Escritores amarelos

20/09/2016

Por Luisa Geisler

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Queria falar do Setembro Amarelo, um mês de conscientização e prevenção do suicídio, cujo slogan é “Falar é a melhor solução”. Segundo o site oficial, 32 brasileiros morrem por dia de suicídio, o que é um número maior do que o número diário de vítimas da AIDS e da maior parte dos tipos de câncer.

Suicídio é inclusive um dos “grandes” “temas” da minha “literatura” (muitas aspas). Em Quiçá, um adolescente falha na tentativa de suicídio, e isso é o gatilho pro desenvolvimento de uma história com ele e a prima de onze anos. Uma estudante universitária me questionou em uma aula na UCLA (beijos pro professor, José Luiz Passos, que lança livro novo por agora) a respeito disso. A partir de uma pequena writing sample, ela conseguiu ver uma predominância de doenças mentais, instabilidade psicológica, depressão, suicídio, temas que eu nunca tinha pensado como “meus” (mais aspas).

Por estar num contexto universitário, respondi algo bonito e pomposo: citei Camus, dizendo que suicídio é a grande questão filosófica do nosso tempo, que a questão de a vida merecer ou não ser vivida é uma pergunta fundamental da filosofia, blablablá. Fiz uma piadinha depois, porque é o eu que faço.

Mas eu não deveria ter dito nada disso.

Tudo bem, talvez devesse ter feito a piadinha.

Mas deveria ter falado da minha própria batalha com depressão, pensamentos negativos e especialmente suicidas, ansiedade, fobia social, ataques de pânico, síndrome de fraude, transtornos alimentares and all that jazz. Quando eu tinha nove anos, a psicóloga da família avisou minha mãe que eu era uma criança sensível demais e precisaria de acompanhamento pelo menos até o fim da adolescência. E escrever foi parte disso. Não foi consequência. Mas fez parte.

Existe uma certa aura em escritores que cometem suicídio, escritores doentes. Ernest Hemingway, Raymond Chandler, Sylvia Plath cometeram suicídio. A carta de Virginia Woolf é linda. No livro Although of Course You End Up Becoming Yourself, do jornalista David Lipsky, a narrativa de como teria sido o suicídio de David Foster Wallace é de chorar.

Existe um estereótipo do artista psicologicamente torturado, que sofre para e pela arte. Mas acontece que esse sofrimento não é bom para o artista. Depressão não é uma forma de inspirar literatura “de qualidade”. Depressão é querer parar de existir para que a dor vá embora. Na minha experiência, a depressão e capacidade criativa se opuseram na maior parte do tempo. Eu escrevo/escrevi apesar dela. Se questionar a respeito da grande questão do nosso tempo pode até ser interessante por um viés filosófico, mas é necessária muita energia para chegar à conclusão de que, sim, viver vale a pena.

Podemos discutir. Podemos discutir o privilégio da terapia, da análise, das drogas, do ato de escrever, do próprio fato de ser um depressivo funcional. Podemos discutir que nem todos chegam tão longe, não dá tempo, não tem dinheiro, fazer arte é um hobby (?). Podemos discutir que nem todos têm acesso. Podemos fazer piadas com o fato de tirar uma hora (ou mais) em horário comercial para discutir nossos problemas, veja só. Podemos discutir que (muitas linhas de) terapia pode até ajudar a criação literária, buscando sempre os porquês, os comos, fuçando e revirando tudo que aparece. Podemos discutir as medicações. Podemos discutir outra vez o caso de David Foster Wallace, que não conseguiu obter o mesmo efeito anterior de uma medicação. E sofria com isso. Não porque fosse um gênio torturado, mas porque sofria. Podemos discutir se ele trocaria todos os livros escritos e publicados e o “sucesso” por um momento só. Um momentinhozinho só.

Sim, podemos.

Mas existem pessoas mais qualificadas que eu para todos esses tópicos. Existem textos mais bem-escritos. A própria carta da Virginia Woolf. A própria cena narrada pelo Lipsky. Assim como nas semanas de orgulho LGBT, é importante sair do armário, é importante não ignorar o tópico. É importante falar a respeito. Então saio do meu armário aqui. Para ser honesta, eu não sei qual é a cura para desejos suicidas. Ainda os tenho. Eu só queria escrever sobre o Setembro Amarelo, com seu slogan “Falar é a melhor solução”. Não sei se é. Talvez escrever seja.

 

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Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira(finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, Luzes de emergência se acenderão automaticamente, foi publicado pela Alfaguara em 2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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