Olhar o mundo como editor — ou por que Raskólnikov não cabe na tela IMAX

23/03/2016

Por Luiz Schwarcz

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Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

livre42Por vezes me pego pensando no quanto a profissão de editor mudou meu modo de enxergar o mundo, como teria influenciado minha maneira de observar as coisas, das mais simples — que muitas vezes são as que mais importam — às mais complexas. Me pergunto se há alguma coisa que essencialmente possa ser identificada como um “olhar de editor”, através do qual veríamos o mundo e entenderíamos as criações humanas.

O que posso dizer com certeza é que observo as várias formas de comunicação social com um filtro estético, ou, ainda mais, com atenção gráfica. Como se a sociedade fosse para mim um imenso livro.

Vislumbro uma letra num anúncio ou numa placa de rua e me pego analisando se a tipologia escolhida é a mais adequada. Observo com interesse a abertura e os créditos finais dos filmes como se fizessem parte do enredo, para verificar se a direção de arte escolheu a forma correta de prestar reconhecimento a todos que participaram. Uma relação honesta de trabalho pode começar por aí, na atribuição cuidadosa do crédito, até com preocupação estética, a quem ajudou a fazer a película, seja ele o diretor, uma atriz secundária ou o cabeleireiro do estúdio. Por outro lado, uma placa de rua com uma fonte de difícil leitura é, além de prato cheio para a má comunicação, também um discreto desrespeito para com os cidadãos e cidadãs.

Como editor, esses pequenos elementos chamam sempre minha atenção, num movimento que não é fruto da pura estetização gráfica da vida social, mas que talvez tenha origem na obsessão pela palavra escrita e na preocupação que tenho com a busca pela comunicação correta. Também é verdade que preciso da elegância visual para me sentir confortado. Vejo nela uma atitude de respeito para com os olhos e a mente dos que vivem a nosso lado, aqueles que constantemente desejamos conquistar quando nos expressamos.

Venerar a palavra escrita também implica pensar no espírito da sua apresentação gráfica: a fonte escolhida é legível? Discreta? Enfática? Respeitosa? Intrusiva?

Em alguns casos, ela acaba virando até parte da identidade de um artista ou de uma editora, quando usada repetidamente. Nos filmes de Woody Allen, por exemplo, é possível reconhecer a mesma tipografia nas aberturas e nos créditos finais, aplicada sempre sobre fundo preto — a Windsor Light Condensed é uma letra de corpo esguio e delicado, com serifas. Nesse caso em particular, o uso de uma letra serifada numa enorme tela de cinema marca uma ligação do cineasta com a tradição gráfica ou editorial. Esse detalhe reafirma, assim como fazem os seus roteiros, o quanto Allen é um leitor fanático (de Dostoiévski principalmente, como se pode ver a cada novo filme).

A serifa não é um maneirismo dos designers de letras, é um recurso que permite que os olhos descansem enquanto lemos — uma preocupação pouco comum entre os cineastas. Aqueles risquinhos que fazem, por exemplo, com que os traços curvilíneos do C fechem a letra, não permitindo com que ela se encerre no ar, ajudam nossos olhos a relaxar, como se precisássemos saber onde uma letra termina. Sem eles, ficamos com a sensação de que as letras estão incompletas, inacabadas ou interrompidas. Assim como descansamos mais quando as letras têm serifas, um editor amigo meu acreditava que os livros de contos cansam mais do que os romances. Segundo ele, o leitor tem medo do ato de recomeçar a toda hora, e o medo cansa. Por isso, os romances agradariam mais.

Bem, deixando a digressão gráfico-editorial de lado, é bom dizer que os letreiros dos filmes do diretor norte-americano também combinam com a sutileza de suas comédias. A tipologia selecionada por Woody Allen, em geral, quase poderia ser utilizada em livros, a não ser por seu desenho mais alongado do que redondo, que, numa página cheia e no papel, daria uma impressão levemente amontoada às frases. Na tela de cinema o espaço é amplo e o fundo preto introduzido pelo diretor é muito propício. Por isso, a letra mais magra e alta resulta bem.

Mas nem só de elegância visual se ocupa a cabeça de um editor. Ainda evocando o cinema como laboratório, muitas vezes me pego assistindo a um filme como se o estivesse lendo. Me irrita a narrativa mal construída, tanto quanto me aprazem os diálogos bem escritos. Muitas vezes, lendo ou ouvindo os diálogos, me esqueço dos atores. Sinto como se estivesse “assistindo” a um romance. Se um diálogo tem qualidade literária, a chance de os personagens do filme serem verdadeiros é ainda maior. A possibilidade de reflexão sobre a vida se abre, e o que assistimos tem grande chance de ser tanto boa diversão quanto fonte de indagação pessoal e das mais proveitosas. Um diálogo ruim é a primeira porta de entrada para personagens mal construídos, que acabam por representar a sociedade por meio de caricaturas, e não de maneira complexa, como elas de fato são. Personagens muito estereotipados ou apagam ou exacerbam as qualidades e os defeitos humanos. Num filme ruim ninguém é complexo, imperfeito ou ambíguo, como na vida real.

No entanto, a vida é como um filme bem escrito. Nela, nada é esquemático. Por isso, os homens e as mulheres não cabem em julgamentos apressados. Num mau roteiro, o embate se dará sempre entre duas grandes entidades, o bem contra o mal, representados por heróis e vilões. Num bom filme, assim como em nossas vidas, há conflitos bem mais profundos, lutas entre interesses, choques, enigmas e paradoxos. Na realidade, nossos adversários de carne e osso não são necessariamente melhores ou piores do que nós; são distintos, querem o mesmo que nós, disputam espaço social. “A vida não está interessada no bem e no mal”— foi o que disse William Faulkner em sua entrevista para a Paris Review.

Não há como ser um editor pleno e não se incomodar com uma narrativa que é incoerente; intrinsecamente falsa ou mentirosa. Recentemente, assisti com grande prazer a uma série inglesa de televisão chamada Line of Duty. Na segunda temporada, ainda melhor que a primeira, os diretores claramente não souberam como encerrar o plot e resolveram encaixar no último episódio uma narrativa em terceira pessoa, para melhor explicar a trama para os espectadores. Ora, na série inteira desvendamos o crime junto com os investigadores, até que, num determinado momento, os roteiristas resolveram encaixar uma forma de voltar ao passado e explicar eles mesmos: “Veja bem, espectador, o que aconteceu antes de tudo foi isso aqui... logo o criminoso é...”. Me irritei profundamente com o desrespeito para com os personagens, que durante a série atuaram como meus interlocutores. Se não puderam descobrir o culpado foi porque alguma voz se interpôs com pressa, tutelando a eles e aos espectadores. Nesse momento, minha inteligência foi desconsiderada e a voz dos personagens obliterada. Vários ruídos ofuscaram o diálogo artístico ou de entretenimento que ocupava minha imaginação. O editor que aqui escreve se enfureceu!

Também recordo de certa irritação que tive com o final do maravilhoso Psicose de Hitchcock, quando um médico explica a doença do personagem principal, desnecessariamente, à guisa de epílogo. Mas o filme, nesse caso, é tão genial que dá para perdoar o descuido do grande mestre do suspense nos últimos minutos de uma de suas obras-primas.

Noto com facilidade quando uma voz narrativa é forçada, quando alguém pretende nos convencer na marra e teatraliza exageradamente o discurso, carregando nas tintas, seja na vida real para vender seu peixe, seja num espetáculo artístico, representando um personagem qualquer. Na premiada série de TV Mr. Robot, em que um hacker esquizofrênico narra em primeira pessoa as ações que acompanhamos, usando o que se passa em sua cabeça como fio condutor dos episódios, fiquei novamente muito frustrado. Ora, a primeira pessoa, ou as vozes interiores, quando aparecem nas telas implicam uma elaboração muito mais difícil do que nos livros. A imagem do narrador pensando ou comentando o que vê cria dificuldades de roteiro e atuação. É mais natural imaginarmos alguém pensando do que presenciarmos um ato tão íntimo na tela. Por isso, entre outros motivos, as adaptações cinematográficas de romances são majoritariamente fracas. Assim se explica por que o Raskólnikov, de Dostoiévski, nunca coube bem ou nunca caberá num filme. Nem Hans Castorp de Thomas Mann, nem Mersaut de Camus. Muitas vidas cabem em um só livro, mas por vezes uma vida mal cabe numa série de TV. (Há exceções, é claro, como Família Soprano, Breaking Bad, Fargo etc.). Em Mr. Robot, o que consegui com o tempo foi desacreditar no narrador, cujo discurso aparece simplificado por um mau roteiro, achatado por expressões cheias de clichês.

Como editor espero encontrar nas outras manifestações culturais, ou mesmo nas formas de comunicação mais amplas da sociedade, uma linguagem rica e por isso franca, como a que encontro muitas vezes na literatura. Várias manifestações artísticas, quando verdadeiramente boas, conseguem retratar a alma humana com profundidade. A literatura, por trabalhar com um tempo muito mais largo do que as outras artes, tem a vantagem de poder se aproximar com mais facilidade da complexidade humana, deixando mais questões em aberto. Mas um livro ruim pode ser muito pior que uma boa foto, pintura, peça ou filme; e nesse ponto o tempo dilatado, em vez de ajudar, até aguça o problema. No entanto, é bom ressaltar que a reação a uma obra de arte depende absolutamente do seu espectador — do ser humano que dialoga com o artista. O impacto de mirar o quadro Os jogadores de cartas de Cézanne por apenas cinco minutos pode ser maior para muitas pessoas do que o da leitura diluída através de muitos meses de Os irmãos Karamázov.

A vida de editor tornou meu olhar exigente e minha mente inquieta. Assim, procuro sempre identificar narrativas que tenham coerência na sua construção e incoerências em sua essência. Só dessa maneira as outras artes ou até mesmo a vida em geral podem ser tão atraentes como um bom livro. Pena que sejam tão raros os momentos em que isso acontece.

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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