Com personagens que enfrentam o desconhecido – muitas vezes dentro de suas próprias mentes (e, quem sabe, de seus corações) – e com o sobrenatural à espreita a cada página, os livros de terror para jovens vão muito além de sustos. Eles desvendam camadas de vulnerabilidade, coragem e dilemas internos que também refletem nossa própria realidade. Publicado pela Editora Seguinte, Os fantasmas entre nós, de Gih Alves, é um ótimo exemplo desse tipo de história.
Na trama, acompanhamos uma universidade paranormal que, a cada ano, presencia a morte de dois estudantes. As coisas ficam ainda mais tensas quando Manu, a protagonista, percebe que ela e sua amiga – com quem tem uma relação complicada – podem ser as próximas vítimas... Mais do que uma releitura da lenda urbana da Loira do Banheiro, o livro reflete sobre questões que marcam o fim da adolescência e a transição para a vida adulta: sentimentos confusos, busca pela identidade, e temas como desigualdade social, racismo e acesso ao ensino superior.
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A morte de um aluno na Universidade Agnes Dantas não era novidade, e os professores faziam questão de lembrar isso sempre que podiam.
Com um suspiro de frustração, Manu olhou das anotações no caderno para a tela do notebook. O artigo sobre ética em serviços de divinação era para o dia seguinte. Deveria ser simples depois de tanto estudar o assunto, mas as informações se misturavam na sua cabeça, os conceitos não faziam sentido e ela repetira “serviços de divinação” tantas vezes que as palavras já não significavam nada. A professora não podia ter escolhido um tema diferente? Escrever sobre o direito que famílias tinham de autorizar ou não a condução de energia espiritual do corpo de um parente recém-falecido mais parecia um deboche ao garoto encontrado morto na semana anterior. Os estalos e as batidas nas janelas também atrapalhavam a concentração de Manu — os sons lembravam gemidos de dor, irrompendo em intervalos regulares, sempre no momento em que ela começava a formular uma linha de raciocínio.
Manu mordeu a ponta da caneta e observou a biblioteca vazia, desistindo por um momento. Estava sentada em uma pequena área de estudos ao fundo do salão, onde um lustre empoeirado pendia do teto, iluminando o espaço de forma precária, quase como se odiasse a presença dos alunos. Um armário com portas de vidro trancadas exibia um livro antigo com capa de couro e páginas amareladas. No início de cada semestre, o exemplar era retirado de sua proteção e a reitora lia, no auditório central, um trecho sobre a dedicação aos estudos do arcano e aos caminhos da magia. “Se a magia não for a coisa mais importante na vida de vocês”, era o resumo de seu discurso, “não há motivo para estarem aqui”. Manu já tinha ouvido três vezes.
O restante da biblioteca não tinha nada de mais: estantes de madeira escura abarrotadas de exemplares delimitando os corredores estreitos e livros técnicos empilhados nos cantos. No balcão de entrada estava o monitor, neste momento sozinho mexendo no celular.
Não fora apenas a bibliotecária que havia faltado; uma parte dos alunos não tinha ido às aulas porque se preparava para uma cerimônia no fim da tarde, em homenagem ao mais recente morto da Agnes Dantas.
Manu mordeu a caneta com mais força, tentando não pensar no garoto, mas era difícil. Todas as aulas tinham praticamente parado por um dia inteiro na semana anterior, quando faxineiros encontraram Daniel com a cabeça enfiada em uma bacia de soluções químicas no laboratório de fotografia. Alunos se aglomeraram no corredor, tentando ver lá dentro, e o pai de Daniel, professor do curso de ciências sociais na instituição, gritou que haviam matado seu filho. Para piorar, ainda sugeriram que o corpo do rapaz fosse usado em uma aula. O homem foi retirado do campus doze horas antes do corpo do filho, após socar um colega que disse que todos deveriam contribuir de alguma forma, mesmo depois de falecerem. Aparentemente, mortes anuais em circunstâncias misteriosas dentro da universidade não era um problema. Agora, um professor socando outro? Isso passava dos limites.
Manu não conhecia Daniel nem seu pai, mas sentia que os desrespeitava de alguma forma ao escrever um trabalho que era indiretamente sobre eles.
De qualquer forma, não havia muito o que fazer. Não entregar o trabalho ou matar aula para participar de eventos mórbidos não eram opções para Manu. A bolsa na Agnes Dantas dependia de sua frequência, das notas e da monitoria na disciplina de fundamentos da arte I. Normalmente, ela ficava acima da média sem muitos problemas. Algumas noites de sono a menos e várias canecas de café a mais, e dava tudo certo.
Só que nada estava dando certo agora.
Na mesa, a tela do celular acendeu com uma ligação. O rosto de sua mãe surgiu na tela, uma versão de Manu vinte anos mais velha: pele negra clara, cabelo crespo, lábios pintados de batom vermelho e olhos escuros. Manu fez uma careta e deixou chamar até cair na caixa de mensagens, sentindo-se culpada por ignorá-la.
Mais um estalo, seguido por rangidos agudos, e Manu girou a caneta entre os dedos. Esfregou os olhos e bocejou.
— Será que é pedir demais um pouco de silêncio? — ela perguntou, encarando a parede ao lado da mesa.
Como resposta, o lustre e as lâmpadas apagaram, deixando a biblioteca no escuro. Sombras se moveram entre as estantes, e o breu naquela parte ficou ainda mais denso. Um livro caiu no chão com um estrondo, entrecortado por um estalo mais alto.
Manu mal teve tempo de recuperar o fôlego, quando a luz voltou, fraca como antes, mas suficiente para dissolver as sombras. Ela respirou fundo e olhou para o lado, onde tinha ouvido o segundo estalo, e viu a nova rachadura na porta do armário. O vidro havia se partido em vários pedaços, mas continuou preso à moldura.
— Você precisa fazer seus trabalhos sozinha e parar de pedir ajuda aos fantasmas — disse uma voz atrás de Manu.