A vida das filhas do último tsar

21/03/2016

8. Family on duty

Não são raros os casos ao longo da história que conjugam o binômio poder e tragédia. Em 17 de julho de 1918, a última família imperial da Rússia foi brutalmente assassinada pelos revolucionários bolcheviques. Era o fim da dinastia Romanov, que comandara a Rússia por mais de três séculos.

A historiadora inglesa Helen Rappaport reconstrói a vida da última família imperial russa, com base nas cartas e nos diários das jovens e em fontes primárias nunca antes examinadas, para retratar a rotina de Olga, Tatiana, Maria e Anastácia em sua biografia As irmãs Romanov — A vida das filhas do último tsar (Objetiva). Durante a maior parte de suas curtas vidas, as quatro irmãs descendentes diretas do tsar viveram como prisioneiras em luxuosos palácios, por causa da mãe superprotetora e do medo de ataques terroristas contra a família imperial. Tinham poucos amigos e eram alheias à realidade e a experiências corriqueiras para outras garotas.

Em entrevista para o blog da Companhia das Letras, Rappaport não hesita em atribuir a Lênin a ordem para que as jovens fossem cruelmente mortas junto de seus pais, o tsar Nicolau II e a tsarina Alexandra Feodorovna, e de seu irmão hemofílico Alexei, e lamenta a ausência de uma prova material que incrimine diretamente o líder comunista. Avalia também a importância dos Romanov nos dias de hoje para os russos, que os elevaram ao status de santos e os consideram um símbolo da grandeza do passado, em um momento de renascimento de sentimentos nacionalistas e do retorno da Igreja Ortodoxa Russa ao palco central da vida do país. Para a autora, o presidente Vladimir Putin age como um tsar, sem ostentar o título. Rappaport também refuta as teorias da conspiração que insistem na defesa de que um ou mais integrantes da família real teriam sobrevivido e afirma: “É preciso assumir que não houve sobreviventes”.

1 – Você já havia dedicado o livro Os últimos dias dos Romanov à família imperial russa. Por que decidiu voltar ao tema? Ainda há mistérios a ser revelados? 

Pensei em escrever durante anos sobre as quatro irmãs Romanov, porque sempre achei que a trajetória delas foi marginalizada pela história, em favor dos personagens notórios Nicolau II e Alexandra Feodorovna. Enquanto andava pelas ruas de Ecaterimburgo, durante a minha estadia na Rússia em 2007, quando pesquisava para Os últimos dias dos Romanov (Record), sempre pensava nessas quatros amáveis irmãs trancafiadas na claustrofóbica Casa Ipatiev imaginando se voltariam a ver o mundo exterior. A imagem que tinha delas se assemelhava às personagens de As três irmãs, de Tchékhov, que também viviam isoladas em uma cidade na Sibéria ocidental à espera da partida para Moscou. Eram tantos os ecos nessa peça que sempre me faziam recordar das irmãs Romanov. Para mim como historiadora, a única peça que ficou de fora do quebra-cabeça e que gostaria que houvesse evidência sólida é a ordem de Lênin para que os Romanov fossem assassinados. Não há nenhum vestígio documental, mas não tenho nenhuma dúvida de que a ordem final tenha vindo dele. Com certeza, não ficou nenhum mistério sobre o desfecho: ninguém na família sobreviveu ao massacre de 17 de julho de 1918. Temos que deixar para trás todas as teorias da conspiração e de uma fuga miraculosa.

2 – O renascimento do patriotismo russo no governo de Vladimir Putin preocupa as potências ocidentais. Como os russos veem os Romanov nos dias de hoje? Você acredita que a dinastia, que comandou a Rússia por mais de três séculos, passa por um processo de revisão histórica associada à ideia de grandeza do passado?

Da última vez em que estive na Rússia, ficou claro para mim como os últimos membros da família imperial são venerados. Eles são santos de acordo com o calendário da Igreja Ortodoxa russa e atualmente, em todos os lugares que se for, haverá estátuas imensas representando suas imagens nas igrejas russas. Acredito que os russos reconheçam na família imperial a representação de tudo o que foi perdido com o comunismo — um senso de unidade, de sentimento nacional e ortodoxia. O grande renascimento da Igreja Ortodoxa Russa desde a queda do comunismo em 1991 é em parte resultado de uma espera disseminada entre os fiéis russos para recuperar o sentido de uma Rússia autêntica, anterior ao comunismo. E para eles, a Rússia autêntica é o mesmo que a Rússia Ortodoxa. A consolidação de Vladimir Putin como um tsar dos últimos tempos, a não ser pelo título, reforça o desejo nacional por lideranças fortes e ao retorno aos dias de glória da Rússia imperial.

3 – São inúmeros os rumores que rondam as circunstâncias da morte do tsar Nicolau II, sua esposa Alexandra, e seus cinco filhos, incluindo a versão que integrantes da família teriam sobrevivido ao massacre de 1918. Você já declarou em algumas situações que a hipótese é absolutamente falsa. Por que esses rumores permanecem? Os russos teriam saudade de seu passado imperial?

A razão para a permanência dos rumores de sobrevivência de algum integrante dos Romanov, acredito, está relacionada à recusa em aceitar que a família inteira tenha sido tão brutalmente assassinada por seu próprio povo. O desejo de que alguém tenha sobrevivido é muito forte entre os russos. E a Rússia é também o país onde a maior parte das teorias da conspiração ainda persiste. Uma coisa é o assassinato do tsar, e até mesmo que sua mulher tenha pagado o preço por seus desmandos, mas matar os filhos foi algo tão terrível, e sem qualquer justificativa, que os russos querem acreditar desesperadamente que um deles tenha escapado. Esta é a razão por que Anna Anderson conseguiu manter por tanto tempo a sua fraude — ela deu um jeito de convencer os russos emigrados e parte da família real exilada de que ela era, de fato, Anastácia, mesmo contrariando o juízo mais sensato e desafiando toda a lógica. Sigo na esperança de que a Igreja Ortodoxa Russa, que acaba de impor nova barreira no caminho de aceitação da morte de todos os Romanov em julho de 1918, não persistirá com essa história em aberto, sem solução alguma, por muito tempo. Já chegou a hora de a igreja reconhecer que os restos mortais de toda a família já foram encontrados, para que eles tenham o direito de descansar em paz, juntos, como gostariam.

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