Quem é que não gosta de um abraço? E de sentir aquele “quentinho no coração”? Essas sensações acolhedoras podem ser despertadas de várias formas: por afeto, por carinho, por familiaridade, por uma memória boa… Ou por tudo isso, dentro das páginas de um livro. O conceito de comfort book ou comfort reads passou a ser utilizado por muita gente, na esteira de outros termos como comfort food (usado para alimentos que trazem a sensação de aconchego), comfort wear (para roupas que priorizam o conforto) e comfort living (quando o conceito de acolhimento é aplicado à decoração, por exemplo). Mas o que é, afinal, um comfort book?
Ilustração do livro Os dengos na moringa de voinha, que trata de objetos e vivências acolhedoras a muitas pessoas
A professora Cilza Bignotto, do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar-SP) percebeu que havia pessoas referindo-se a comfort books durante a pandemia. “Leitores de países de língua inglesa faziam comentários sobre livros, geralmente de ficção, cuja leitura teria efeitos relaxantes, por permitir escapar da realidade brutal que vivíamos na época (e continuamos vivendo)”, relata ela. “Entre os livros mencionados, havia romances canônicos para adultos, como Persuasão, de Jane Austen, e romances infantis também considerados clássicos, como A teia de Charlotte, de E. B.White, e Winnie-the-Pooh, de A.A. Milne, passando por sagas como as de Harry Potter, de J. K. Rowling, e O senhor dos anéis, de J. R Tolkien, entre muitos outros”, aponta.
Livros que aquecem o coração
Para ela, o que as obras classificadas nessa categoria têm em comum é que, cada uma a seu modo, tratam do amor, da vontade de fazer o bem, da vitória do bem sobre o mal. “Todas elas têm finais felizes e mensagens sobre perseverança, paciência, compaixão e outras virtudes, sobretudo a força do amor, em formas diversas, para superar adversidades. Todas tratam de empatia, solidariedade, amizade e valores mais importantes do que dinheiro, aparência, status social”, explica.
Além das leituras que nos trazem essa sensação tranquila, agradável (muitas das quais já sabemos mais ou menos o que esperar), há as releituras (nas quais sabemos exatamente o que esperar e buscamos o efeito despertado na primeira leitura) e existe também o conforto que vem pelas memórias afetivas que aparecem nas histórias, em figuras de personagens ou nas descrições de objetos e cenários, por exemplo.
Em Os dengos na moringa de voinha, de Ana Fátima, ilustrado por Fernanda Rodrigues, um objeto desperta lembranças cheias de afeto para a personagem, que podem facilmente alcançar o leitor, dependendo de suas experiências. Trata-se de uma moringa, uma vasilha de barro muito utilizada em territórios quilombolas, mas comum a casas por todo o Brasil, especialmente em décadas passadas. Na história, a peça fica entre a sala e a cozinha, na casa da avó da personagem, que descreve tudo o que lembra e o que sente ao olhar para aquela moringa, tão simples e, ao mesmo tempo, tão especial. Ela lembra do abraço do avô, do cafuné da mãe, do cheiro do angu feito pela tia, do pai tocando samba para a irmã dançar e muito mais. A moringa representa a simplicidade e a potência do cotidiano, uma forma de viajar nas lembranças, sem sair do lugar. Escapar da realidade, e partir para um lugar de conforto.
A releitura (e a repetição) que nos leva para um lugar de conforto
A professora Cilza lembra que, embora o nome comfort book seja novo, o desejo de escapar do mundo lendo um livro é muito, muito antigo. A vontade de ler a mesma história, que você já sabe o que vai trazer, que vai ter um final feliz, que você vai encontrar com aqueles personagens queridos, nos lugares que você já criou dentro da sua mente, é também uma forma de fugir para um lugar tranquilo, sem sustos, sem medo. Já reparou que é isso que as crianças gostam de fazer quando pedem que você leia mil vezes aquela mesma história?
“De fato parece haver uma conexão com a infância - não apenas com o bem-estar sentido ao ler a narrativa de ficção, mas com o bem-estar sentido na ocasião da leitura: o aconchego de um determinado lugar, como a casa de avós, a atmosfera de proteção e segurança, a presença de pessoas queridas... Crianças - e adultos também - têm vontade de repetir situações que já proporcionaram sensações boas”, explica. “Famílias e grupos de amigos costumam criar e repetir certos rituais que dão prazer, como assistir a filmes juntos, ir a uma sorveteria, jogar futebol, cozinhar determinadas receitas, caminhar num lugar bonito. A leitura é um desses rituais”, aponta.
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Colcha de fuxico, moringa, samambaia, toalha de renda, angu, vassoura de palha, pratinho do santo... objetos que moram nas memórias afetivas de muita gente estão no livro Os dengos na moringa de voinha
No caso das crianças, a repetição é parte do desenvolvimento emocional e intelectual. “É algo que oferece sensações de segurança e conforto”, diz. No caso dos adultos, explica a professora, repetir experiências prazerosas, como ler determinado gênero de romance, pode ajudar a diminuir a tensão, lembrar que a vida pode ser boa, esquecer, ainda que momentaneamente, dos problemas e preocupações.
Mas será que ler aquele livro preferido várias vezes ajuda ou pode ser prejudicial, afastando a criança da possibilidade de experimentar novas histórias? Para Cilza, ler comfort reads pode ser um estímulo para que os pequenos procurem outros livros mais tarde. “Os pais, professores e outros mediadores de leitura podem incentivar as crianças a buscar livros diversos, dando sugestões - e sendo, eles mesmos, leitores de obras variadas”, sugere. E tem mais! “Se a criança se tornar alguém que só curte romances distópicos ou contos de detetives, não há o menor problema. A gente faz e lê literatura porque gosta, não porque precisa dela para fazer tarefas e resolver problemas do cotidiano”, reforça.
O livro Minha vó ia ao cinema retrata um nostálgico interior brasileiro com crianças que brincam livremente, a indústria têxtil, o trem e várias memórias afetivas
Livro que conforta pode garantir boas surpresas
Ainda que, muitas vezes, um livro que conforta seja uma leitura repetida, uma leitura a que recorremos quando não queremos estresse, adrenalina ou grandes desconfortos ou desafios, isso não significa que seja uma leitura sempre morna ou mais do mesmo. A professora de literatura Milena Ribeiro Martins, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que trabalha com literatura infantil e bibliotecas escolares, lembra que um comfort book, como tem sido chamado esse tipo de livro, também pode reservar boas surpresas. Até porque cada vez que um leitor interage com um livro, ele é um leitor diferente, viveu novas experiências, pode ter mudado de pensamento, pode perceber algo que não viu antes.
“Se eu busco ler mais um livro de um escritor de quem eu gostei muito, posso me surpreender ao encontrar novas abordagens, estilos e reflexões desenvolvidas de modos bem distintos. Nesse sentido, a aparente satisfação de uma expectativa pode gerar surpresas, agradáveis ou não”, diz ela. “Uma obra de ficção é sempre um encontro, e os encontros mais singelos podem ser surpreendentes. Assim como uma conversa trivial com um amigo conhecido num café habitual pode despertar ideias novas, insights, reflexões inesperadas, também uma leitura aparentemente tranquila pode suscitar boas reflexões, seja por estímulo da obra, seja por reação à obra”, destaca.
“Leituras confortáveis, como roupas confortáveis, atendem a demandas compreensíveis, não prometem deslocar o leitor de suas expectativas e temas habituais, mas podem ser suficientes para determinadas circunstâncias. E as circunstâncias e os objetivos das leituras são muito variados: lazer, distração, evasão, instrução profissional, instrução para outros campos que não a profissão (como um hobby), auto-ajuda, religiosidade, etc. As demandas são as mais variadas. Ao mesmo tempo, uma obra de ficção é (ou pode ser) um objeto complexo: ela pode parecer uma obra previsível e, ainda assim, reservar boas surpresas, desestabilizar certezas. Não creio que se deva negligenciar obras fáceis como sendo, a priori, desprovidas de interesse ou de ganhos intelectuais”, afirma.
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No livro Domingo, Marcelo Tolentino faz um comfort book retratando algumas das melhores comfort foods: macarronada, bolo de cenoura com calda de chocolate...
“Por menor que seja a ousadia de um livro ‘confortável’, ele traz novos arranjos, novas imagens, pensamentos novos. E mesmo a releitura de textos já conhecidos pode ser reveladora, na medida em que o leitor é novo a cada dia”, aponta. “Aquele antigo adágio atribuído a Heráclito, ‘ninguém se banha duas vezes no mesmo rio’, serve para pensar a releitura e a mudança constante dos indivíduos”, reflete ela.
Um comfort book para chamar de seu
Como cada pessoa tem uma experiência, um gosto, uma preferência e uma visão, o que traz conforto para você pode não trazer a mesma sensação para o seu vizinho. “Cada pessoa lê de um jeito único, pois tem um conjunto único de experiências, que inclui outras leituras”, lembra a professora Cilza. “Os textos literários ganham vida em nossa imaginação a partir das referências, expectativas, vivências que acumulamos em determinado momento da vida”, acrescenta. “Há leitores que não encontram conforto nos romances de Jane Austen, porque leem neles toda a opressão sofrida por mulheres no século 19”, aponta ela. Outros, sim.
“A gente só descobre do que vai gostar ao ler. Lembro-me de uma comparação feita pela escritora Ana Maria Machado, muitos anos atrás, em uma palestra. Ela dizia que ler livros é como paquerar: nem sempre a primeira paquera ou o primeiro namoro dá certo; nem por isso a gente desiste de tentar. Com os livros é parecido: precisamos experimentar leituras, paquerar livros, sempre, para descobrir de que gostamos, o que nos faz bem”, cita.
Qual livro te abraça?
Tem sentimento mais revigorante que ver A alegria de um cachorro com uma bola na boca? Neste livro, há várias formas de ver alegria na vida
Afeto no papel: uma seleção de livros que confortam
Embora cada pessoa tenha a sua própria experiência com leituras confortáveis - e seja, assim, difícil fazer uma seleção de comfort reads que tragam acolhimento a todos - selecionamos aqui alguns livros que podem remeter à sensação de aconchego e abraço, por meio das memórias e dos afetos. Tem objetos queridos da infância, casa de avó, abraço, amizade, finais felizes... Confira!
Os dengos na moringa de voinha, Ana Fátima (Brinque-Book)
A moringa, que fica na casa de voinha, lembra de vários momentos doces e cheios de afeto. Tem cafuné no cabelo, dança, som, comida gostosa... Um abraço e tanto!
Domingo, Marcelo Tolentino (Companhia das Letrinhas)
Os almoços de domingo em família podem ser monótonos, mas também muito divertidos! A saudade da infância e a imaginação aflorada permeiam essa história que se passa na casa dos avós.
Minha vó ia ao cinema, Paula Marconi de Lima (Companhia das Letrinhas)
Uma menina apaixonada pelas histórias que vê no cinema e lê nos livros, enquanto trabalha numa fábrica. Na companhia delas, não se sente sozinha, nunca!
Almoço de família, Janaina Tokitaka (Companhia das Letrinhas)
Mais um título que homenageia aqueles almoços de família e destaca o que neles há de mais gostoso: a convivência! Não importa o quanto uma família pode mudar, uma coisa nunca muda: o prazer de sentar à mesa e partilhar do momento da refeição.
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Quem é quem tem uma história preferida? Ou várias? Aqui, o que importa é estar na poltrona, acompanhado de uma boa leitura.
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Quantas alegrias cabem no seu dia? A alegria de não ter nada para fazer, a alegria de uma mudança, a alegria de poder dizer: é nosso, a alegria de um cachorro com uma bola na boca. Neste livro em que tudo tem seus dois lados, você encontra mil motivos para encarar o dia com alegria.
Quero um abraço, Simona Ciraolo (Companhia das Letrinhas)
Nessa bela história de esperança, o sonho do cacto Felipe é encontrar alguém que tope abraçá-lo. Ele tenta de várias formas, se decepciona e, quando tudo leva a crer que ele se retraiu em seus próprios espinhos e vai permanecer assim, o cacto encontra alguém perfeito para um abraço e uma amizade sincera.
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O poder da imaginação e o conforto dos livros trazem a esperança de que a voz de uma menina introvertida seja ouvida nesse mundo tão barulhento. Uma história emocionante para pensar no nosso lugar no mundo e em como os livros podem ser refúgio, companhia e acolhimento.
Apesar de tudo, Dipacho (Companhia das Letrinhas)
Nenhuma história de amor acontece sem dificuldades. Mas e se, apesar de tudo, tentarmos? Os episódios desafiadores podem fortalecer esse sentimento... Neste livro simples e carismático, toda boa história de amor vale a pena.