O animal tropical

27/03/2025

A identidade brasileira é um campo de batalha de estudos sociológicos no qual conceitos, muitas vezes antagônicos, acabam por refletir a sociedade cada vez mais dividida em que vivemos. Hoje, no país dos memes, nomenclaturas que soam como jingles publicitários colaram de vez no vocabulário político-ideológico nacional, mas há uma definição antiga polêmica, mal interpretada, revista e que, ainda hoje, pode nos ajudar a refletir sobre essa questão.  
Trata-se do conceito do “homem cordial”, de Sergio Buarque de Holanda, no livro Raízes do Brasil. Em linhas gerais, o autor descreve o brasileiro como um indivíduo que age mais movido pelas emoções e relações pessoais, do que pelo respeito às normas e instituições. Diferentemente do que muitos interpretam, a cordialidade não se traduz especificamente como gentileza ou bondade, mas sim como um comportamento guiado por afetos primários, que vem do coração (do latim, cordis). Isso produziu, desde a colonização, relações pessoais de dominação e exploração que se perpetuaram na sociedade brasileira até os dias atuais. O “homem cordial” age de maneira afetuosa e informal, mas isso não significa que seja menos autoritário. A cordialidade encobre relações hierárquicas rígidas e o uso da violência quando necessária. 
Antes de decidir que o título do meu novo romance seria Animais tropicais, refleti muito sobre esse conceito e compreendi que eu queria falar sobre essa faceta da violência que essas relações perversas trouxeram à formação do brasileiro. Afinal, o livro já começa com um massacre. Mais que isso: o massacre em uma grande festa. Na trama, a família Salvador, que tem sua origem no avô capataz “faz tudo” de poderosos da região da Terra Luminosa, microcosmo de um Brasil ainda arcaico e incivilizável, ascende social e politicamente à medida que a ditadura militar se impõe no país. Ainda que demonstrem fidelidade, afeto e gratidão aos patrões, e que vivam em suas terras e sejam uma família de valores cristãos – daí o nome Salvador –, a chance de alcançar o poder fala mais alto.  
 
Animais tropicais é uma história sobre essa família, uma como muitas outras que chegaram e se perpetuaram ao poder. Romance sobre a formação de um espectro de país e de um povo, o afetuoso e comunicativo, mas ao mesmo tempo o pragmático e o violento, cuja escuridão tem se propagado a cada ano que passa, Animais Tropicais é uma reflexão sobre a identidade de uma nação: a outra face do “homem cordial” seria a do “animal tropical”? 
Como diriam alguns dos personagens do livro, “para os monstros, o monstro sempre será o outro”. 
 
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Javier A. Contreras nasceu em 1976 e foi repórter policial. Foi eleito um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros pela revista inglesa Granta e finalista dos principais prêmios literários brasileiros, como o São Paulo de Literatura e o Jabuti. Venceu o APCA por Crocodilo (2019), publicado pela Companhia das Letras e que teve os direitos vendidos para o cinema. 


Em 2025, Contreras publica Animais tropicais, um vertiginoso romance onde a intensidade do thriller se alia à reflexão de como se forma o espectro de um país e de seu povo. Já nas livrarias! 

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