Trabalho

24/05/2016

Por Luisa Geisler

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Foto: Sarah Ross

Ainda hoje tenho que começar a repensar o que vou dizer naquela Jornada de Escritores que me chamou. Eu tinha algo mais ou menos elaborado, mas o tema da jornada é José de Alencar. Pediram para incluir o autor. A última vez que falei dele foi numa apresentação de escola.

Mas já que você gosta de ler, faz por gosto.

O pagamento daquele frila vai atrasar um mês porque o contrato que enviei via Sedex 10 chegou dois dias depois. Eu tinha esquecido, não quis sair de casa com infecção na garganta. E nesse prazo, o financeiro (justamente) agenda o pagamento para o outro mês.

Mas escrever é coisa de rico, então não faz falta.

Ontem enviei para o meu editor um trecho do livro novo, que gentilmente chamo de 50% do livro. Demorei quase três meses escrevendo e reorganizando as últimas vinte páginas. Agora tenho certeza que nada faz sentido no livro inteiro (que descrevi no e-mail como “esquisito”). E, mesmo se fizer, será um livro publicado em um país em que 44% da população não lê.

Mas trabalhar de pijama não é trabalho de verdade, não é?

Aceito o convite para participar de um bate-papo em uma escola pública. Os alunos leram contos meus em fotocópias passadas em aula. A professora pede que eu traga os meus livros para que os alunos possam vê-los pela primeira vez. A escola fica a meia hora de caminhada do ponto de ônibus, e ela tem medo que eu me perca. Semana que vem, professora Renata virá me buscar em casa com seu carro particular.

Mas você só escreve ou trabalha também?

Sim, posso fazer esse prazo acontecer se trabalhar direto das oito da manhã às oito da noite, de segunda a sexta. Não, não posso sair para almoçar hoje. Não, não dá para deixar para semana que vem. Não, claro que não, não dá para pedir para outra pessoa terminar. Se não mandar o texto até às cinco da tarde, não sai nessa edição.

Mas você já se achou no seu trabalho dos sonhos, que inveja!

Começo a reescrever pela terceira vez uma crônica para o blog da Companhia das Letras. A única solução para as ideias anteriores era a lixeira.

Mas você é escritora? Que chique!

Imagine uma advogada que cobra três reais para um conselho jurídico na internet, e tem quem reclame que ela deveria distribuir conselhos de graça. Imagine um deputado feliz porque não está sendo pago desta vez, porque isso vai abrir portas para muitas outras chamadas de trabalho no futuro. Imagine um médico que não está sendo pago por uma cirurgia, mas que o paciente garantiu que seria uma excelente divulgação do nome dele. Imagine um dos contadores de uma multinacional dizendo que, não adianta, tem que manter uma profissão como ilustrador para poder trabalhar pela paixão de rever tributos. (Esses comentários são adaptados de um quadrinho de Melanie Gillman, “If Other Professions Were Paid Like Artists [Se outras profissões fossem pagas como artistas]”, disponível no Tumblr dela, pigeonbits.)

Mas você ganha com a venda de livros! Não faz nada, aí vai alguém, compra seu livro, e você fica rica sem se esforçar…

Tento falar de arte, de cultura, de como isso muda as pessoas e faz diferença, mas tenho medo que soe como um mimimi classe média esquerda caviar. Tenho de justificar o que faço, pedir autorização. Com licença, eu queria retratar a realidade. Desculpa, mas vocês podem me deixar falar de como livros efetivamente melhoram as pessoas? E que a chave de uma sociedade analítica e pensante é justo poder ler ideias e falar de ideias e discutir ideias, construir em cima delas e assim opinar?

Mas essa menina só escreve por capricho! Fica falando bobagem assim como se fosse uma brincadeira!

Iam acabar com o Ministério da Cultura, que já tinha um orçamento e atuação bastante restritos. Depois de muitos protestos, decidiram mantê-lo, ainda com seu orçamento e atuação bastante restritos.

Mas artista é tudo vagabundo mesmo.

 

* * * * *

 

Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, Luzes de emergência se acenderão automaticamente, foi publicado pela Alfaguara em 2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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