
Jornada Pedagógica 2025: a escola forma leitores?
O papel de bibliotecas e políticas públicas de valorização do livro foi destaque e Maria Valéria Rezende apontou caminhos para formar leitores na escola
Nesta terça-feira, dia 8, a Jornada Pedagógica 2025 discutiu grandes desafios para a educação literária nas escolas. A primeira mesa trouxe o tema "A BNCC e o compromisso de formação de leitores na escola”, quando os convidados olharam para leitores de todos os segmentos da educação: “Dos nenéns ao Enem”, como disse o educador Paulo Focchi, doutor em educação e criador do Instituto Obeci (Observatório da Cultura Infantil) e um dos convidados do dia. Acompanhando ele, estavam o professor de Didática de Português-Literaturas da UFRJ, Marcel Álvaro de Amorim, e na mediação da professora e pesquisadora Katia Chiaradia, que fez parte da produção do livro A BNCC e a formação leitora na Educação Básica, parceria da Companhia da Educação com o Instituto Singularidades. A importância da literatura ser pensada dentro de uma educação integral, sendo ponte para múltiplas linguagens, foi um dos pontos de reflexão com foco em todas as idades dentro da escola.
A segunda mesa do dia, com o debate “Literatura e diversidade: descolonizando os imaginários”, reuniu três autoras: a educadora e escritora indígena, Márcia Kambeba, a escritora e historiadora Micheliny Verunschk, e a escritora e jornalista, Calila das Mercês. A mediação ficou com a editora da Companhia das Letrinhas, Débora Alves, que trouxe para a conversa a questão sensível da dominação da língua portuguesa como parte das ações violentas do colonialismo. Márcia Kambeba afirmou que a língua é uma ponte. “Para nós, a língua portuguesa é importante. Eu penso que escrevo bilíngue, porque eu escrevo para os dois mundos, o universo indígena e o não indígena, que precisam se unir por uma ponte, que é o respeito. Eu sei andar no seu mundo, que você saiba andar no meu”.
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“Qual é o compromisso da escola com a educação literária?”, com essa pergunta, a professora e pesquisadora Katia Chiaradia dá início às reflexões da primeira mesa do dia, que teve como fio condutor a Base Nacional Comum Curricular, a BNCC, documento normativo para as redes de ensino e suas instituições públicas e privadas.
A conversa começou com o educador Paulo Fochi alertando para uma prática comum que ele vê em escolas pelo Brasil. “O encontro com a literatura na educação infantil é algo amplo, não se reduz às perguntas sobre se tem ou não tem hora do conto, se tem ou não tem retirada de livro toda semana, se tem ou não tem biblioteca dentro da escola”. Fochi, que participou como consultor no desenvolvimento de políticas públicas para a educação infantil, afirma que a BNCC fala sobre isso. “Esse documento vai reconhecer que a linguagem, nas suas mais diversas formas, passa por uma compreensão das tantas formas das crianças interpelarem o mundo e dar corpo aos seus pensamentos. Uma história tem diferentes fatores. Tem o ritmo, tem as ilustrações, tem a forma, os mistérios. Como achamos que esse encontro, que é tão rico e tão amplo com as crianças, acontece em uma roda que dura alguns minutos? Como a gente reduz esse encontro a um ato tão isolado, que muitas vezes faz as crianças repudiarem o encontro com a leitura?”.
Fochi convida os profissionais da educação infantil a pensarem a leitura de forma mais ampla. “Muitas vezes quando falamos de leitura e escrita, pressupõe-se que isso se restringe apenas na relação das crianças com as letras. Na educação infantil, antes da gente pensar no conhecimento canônico, a gente está pensando na relação da criança com o objeto. Nesses primeiros seis anos de vida, podemos pensar no encontro das crianças com os diferentes campos do conhecimento como o encontro com objetos de conhecimento. Não como memorização, ou que precisa ser feita por uma mera formalidade”, afirma ele, que pede que o currículo não seja visto como uma lista de objetivos. “Não é uma lista de tarefas. O currículo escolar se dá nessa cotidianidade, nesse conjunto de escolhas que fazemos para essa jornada. E o encontro da literatura com a criança é uma escolha curricular, que se amplifica na solidariedade de tantas linguagens, tendo em vista um currículo que pressupõe o desenvolvimento integral”.
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Fochi fala, ainda, da importância de oferecer pluridiversidade. “Ter protagonistas pretos, indígenas, quilombolas, de diferentes continentes, que mostrem essa diversidade que tem na vida humana. Isso é uma forma importante da gente pensar esse encontro da criança com a literatura”, sugere o educador, que também acredita no poder da escolha da criança. “A Yolanda Reyes, que tem um projeto lindo na Colômbia, fala que os livros mais amados na sua escola são os mais babados e mordidos. Eu acredito que as crianças também têm agência para fazer suas escolhas. Elas elegem tantas coisas, amigos, objetos, por quê não os livros?”
O professor Marcel Amorim também levanta a questão da escuta e troca com os alunos na hora de escolher os livros que serão adotados no ensino fundamental e médio. “Às vezes ficamos muito presos com os currículos literários. Mas não precisa ser assim. Essa escuta no processo de escolha dos livros pode acontecer. O trabalho do professor como mediador neste momento é muito importante. Ele pode apresentar obras diferentes de um mesmo autor e deixar que os alunos opinem sobre o que eles têm mais interesse em ler”.
Marcel fez uma apresentação sobre a construção da BNCC - que teve sua primeira versão em 2015 - e o quanto ela foi importante para o trabalho com a literatura na escola. “Ela traz, pela primeira vez, a escrita literária, que não aparecia em nenhum documento norteador da educação anteriormente. A Base entende que o exercício literário permite a produção de certos níveis de reconhecimento, solidariedade e empatia”. Marcel afirma que não é possível fugir da BNCC, que baliza muito as ações docentes pelo Brasil ao trabalhar com o currículo literário na escola, mas isso não significa que o professor não pode trazer novas práticas. “É possível encontrar brechas se olhar para o que o documento traz de bom. Eu acredito que as brechas são espaços de microrresistências e que a singularidade do trabalho docente está aí”, incentiva ele, trazendo sugestões de ações efetivas, como incorporar autorias negras e indígenas ao currículo, organizar batalhas de poesia, produzir livros coletivos, promover encontros com autores e abordar autorias periféricas que se encontram no universo digital.
Ao pensar na palavra “resistência” citada como algo tão importante no fazer do educador durante todo o debate, Paulo Fochi encerrou lembrando Ailton Krenak.e seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo (Companhia das Letras, 2020). “Ele diz que nesse tempo, com um tipo de humanidade zumbi, há uma intolerância muito grande com quem ainda consegue experimentar o prazer de estar vivo. E as crianças ainda conseguem experimentar o prazer de estar vivo. Elas são aquilo que ele chama de pequenas constelações: cantam, dançam e se manifestam. A provocação dele sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim. Que o professor se entenda como um adiador do fim do mundo. Se encontrar com a literatura, com a arte, com as linguagens é um bom caminho para adiar”.
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“Toda história poderia começar com um rei. Mas aqui, não. Aqui vai começar com uma menina indígena”. Com essa frase, a editora da Companhia das Letrinhas, Débora Alves, deu início à segunda mesa de debates desta terça-feira. A citação é uma referência ao livro O som do rugido da Onça (Companhia das Letras, 2021), da autora e historiadora Micheliny Verunschk, uma das convidadas do encontro. E a “menina indígena” da mesa era a educadora e escritora indígena, Márcia Kambeba, que falou sobre a escrita indígena como uma ferramenta importante de resistência e de reconstrução do imaginário. “A nossa intenção como escritores indígenas é exatamente desconstruir as ideias erradas que foram repassadas de geração em geração. Quando nós escrevemos, nós estamos remexendo a memória, preservando a nossa língua ancestral. Reparem: estamos respondendo uma violência imensa que sofremos com um convite para conhecerem a nossa cultura, nossos saberes, a nossa culinária, a dança, os rituais, os nossos cantos”.
Micheliny reforçou a importância desta reconstrução, e acrescentou que é preciso criar experiências, gerar afetos. “É preciso recolocar os afetos das crianças e dos jovens para entender, conhecer e amar. A gente não vai amar a natureza, se ela for só o descanso de tela do nosso computador. A gente não vai valorizar o legado, a ancestralidade indígena ou afrodescendente se as pessoas não estiverem em contato permanente com as histórias, as crenças e as cosmovisões. É um trabalho imenso, mas precisamos assumi-lo individual e coletivamente”, convoca ela, que relata ter morado em uma cidade do Recife, que era território indígena, sem nunca ter ouvido falar disso na escola. “Os povos indígenas eram tratados dentro do ambiente escolar como invisíveis, mesmo aquele território sendo cercado de povos indígenas. Estudamos as grandes famílias que diziam ter fundado a cidade, como se aquele território fosse fundado pelo colonizador. Eu lembro do meu espanto, ainda criança, quando descobri que havia povos indígenas ao meu redor e na formação da minha família”.
A escritora e jornalista Calila Mercês também lembrou de suas raízes e da importância de sua ancestralidade. “Eu sempre tenho dito que minhas primeiras escolas são o sertão e o recôncavo da Bahia, é de onde começam as histórias dos meus mais velhos. E depois fui para a educação formal, onde me formei professora de português e redação”. Em sua trajetória, Calila cruzou com muitas lideranças que reforçaram seu imaginário e ajudaram a construir um pensamento contra-colonial. Ela trabalhou junto com a autora e pesquisadora Conceição Evaristo, com quem contou que teve a possibilidade de pensar “a educação como prática de liberdade”, e conheceu o poeta Antônio Bispo dos Santos, Nêgo Bispo, falecido em 2023. “Aprendi muito com ele sobre a perspectiva contra-colonial. É pensar na circularidade, na pluralidade, na biointeração. Nós, a natureza e todos os seres estamos interligados e isso nos ajuda a pensar na ampliação de protagonismo”.
Ao trazer tantos autores de origens e pensamentos diversos, surgiu a dúvida sobre ler ou não ler uma literatura considerada “clássica”, como José de Alencar, que escreveu “Iracema”, que teve a primeira edição em 1865 e ainda é muito presente no currículo literário de escolas pelo Brasil. “Primeiramente, é uma imagem estereotipada. A gente entende que quando essas obras foram escritas, era outro pensamento, outro olhar, com a intenção de criar uma identidade nacional. Mas hoje, elas não nos representam. Não tem como achar que Iracema representa a luta das mulheres indígenas atualmente”, explica Márcia. Micheliny concordou, dizendo que não podemos nos limitar aos clássicos. “Precisamos ler José de Alencar e outros autores, mas criticamente. Na verdade, ler ao revés. Ler contra a corrente, desconstruindo esses estereótipos. Temos que estar municiados de outros autores e de outros afetos”.
Calila terminou pontuando a necessidade dos educadores pensarem nas suas escolhas como atos políticos. “Temos muitos desafios pela frente, pensando nessa nova geração. Mas pensando também no lado rico da experiência escolar, ver a necessidade de possibilitar que a juventude possa ter dentro da sala de aula uma biblioteca, não somente de livros, mas de referências, com legitimidade de um povo diverso. Cada vez mais é insistir nisso”.
Confira a transmissão na íntegra da mesa "Literatura e diversidade: descolonizando imaginários"
Todas as mesas da Jornada Pedagógica de 2025 estão disponíveis na íntegra no canal Companhia na Educação, no Youtube.
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(Texto: Anna Luiza Guimarães)
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