rima às vezes me fazia tentar uma ordem sintática diferente para o verso; outras vezes era preciso dividir o evento narrativo em mais estrofes ou condensá-lo em menos. Aprendi muito sobre a lida com a língua e suas possibilidades.

Blog Letrinhas: Quais foram os primeiros cordéis com que você teve contato em sua trajetória como leitor? Como eles impactaram sua formação literária?

Stênio Gardel: Eu tive o primeiro contato com o cordel já mais crescido, na escola. Li alguns que se perderam na minha memória, mas para a escrita do livro eu revistei O romance do pavão misterioso (que tem autoria incerta entre José Camelo de Melo Rezende e João Melchíades Ferreira da Silva) e A chegada de Lampião no inferno, de José Pacheco, e O poeta da roça, de Patativa do Assaré, que são cordéis bem conhecidos. 

“Talvez, esse tipo de poesia [do cordel] tenha me marcado porque é essencialmente narrativa, conta uma história, e se não fosse assim não sei se teria escrito o livro de outro jeito.” (Stênio Gardel, escritor)


Blog Letrinhas: Como autor premiado, já com uma bagagem consolidada no seu romance de estreia, que diferenças você percebeu, tanto no processo de escrita, quanto de circulação e recepção, entre A palavra que resta, e Bento vento tempo

Stênio Gardel: Acredito que ainda é cedo para ter alguma ideia da recepção do Bento vento tempo. O que sinto é que as pessoas se interessam pela ideia quando falo do livro, então espero que esse interesse seja realmente revertido em leitura, e uma leitura emocionante, como foi emocionante para mim escrever. 

“Do que tenho certeza é que o Bento pode sim ser lido e apreciado pelos leitores adultos também.” (Stênio Gardel, escritor)


Blog Letrinhas: As crianças do seu convívio tomaram contato com esse texto? Qual sua curiosidade, como autor, de como essa história será lida e recebida pelos leitores crianças?

Stênio Gardel: Antes da publicação, mostrei o texto apenas para minha mãe, meu irmão e alguns primos e tias, porque estava ali um pouco do nosso avô e pai. Eu espero descobrir como as crianças encaram um texto que tem um tanto de melancolia. 

“O livro [Bento vento tempo] apresenta uma situação familiar difícil e traz para a leitura elementos da realidade que às vezes assustam até os adultos.” (Stênio Gardel, escritor)

Blog Letrinhas: Hoje, como um escritor também de livros para as infâncias, como você vê a literatura atual (não só no Brasil, mas também em outros territórios e culturas) produzida em diálogo com esse público? Quais autores e histórias te inspiram no segmento literário infantil?

Stênio Gardel: Estou ainda dando os primeiros passos, conheço bem menos esse espaço da literatura do que aquele do romance, por exemplo. Nos últimos anos, contudo, encontrei, sim, autores que admiro, como Tino Freitas, Odilon Moraes, Socorro Acioli, Nelson Cruz, Wander Piroli, sem falar textos mais clássicos como Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector, Os olhos cegos dos cavalos Loucos, de Ignácio Loyola Brandão, e Flicts, de Ziraldo. 

Pelo que tenho visto, os livros não têm medo de levar aos leitores mais jovens assuntos importantes, que fazem parte do crescer e do conhecer o mundo, como o peso das consequências e o encontro com um ato de maldade em O matador, de Wander Piroli e Odilon Moraes; ou ainda uma história da irresponsabilidade industrial, como vemos em Sagatrissuinorana, de João Luiz Guimarães e Nelson Cruz. Nessa perspectiva, talvez a tristeza do meu livro possa sim ser bem lida e recebida.


Blog Letrinhas: Há algum livro infantil que você gostaria de ter lido quando criança e não leu, por algum motivo? 

Stênio Gardel: Quando criança, eu não li livros ilustrados de uma forma geral, e gostaria de ter passado pela experiência naquela idade, por ter outra visão de mundo, por estar iniciando nas letras e no entendimento de arte e literatura. Assim, acho que eu teria sido um leitor mais assíduo desses livros. Hoje, tenho que recuperar esse tempo, conhecer a obra de muitos autores, como Ruth Rocha, por exemplo.

(Texto: Renata Penzani)

LEIA MAIS: Livros sobre avós para falar sobre família, memórias e afeto

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog