Leia um trecho de "Tudo que ela me disse", romance sáfico que se passa nos anos 2000

27/03/2025 Recorte da capa de

2004 foi um ano de grandes emoções: hits inesquecíveis tocando no rádio, scraps trocados no Orkut e matinês que eram o evento da semana. É nesse cenário vibrante que Tudo que ela me disse, de Bia Crespo, nos transporta para um romance digno de filme adolescente, cheio de rivalidade, descobertas e cenas que dariam um ótimo clipe de pop rock. Marília, uma nerd apaixonada por cinema, sempre preferiu se manter nos bastidores, mas sua vida vira de cabeça para baixo quando precisa trabalhar em um projeto escolar com ninguém menos que Fernanda – a garota mais popular da escola e cópia fiel de Avril Lavigne.

Entre gravações improvisadas e ensaios desastrosos, Marília começa a enxergar Fernanda além dos rótulos. E, no meio disso tudo, surge uma faísca inesperada. Para dar um gostinho desse romance nostálgico e irresistível, que faz a gente querer voltar no tempo e reescrever nossas próprias histórias de amor, leia o prólogo de Tudo que ela me disse em primeira mão.

* * *

Quando coloquei as mãos em uma filmadora pela primeira vez, minha vida mudou.

Ela era a coisa mais linda que eu já tinha visto. Pequenininha, leve, compacta. Visor colorido. Microfone integrado. Encaixe para tripé. O sistema de armazenamento padrão era fita mini-dv, que filmava até uma hora de material, mas tinha uma supernovidade: entrada para cartão de memória. Show de modernidade! Se eu conseguisse juntar dinheiro suficiente para comprar um cartão de 256 gb, daria pra filmar em Full HD! Um total de dois minutos de vídeo, mas, ainda assim, Full HD! Se prepara, Hollywood, que eu tô chegando!

— E aí, filha? — perguntou meu pai, na maior expectativa. — Gostou?

Foi só então que percebi que todo mundo estava me olhando.

Há quanto tempo eu estava parada ali, no meio da sala, fazendo declarações de amor silenciosas para um objeto inanimado?

Minha mãe segurava o embrulho rasgado e uma caixinha de fitas mini-DV enquanto aguardava minha resposta. Atrás dela, Tânia e Tamara, minhas melhores (e únicas) amigas, registravam o momento se revezando no comando de uma câmera CyberShot. Elas não tinham muito o que fotografar naquela festa — além das duas, eu não tinha convidado mais ninguém da escola. Ou de fora dela.

Naquele 8 de março de 2004, eu completava quinze anos. Minha mãe queria que eu tivesse feito um grande evento — ela costumava organizar as melhores festas quando eu era criança, com direito a decorações baseadas em todos os filmes da Disney da década de 1990. Naquela época, era normal convidar todo mundo que estudava na mesma sala, ainda que a gente não tivesse proximidade alguma. Depois que cheguei na adolescência e fiquei responsável por minhas próprias comemorações, o movimento diminuiu bastante. Ainda bem que conheci Tânia e Tamara na quinta série.

— E se a gente fizesse um baile de debutante? — perguntou minha mãe no fim do ano anterior, já sabendo que essas coisas exigem preparo com antecedência. — Daqueles com os quinze casais dançando enquanto você apaga as velas?

Mesmo se eu achasse baile de debutante uma coisa legal (não acho), jamais teria quinze casais pra convidar. Acho que nem conheço trinta pessoas.

Tá bom, vai. Tem trinta pessoas na minha sala da escola. Mas hoje, no dia do meu aniversário, as outras vinte e sete estão na festa da Ana Carolina do 1o B. Eu, Tânia e Tamara não fomos convidadas. Ainda que um convite magicamente caísse em minhas mãos, eu preferiria andar em vidro infectado com tétano do que botar um vestido e passar a noite com as pessoas que eu mais odeio no mundo.

Dançando com garotos, ainda por cima.

Talvez minha mãe achasse que um baile de debutante fosse ajudar no meu status social. Uma última oportunidade para me integrar antes da formatura do ensino médio. Sinto decepcionar, mas tenho meu posto de nerd da turma para honrar e vou preservá-lo até o fim dos meus dias no Instituto de Educação Santa Cássia.

Como eu recusei o baile, ganhei a chance de escolher um presente mais caro do que os habituais dvds das minhas séries favoritas. Nem pensei duas vezes: a câmera mini-DV era meu sonho de consumo desde que eu tinha lido um artigo sobre como fazer filmes amadores em casa. Essa obsessão por cinema começou quando eu assisti Encontros e desencontros — quem poderia imaginar que existiam mulheres diretoras de cinema? Eu com certeza nunca tinha visto uma, até descobrir a existência de Sofia Coppola.

Enquanto eu esperava o momento em que colocaria as mãos naquela câmera, aproveitei para aprender tudo sobre o software de edição que tinha baixado no meu computador. Tive que deletar The Sims pra abrir espaço no HD — descanse em paz, Laura Caixão —, mas valeu a pena. Depois de meses lutando para aprender a juntar áudio e vídeo, terminei meu primeiro filme: um clipe de trinta segundos com os melhores momentos de uma tarde na praça de alimentação do shopping com Tânia e Tamara. Coloquei de fundo a música “Tô nem aí”, da Luka, uma das minhas favoritas. Mostrei pra elas me achando a próxima vencedora do Oscar. Para meu desespero, as duas odiaram.

Não foi bem uma crítica ao meu trabalho, mas sim uma série de reclamações sobre a aparência delas no vídeo. Espinhas, cabelo desarrumado, roupa que não caía bem e outras coisas do tipo. Coisas em que eu, do alto da minha criação artística, não tinha reparado.

Foi desse jeito que perdi o único elenco que tinha à minha disposição. E, como eu não conhecia mais ninguém, não sabia a quem recorrer. Mesmo assim, não desisti dos meus planos de me tornar uma grande cineasta. Continuei me especializando em edição e cheguei a escrever alguns roteiros para quando tivesse acesso a outros atores. À noite, ficava me imaginando sentada na sacada do meu apartamento em Los Angeles, cercada de prêmios, tomando drinques com minha amiga Sofia Coppola. Nessas divagações, Sofia sempre dizia para eu não desistir do meu sonho.

Eu tinha uma câmera amadora, um computador equipado para edição de vídeo, várias ideias escritas… Mas não tinha quem desse vida aos meus filmes.

Até o momento em que começa esta história.

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