
Jornada Pedagógica 2025: Escutar alunos para ganhar leitores
Convidados debatem sobre como é importante dar protagonismo a crianças e jovens na busca de leitores engajados
Arthur era um menino que, como muitos, sentia um certo medo de dormir sozinho. Um dia, ele encontrou uma amiga que o ajudou a lidar com essa sensação e a se sentir melhor, não apenas nesse momento, mas em vários outros, que costumavam deixá-lo apreensivo. A tal amiga era uma formiga muito corajosa (e minúscula) chamada Quibe. Essa é a história do livro Quibe, a formiga corajosa (Companhia das Letrinhas), na qual o garoto encontra uma estratégia para enfrentar seus temores.
O medo, em si, não é ruim. Ele faz parte da experiência do ser humano e, muitas vezes, nos ajuda a evitar situações potencialmente perigosas. Mas também não precisa ser traumático. Com as crianças, aparece mais frequentemente em algumas fases e é possível ajudá-las nesses momentos. Carinho, colo, segurança e até a leitura de livros podem dar as ferramentas necessárias para que as crianças possam enfrentá-lo.
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Quibe, a formiga corajosa nasceu exatamente de uma dessas estratégias de enfrentamento. Foi Arthur, o filho da escritora e podcaster Camila Fremder, quem inventou a Quibe e sua mãe o ajudou a transformar essa história em uma narrativa literária. Segundo Camila, Quibe surgiu mesmo dos medos reais do pequeno. Agora, a formiga o acompanha na hora de dormir, ao encarar momentos de tédio e até nas visitas ao dentista. E ajuda muito! “Ele ainda tem medo de escuro, então, a gente deixa uma luzinha, mas a Quibe aparece nessas horas, quando ele sente medo de alguma coisa”, conta Camila, em entrevista ao Blog da Letrinhas. “Ele fala: ‘Mãe, você acha que a Quibe escorregaria nesse escorregador?’. É a medida dele. Eu falo: ‘Ah, eu acho que ela escorregaria sim. Ó lá, ela foi!’. E ele vai”, exemplifica a autora.
Uma bela amizade, como a de Arthur e Quibe, é uma boa ferramenta para aprendermos a lidar com o medo, que é um sentimento comum e muito importante também, segundo a pedagoga Maya Eigenmann, que também é educadora parental, palestrante e pós-graduanda em neurociências, autora do livro A raiva não educa. A calma educa. “O medo é um dos sentimentos base da espécie humana e existe para nos proteger de eventuais perigos. Então, é normal que a gente sinta medo. Estranho seria se uma pessoa não tivesse medo de absolutamente nada”, explica. De acordo com ela, é um mecanismo de proteção e um sentimento que está incutido em todas as pessoas. “Faz parte da nossa programação, dos nossos circuitos neurológicos”, aponta.
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Medo do escuro, de monstro, de altura… Existem medos mais frequentes, sobretudo para as crianças? Segundo Maya, isso depende muito porque a variedade é imensa. “Não existem medos mais comuns, mas sim uma vastíssima gama, como medo de som alto, do escuro, entre muitos outros. Existem milhões de medos e cada criança pode ter vários tipos de medo ou até um tipo só”, aponta.
Ao longo da vida, uma pessoa pode mudar de medos, conforme as fases pelas quais passa. O maior medo do recém-nascido, por exemplo, é o desamparo. “É por isso que ele tanto chora quando está com fome, frio ou qualquer incômodo”, diz Maya. “Ele não tem a certeza ainda, naquele primeiro estágio de vida, que o desconforto que ele está sentindo vai passar porque dentro do útero era sempre tudo quentinho, mesma temperatura, alimentação contínua. Então, de repente, ele nasce e qualquer desconforto gera medo nesse ser humaninho”, explica a educadora parental.
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Ao olhar a situação por esse prisma, é ainda mais importante que os adultos e cuidadores sejam responsivos e atentos à comunicação com o pequeno. Deixar que um bebê chore por um tempo prolongado pode ser ruim porque, para ele, não é óbvio que o desconforto que sente naquele momento pode passar ou ser resolvido. “Ele só vai aprender que o conforto tem uma solução por meio dessa repetição do acolhimento. Aí a criança começa a ter previsibilidade”, exemplifica.
Então, o recém-nascido vai crescendo e os medos mudam. Ele já sabe que será acolhido, mas, mais adiante, entre o sexto e o nono mês, pode ter medo de quando sua mãe se separa dele - fase conhecida como angústia da separação e que pode durar até os 2 anos de idade, quando começa a perceber que ele e a mãe não formam um só indivíduo. Depois, pode ter medo de dormir sozinho. E assim por diante.
Os medos vão se alterando e não se manifestam do nada. Está tudo conectado com a qualidade da relação que os adultos cuidadores têm com a criança, se ela tem essa segurança de ser vista, ser acolhida e ter seus sentimentos acolhidos. Se essas necessidades forem respeitadas, o cérebro dela não vai precisar criar medo de algo desconhecido, como um monstro. Esse medo é simbólico e diz muito de como a criança se vê no mundo. (Maya Eigenmann, pedagoga e educadora parental)
O medo de dormir sozinho pode ter uma origem biológica, já que, se olharmos para os primórdios da espécie humana - e o livro Implacáveis: como nós conquistamos o mundo, de Yuval Noah Harari (Companhia das Letrinhas), pode te ajudar a entender isso! -, é possível compreender que dormir junto com a cria era uma questão de sobrevivência. “É esperado na nossa espécie que as crianças durmam com os pais. Isso é comprovado pela ciência”, lembra a psicopedagoga. “Se o seu filho está com medo de dormir sozinho, isso é um sentimento absolutamente válido e não deveria ser visto como um problema”, explica.
Estar em um consultório médico, de dentista, hospital ou em um laboratório pode causar medo em muitas crianças - e em adultos também! Muitas vezes, a própria família repassa para a criança uma sensação estressante. “A criança vai ter medo se os pais já ficam tensos com a situação. Ela sente no ar que algo não está legal. Essa sensação de estranheza pode ser reforçada pelo jeito que o dentista [ou o médico, enfermeiro, etc] vai cuidar e tratar da criança, se ele não é esclarecido e ignora ou despreza o choro da criança…”, afirma.
O ideal é que os pais tentem manter a calma, explicar antes, o máximo possível, o que vai acontecer ali, de modo que a criança entenda. Não ignore os sentimentos, nem minta para os pequenos. Não adianta dizer que a “injeção não vai doer” ou que “o remédio é gostoso”. Em vez disso, dá para explicar: “Você vai sentir um pouquinho, mas vai ser rápido e estou aqui, segurando a sua mão”.
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E as dicas valem para ajudar as crianças a lidarem com os medos em geral. “O que existe é o compromisso dos pais de se relacionar com a criança a partir de um lugar de muita conexão e de levar a sério os sentimentos dela”, orienta Maya. “O que nós precisamos fazer como adultos cuidadores é jamais desprezar o medo da criança e achar que ela não deveria sentir aquilo. Primeiro, é preciso trabalhar a nossa mentalidade para não julgar os sentimentos das crianças”, ressalta. “A gente faz isso com elas, mas, se o nosso melhor amigo [adulto] diz que tem medo de altura ou de palhaço, por exemplo, vamos respeitar e não forçá-lo a enfrentar isso. Precisamos respeitar o medo da criança”, compara.
Segundo a educadora, não cabe aos pais e cuidadores forçar a criança a enfrentar o medo ou minimizar o sentimento, dizendo que não há motivo para temer, já que isso não funciona. O caminho é bem o contrário: é importante validar o sentimento e mostrar que entendemos que é uma emoção legítima.
Quanto mais segurança a criança sente na base, na relação com seus adultos cuidadores, mais coragem ela vai ter para enfrentar o mundo e seus medos. (Maya Eigenmann, pedagoga e educadora parental)
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Outra coisa que os pais não devem fazer nunca é comparar a criança com outra ou com os irmãos, por exemplo, mostrando que ela está errada ou é pior do que o outro por sentir o que ela sente. É mostrar que entende, que está ali e que vocês estão juntos, até que a criança se sinta pronta, sem forçar a barra.
Além de Quibe, a formiga corajosa, outras leituras podem ajudar os pequenos a compreenderem o medo e a lidar com ele. Fizemos uma listinha para ajudar:
Em seu segundo livro infantil, o rapper Emicida conta a história de uma menina com medo da noite e do escuro. Depois, ela acaba descobrindo o que tem do outro lado… e tudo muda!
Um monstro enorme e verde pode ser muito assustador… Mas só enquanto a gente não olha direitinho. No livro, cheio de recortes, o monstro acaba se transformando completamente. De uma forma divertida, página a página a criança vai percebendo como afastar esse monstro de seus pensamentos - e não permitir que ele volte!
Falar sobre os medos ajuda a enfrentá-los. E nesse livro tem medo para todos os gostos: medo do escuro, de jacaré, da separação dos pais, medo de avião e muito mais. A única coisa que não muda é que todo mundo tem medo de alguma coisa. Qual é o seu?
Gildo é um elefante muito corajoso. Ele não tem medo de nada, quer dizer, quase nada. Na realidade, ele tem pavor de balões de aniversário (há até nome para essa fobia: globofobia). Como ele vai resolver essa questão? Ficar sem ir à festa do amigo? Ou encarar o temor? Ele opta pela segunda alternativa, acaba com um balão amarrado ao seu braço e descobre que, às vezes, é só uma questão de se acostumar.
O urso Eric tem muitos medos: dos barulhos que ouve à noite, da possibilidade de uma aranha se esconder no seu sapato, de encarar coisas novas, da piscina... Mas ele encontra na amizade com Flora o acolhimento e o incentivo para experimentar e enfrentar seus temores. Flora sempre inventa uma estratégia para lidar com os medos, como quando sugere ao amigo que finjam ser corujas para combater o medo do escuro. Acolhimento, amizade e imaginação fazem a diferença nesta história e na vida.
O cavaleiro está confiante de que, do lado de cá do muro, ele está seguro e que, do lado de lá, coisas horríveis acontecem. Mas nem tudo é o que parece. Enquanto o leitor acompanha o ambiente do cavaleiro ficar cada vez mais perigoso, percebe, do outro lado, que ogros, tigres, rinocerontes não são assim tão assustadores. E que até podem ser bem divertidos, neste livro premiado que convida a olhar para nossos medos de outra forma.
Ele é sempre o terrível da história. Mas será mesmo que o Lobo é assim tão mau? Neste livro, o Lobo é mostrado cada vez com mais distanciamento, e personagens dos contos clássicos vão desaparecendo. O que parecia mais uma história de terror, na verdade, é uma história sobre como tudo que parece nem sempre é. O Lobo, aqui, é um personagem solitário, que só quer fazer amigos. Que tal dar essa perspectiva às crianças?
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