A maldição de Mercúcio

05/05/2016

Por José Francisco Botelho

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Minha iniciação ao universo shakespeariano ocorreu em um rancho profundo em Hulha Negra, no interior do Rio Grande do Sul, em certo entardecer de outono; enquanto a ventania fazia estremecer as venezianas verdes do quarto, Macbeth murmurava em uma charneca escocesa: Dia tão belo e tão feio eu nunca vi. À medida que a leitura avançava e o sol decaía, fui invadido por um misto de estranheza e entusiasmo, que apenas anos mais tarde pude elaborar, nomear e descrever: a sensação de que as criaturas vivas nas páginas eram metafisicamente mais reais que eu, meu quarto, o crepúsculo outonal e o vento que desgrenhava os campos lá fora. O tempo passou, mas o sortilégio não se dissolveu; pelo contrário, expandiu-se. Ainda hoje, basta abrir um tomo de Shakespeare e ler algumas linhas para sentir que minha própria existência mergulha em um torpor fantasmagórico, enquanto as sucessões de prosa e verso redirecionam o fluxo da realidade: as imaginações do poeta são tão poderosas que fazem com que eu me sinta vago, abstrato, inverossímil. É meramente natural, portanto, que os personagens do Bardo também nos pareçam mais reais que seu inventor. “Fala-se sobre o grande coração de Beethoven, mas quem poderia falar sobre o grande coração de Shakespeare?”, protestou Wittgenstein em uma página de diário, em 1950. De fato, pouco ou nada sabemos sobre o coração de Shakespeare; e esse nada é o bastante. Conhecemos Macbeth, Hamlet, Otelo, mas o homem que os criou permanece uma imagem apenas vagamente acessível; a ausência do Criador na Criação é o que lhe garante, por contraste, uma eterna presença entre nós. Eis aí um paradoxo que nenhum amante da literatura desejará resolver.

Antes de criar o Rei da Escócia, o Príncipe da Dinamarca e o Mouro de Veneza, Shakespeare havia inventado Mercúcio. O mais fascinante dos coadjuvantes surgiu nas páginas de Romeu e Julieta, peça escrita por volta de 1595 (e recentemente traduzida por mim). A história, todos a conhecem -- afinal de contas, essa foi e continua sendo a mais popular de todas as peças do Bardo. Em algum momento no outono da Idade Média, os clãs de Capuleto e de Montéquio se digladiam pelas ruas da “bela Verona”, enquanto dois jovens e desditosos amantes tentam eludir o conflito familiar e as manhas do destino -- inutilmente, é claro, pois esta história tem um desfecho necessariamente catastrófico. Melhor amigo de Romeu, Mercúcio é o responsável pela toada cômica que embala boa parte dessa tragédia. Seu humor é cínico, carnudo, hormonal; e às vezes sombrio, ominoso, onírico. Às elucubrações maneiristas de Romeu e aos sublimes, quase terríveis discursos eróticos de Julieta, Mercúcio contrapõe algumas das mais convincentes tiradas antirromânticas da literatura. Quando vê seu dileto amigo afundado nos suplícios de Eros, Mercúcio trata de curá-lo com saraivadas de trocadilhos e obscenidades, para então disparar: Ora, ora! Vais me dizer agora que esta ronda de escárnios não é melhor do que andar choramingando por amor? ... Pois esse amor babão é como um grande palerma que corre para cima e para baixo, com a língua de fora -- um rei dos bobos tentando tolamente enfiar o cetro em algum buraco.

Mas Mercúcio não seria Mercúcio se Shakespeare não houvesse lhe dado uma morte memorável. Embora não seja Montéquio nem Capuleto, ele acaba envolvido na luta entre as duas famílias -- e recebe um golpe fatal pelas mãos de Teobaldo, inimigo de Romeu. Apalpando a ferida, Mercúcio percebe que vai morrer pela briga dos outros; e, compreendendo que seu destino era ser coadjuvante em drama alheio, lança estas que talvez sejam as mais veementes palavras finais da literatura: Malditas sejam vossas duas casas! A maldição há de cumprir-se: até o fim da peça, ambas as famílias serão dizimadas por sua própria intransigência.

A praga de Mercúcio representa uma epifania recorrente na acidentada história da prudência humana: o momento em que, no calor de um conflito ou no estrépito de uma discussão, advém um súbito clarão de ceticismo, revelando que todos os lados estão igualmente errados, ou que são identicamente daninhos. À alma solitária e raivosamente lúcida, resta apenas praguejar contra Montéquios e Capuletos. “Malditas sejam vossas duas casas!” -- quantas vezes, em nossa vida, não nos seria útil recorrer à maldição de Mercúcio? É pena que, no mais das vezes, esse píncaro de clarividência só se alcance quando já é tarde demais: lançada a imprecação imortal, o grande coração de Mercúcio logo se calou, para sempre, em alguma rua anônima da bela Verona.

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José Francisco Botelho é escritor, tradutor e jornalista. Para a Penguin-Companhia, traduziu Contos da Cantuária (2013) e Drácula (2014). Sua tradução de Romeu e Julieta será lançada em setembro. É autor da coletânea de contos A árvore que falava aramaico (Zouk, 2011).

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