Horror negro: uma introdução

03/07/2024

Por Anne Quiangala*

Quando a cantora Nina Simone afirmou que “liberdade é não ter medo”, ela também nos apresentou uma questão importante: o que significa não temer? 

Num mundo de privações decorrentes do neoliberalismo, liberdade é um termo perigoso, fácil de deturpar, então partamos do fato. Por um lado, liberdade pode significar dar vazão aos próprios desejos de poder intervir no corpo e na realidade do Outro. Em contrapartida, está relacionado a não ter a existência ameaçada por instituições, crenças ou quaisquer práticas de exclusão. Como qualquer ação terá uma reação de mesma intensidade, e em sentido contrário, suponhamos que, a este par de opostos, sejam atribuídos os papéis de monstro (pode atacar) e vítima (pode ser atacada). Esses contornos são suficientes para refletirmos sobre o horror como gênero literário.

Subsidiário do gênero gótico, o horror é carregado das especificidades que a perspectiva social imprime à realidade. Nesse sentido, ao tratar do mundo interior dos esquisitos e dos extremamente convencionais, o grande mérito de Stephen King é nos fazer pensar sobre o par ação e reação, convertido em “utopia de uns/distopia dos Outros”. Mas ele vai além: nos faz pensar sobre como o aprisionamento das pessoas por ciclos de dominação (o que inclui a violência cotidiana), deforma a realidade e a subjetividade.

Em seu conto Verão, podemos compreender os efeitos do excesso de poder na subjetividade de um jovem típico. Olhar para os horrores acompanhando esse rapaz evidencia que monstros, muitas vezes, o são devido ao investimento desproporcional de poder, que usam contra os outros. Já em Carrie, o autor nos aproxima da jovem outsider, que sustenta as pressões sociais, cada vez mais fortes, até mostrar que perturbar a normalidade, nem sempre significa ser monstruosa. Nesses textos, a perspectiva delineia as noções de liberdade e de medo como par de opostos: a liberdade de machucar, e o medo de ser machucada (a ameaça constante requer vigilância).

Está posto que a fonte do estado de pavor é a assimetria, de modo que as noções de sujeito e de objeto são exploradas como perspectivas diferentes da mesma realidade, sendo que o monstro impõe a privação de liberdade através da coerção física e psíquica à vítima. O modo como filtramos essa oposição também é marcado, afinal, as nossas vulnerabilidades e perspectivas sociais interpretam e questionam com certo interesse.

Alguns teóricos vão considerar o horror um gênero constituído pela perturbação do cotidiano, por um sujeito que rompe a barreira entre elementos que deveriam estar separados. A criatura, do ponto de vista diferente dela, se torna um monstro porque é vetor dessa experiência de anormalidade. Por ser um gênero que parte do rompimento com o normativo, o horror lida com a oposição entre ação e reação, e faz emergir dele a lembrança de que a experiência de ameaça de privação de liberdade não é neutra, do mesmo modo que o uso do poder em VerãoCarrie não são iguais.

Quando desnaturalizamos a noção de que horror é a privação de liberdade imposta por outrem, vivida de certo ponto de vista, podemos compreender, o pavor como um estado relacional que representa a atuação de forças sociais antagônicas; e cada um desses polos tem a sua própria noção de terrores pessoais, dores e medos mais profundos, que Jordan Peele chamou de Lugar Afundado.

Por vezes, enfrentamos os nossos horrores na perspectiva de sujeitos destemidos, indiferentes ao perigo, como é o caso dos brutos de Ana Paula Maia; a força que eles exercem contra um mundo cujas leis são repulsivas precisa ser brutal, escatológica e constante, porque envolve  lutar contra as diversas formas de aprisionamento: seja o ciclo de empobrecimento ou cárcere. No romance De cada quinhentos uma alma, eles se reúnem para combater um Lugar Afundado poderoso demais. Mas eles gozam de certa vantagem, têm algum poder por serem homens, mesmo que a masculinidade esmagadora cobre um preço alto.

Diferente dos brutos de Maia e dos adolescentes de King, existem Lugares Afundados que ainda foram pouco explorados na literatura escrita. Dentre eles, os horrores de realidades pós-coloniais, vivenciados por protagonistas negras. A autoria e a temática abordada de uma perspectiva negra são os outros pressupostos para a definição de uma obra como horror negro. Isso também pressupõe o rompimento das fronteiras entre horror e terror, porque os monstros figurativos e ameaça psicológica coexistem. Então, nessas obras, o Lugar Afundado é explorado conectando horrores sociais, traumas históricos, figuras folclóricas e noções de monstruosidade que extrapolam o lugar-comum da aparência de quem performa o papel de ameaça ser “grotesca”.

A morfologia ou comportamento dissidente de uma pessoa não equivalem a monstruosidade, porque a ideia de deformidade, no horror negro, diz respeito a como a incidência das forças sociais muda o curso das vidas e subjetividades, sem avaliação pejorativa da diferença. As atitudes são o real indicador do que torna alguém um monstro, e isso significa que corpos racializados, queer e com deficiência, podem olhar de volta e definir o sentido do que é medo, assim como o de liberdade porque são sujeitos.

Por tudo isso, a coletânea Quem vai te ouvir gritar, organizada por Jordan Peele e John Joseph Adams, e traduzida por Carolina Candido, Gabriela Araujo, Jim Anotsu e Thaís Britto, é um excelente ponto de partida para a variedade de “concepções brutais sobre os nossos pavores e desejos mais profundos” como descreveu Peele, no prefácio. Isso porque grandes nomes da literatura especulativa de autoria negra (muitos inéditos no Brasil!), oferecem diferentes concepções de privação de liberdade e formas surpreendentes de empurrar os mais profundos medos de volta.

Arte do pôster de brinde na pré-venda de Quem vai te ouvir gritar, pelo ilustrador Lucas OwlSheep.


*Anne Quiangala é doutoranda e mestra em teoria literária e literaturas pela Universidade de Brasília (UnB) e idealizadora do Preta, Nerd & Burning Hell, um blog sobre #nerdiandade Preta e Feminista: www.pretaenerd.com.br

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