
Jornada Pedagógica 2025: a escola forma leitores?
O papel de bibliotecas e políticas públicas de valorização do livro foi destaque e Maria Valéria Rezende apontou caminhos para formar leitores na escola
“A literatura não é apenas uma ferramenta pedagógica, mas um direito que transcende o ambiente escolar”. A fala da pedagoga e doutora em educação, Sheila Perina, marcou a primeira mesa desta quarta-feira, dia 9, na Jornada Pedagógica de 2025 - increva-se aqui para participar. O tema “O papel da literatura na alfabetização e nos multiletramentos”, reuniu a educadora e mestre em Linguística, Cristiane Mori, e a pedagoga e doutora em educação, Sheila Perina, com mediação da professora alfabetizadora e mestre em educação, Cristiane Pelissari. A conversa trouxe importantes reflexões sobre como ampliar a alfabetização escrita e imagética das crianças.
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O segundo encontro, que teve como pauta a formação continuada dos docentes, teve a mediação da educadora e formadora de professores, Fabíola Vilas Boas, e reuniu para esta conversa a educadora e doutora em Ciência da Informação, Fabíola Farias, da escritora e pedagoga, Marcia Licá, e da escritora e educadora Luciany Aparecida, autora do livro Mata Doce (Companhias das Letras, 2023), que compartilhou um relato que fala da dimensão da literatura como direito. “A primeira vez que li poesia foi ouvindo poesia no rádio com meu avô lavrador, que plantava mandioca para levar o sustento da família e chegava em casa com a sua enxada. Quais são as ferramentas possíveis para essas pessoas? Como podemos democratizar o acesso para que o livro chegue junto dessas pessoas, para que junto dessa enxada venha o livro também? Acessar esse direito pode nos proporcionar uma coisa muito refinada, que é o direito ao sonho”.
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“Quando aprendi a ler percebi que era possível sonhar acompanhado. Nunca mais me senti sozinho”. A primeira mesa do dia começou com a leitura de um trecho do conto “Uma menina lendo”, do escritor angolano José Eduardo Agualusa. “Quando uma criança começa a ler, o mundo abre-se para ela, expõe-se, revela-se, em todo o seu brilho, mas também com todos os seus perigos”, continuou a professora Cristiane Pelissari, que mediou o encontro. O texto de Agualusa é inspirado na observação dele sobre o momento em que sua filha aprendeu a ler e, por isso, foi escolhido para abrir o debate sobre a leitura na alfabetização.
Para a educadora Cristiane Mori, a prática da leitura compartilhada é essencial para o processo de alfabetização e não deve ser interrompida ao longo da vida escolar. “Um pecado capital é parar de ler para os nossos estudantes quando eles estão aptos a ler sozinhos. Essa prática da leitura compartilhada é fundamental para a alfabetização e multiletramento. Ela leva para os nossos estudantes essa dimensão da literatura de criar mundo possíveis, de ficcionalizar”, resume ela, que diante dos números desanimadores da pesquisa Retratos da Leitura, que mostrou pela primeira vez um cenário com mais não-leitores do que leitores no Brasil, perguntou: “Por que estamos perdendo a alegria de ler? Ou por que não estamos promovendo a alegria de ler?”.
Em seus mais de 30 anos como educadora, Cristiane Mori apresentou pontos que considera essenciais para que essa alegria exista nas salas de aula e nos processos de alfabetização. “A gente deve ler desde sempre, todos os dias. Ler por intermédio do professor, mas também por si mesmo. Ler todos os dias literatura de qualidade. E, atravessando todos esses pilares, é preciso ser um professor leitor”. Mori também se aprofundou sobre o que seria uma literatura de qualidade para esse momento da aprendizagem e usou como exemplo o livro do autor Caio Zero, Aqui e aqui (Companhia das Letrinhas, 2023). “É um caso exemplar do que considero um texto literário de qualidade. Ele alarga as possibilidades de significação da língua, explorando deliberadamente os recursos linguísticos. E é provocativo: veja o título, faz ficarmos curiosos com o que é esse ‘aqui’. O que será isso?”. E completa: “Um bom livro, como esse, amplia a perspectiva do nosso próprio cotidiano, seja em espelho, com aquilo que nos é conhecido, seja por ele nos colocar abrindo uma janela, em contato com uma estética ou ética que nos é diferente. O texto literário de qualidade me faz refletir sobre quem eu sou, onde eu vivo e como eu me relaciono com o coletivo”. Ela ainda acrescenta que não podemos achar que ler o texto escrito exige demanda de um ensino formal, mas a imagem é natural. “Não é. Ambas devem ser trabalhadas, pois são formas complexas de leituras. Hoje não há nenhuma dúvida de que os textos não são mais só compostos pela linguagem verbal".
Os textos hoje são multissemióticos, então as ilustrações são constitutivas do texto. Ler as imagens é uma forma de leitura”, Cristiane Mori, educadora
A pedagoga Sheila Perina trouxe a questão do acesso como um dos grandes desafios da história da leitura na escola. “Somente a partir da constituição de 88 que começamos a observar o acesso das classes populares à educação. Nossos alunos da escola pública tem esse histórico. É recente esse direito. Na família da minha mãe eu sou a primeira a concluir o ensino básico na idade certa. Se esse é um direito recente, qual é o lugar da literatura para essa população?”. Sheila provocou os educadores e mediadores a pensar que a literatura não inclui apenas a escrita canônica, mas também muitas outras escritas que carregam memórias, e, também, as narrativas orais. “As narrativas não se limitam aos livros, mas se manifesta de maneira vibrante de várias formas na sociedade. Quantas histórias não foram contadas por nossas mães e avós ? Essa literatura infelizmente não está no currículo, mas está nas nossas comunidades. Quando pensamos assim, pensamos que as classes populares produzem, sim, literatura”. Para Sheila, a literatura oral e a presença de textos de memória é um verdadeiro espaço para que o afeto e a alegria existam no processo da alfabetização. “Eu ensinei uma parlenda que aprendi com minha mãe para meus alunos, e falei dessa origem para eles, que ficaram curiosos e se envolveram afetivamente”.
A rigidez no processo de aquisição da leitura e da escrita também foi analisada por Sheila, que acredita prejudicar o processo. “Ao nos depararmos com a leitura no começo, a escrita inicial, às vezes, somos muito rígidos, corrigimos com aspereza, impomos certas normativas que nem usamos. Sem perceber, estamos inibindo a alegria do aprendizado. Precisamos acolher cada erro como um degrau”. Cristiane Mori também faz um alerta aos docentes sobre o lugar da leitura no processo de alfabetização. “O professor deve ter os seus momentos intencionais de prática de análise e reflexão sobre o sistema de escrita, mas é importante que nesse momento ele esteja intencionalmente atuando para uma prática alfabetizadora. E isso deve conviver com outros momentos em que a literatura literária seja feita para se ler uma boa literatura. Por que lemos? Porque é um bom livro e essa experiência é um valor do qual não abriremos mão”.
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A segunda mesa do dia, que tratava sobre a formação dos educadores, trouxe as questões de acesso como ponto de partida. A escritora e pedagoga Marcia Licá lembrou que para pensar a formação de professores é preciso olhar para as estruturas disponíveis. “As histórias sempre estiveram na casa das pessoas, o livro não. A gente tem espaços em que não se renova o acervo há quase 20 anos. Precisamos nos comunicar mais com as políticas de acesso”.
Confira a transmissão na íntegra da mesa "Formando quem forma leitores: debates e práticas"
A educadora e doutora em Ciência da Informação, Fabíola Faria, também tratou da questão e lembrou que as bibliotecas escolares são garantidas por lei. “Não é possível pensarmos em políticas de formação de leitores se não pensarmos em bibliotecas em todas as escolas. Temos uma lei no Brasil (Lei 14.837) que diz que todas as instituições de ensino devem ter biblioteca”. Apesar dos desafios, e de questionar as estruturas, a educadora traz uma fala importante: “Precisamos afirmar a escola como um espaço de formação e afirmar a formação escolar para além de um discurso produtivista. Se a tarefa da escola fosse capacitar para o mercado de trabalho, mas não é. Estamos falando de formação”. Fabíola cita o escritor italiano Ítalo Calvino e seu livro “Um general na biblioteca” como uma aula magistral sobre o que pode a literatura e o que pode uma biblioteca.
Já a escritora Luciany Aparecida provocou os educadores a olharem para suas escolhas como formadores. “Precisamos nos perguntar o que é a literatura e o que ela pode fazer. A literatura é um lugar de neutralidade? Ela é uma ferramenta que reforça classes dominantes e essas ideologias? Se for, como pessoas mobilizadoras da leitura, nós precisamos nos posicionar, por exemplo, alterando nossa bibliografia”.
Quando a pergunta “como o educador se forma, afinal?”, volta ao final da conversa - tema complexo - Marcia Licá lembra os disseminadores da leitura, que trabalham na escola ou outros espaços de educação literária, que as metodologias estão dadas, que há muito material compartilhado. “Temos questões estruturais de acesso, de bibliotecas, mas as metodologias estão sistematizadas em diversos materiais científicos e publicações. A gente tem que se aprofundar nisso que já está posto, estudar e praticar. Possibilitar esses sonhos e, para isso, precisamos de estrutura, sair deste lugar da falta de acesso”. Já Luciany fez questão de pontuar que sempre se trata de uma formação contínua. “Como formar quem vai formar? Pensar em formação de leitura é pensar em desejo. Como tocar no desejo das pessoas? Criar aproximações e é uma zona de sensibilidade muito grande, está nesse lugar delicado que é pensar a vida.”
A pesquisadora Fabíola foi a que fechou o encontro. “De fato falta muito, mas nós já temos muito que não tínhamos antes”, reforçou, e quis pontuar uma reflexão ainda mais ampla. “Temos sempre em mente que a leitura produz cidadania. Mas é o contrário: a cidadania que produz as possibilidades de leitura, é a cidadania que me deixa tempo de existir para além do tempo de produzir. Quero fechar com esse convite para nós pensarmos além dos clichês o que é que eu posso fazer no meu micro para que isso aconteça, como eu contribuo na tarefa de construir vidas melhores e mais justas para todas as pessoas nesse país.”
(Texto: Anna Luiza Guimarães)
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