Minha pátria é minha língua

17/03/2016

Por Ana Maria Bahiana

16235946053_84ebf7cf7d

When I cannot see words curling like rings of smoke round me I am in darkness — I am nothing.

— Virginia Woolf

Minha pátria é minha língua, e eu não tenho pátria, eu tenho mátria.

— Caetano Veloso

Uma colaboradora do site para o qual trabalho como editora me manda um e-mail cheio de elogios: “estou há tempos para te escrever e dizer como estou impressionada com a abundância e a qualidade de seus textos”. A colaboradora em questão, fotógrafa de profissão, é inglesa de nascimento mas cresceu nos Estados Unidos. Os textos que ela menciona são os que escrevo para o site, quando tenho uma trégua da edição ou quando há um buraco a ser preenchido (com todo o respeito). Na maioria das vezes, os textos são em inglês. É uma coisa muito séria receber um cumprimento assim de quem tem o idioma de Chaucer no sangue.

Passei um bom tempo com medo de escrever em inglês. Uma parte era porque, como toda pessoa que aprende uma língua além da sua de nascimento (e o inglês já era a terceira do pacote, mas isso já é outra história), eu temia que jamais encontraria o tipo de ligação imediata entre ideias e palavras que eu já tinha, há tanto tempo, com o português. A outra parte, muito mais sutil, era profunda, complicada: algo em mim encarava dominar o inglês como uma traição de algo que o antecedeu, algo que em grande parte me definia e me orientava — o fato de ter nascido no Brasil.

Assim que cheguei aqui a LA, conversei sobre isso com dois jornalistas veteranos, um deles — uma mulher formidável — me ofereceu alguns exemplos de, pelo menos, o primeiro caso: Joseph Conrad, polonês, que até os 20 anos não falava inglês fluentemente; Billy Wilder, austríaco, que chegou em Los Angeles com 27 anos e, sem interrupção, continuou a carreira de roteirista que já tinha na Europa.

Eram exemplos ao mesmo tempo substanciais, encorajadores e apavorantes. A possibilidade de outra língua tão maleável quanto a primeira era real. Mas estaria eu na mesma altura desses gigantes? E que pátria isso me daria?

A solução que achei foi no meu tradicional estilo kamikaze: me coloquei voluntariamente na linha de frente. Aceitei o convite de uma jornalista australiana que conheci em Memphis, Tennessee (longa história), para colaborar para a revista dela. Minha primeira matéria — Some Nights I Still Dream Of It, sobre minha visita ao Xingu, meu contato com a cultura kamayorá e a tragédia da destruição da Amazônia — demorou uma eternidade para parir e me deixou arrasada, física e emocionalmente. Mas me convenceu de duas coisas: que eu era capaz de acessar o controle onde o cérebro muda para outro idioma sem perder suas funções já adquiridas; e que eu poderia morar, espiritualmente, onde quisesse e bem entendesse, sem trair aquilo que é essencial para mim.

Cinco anos trabalhando como chefe do escritório da Costa Oeste de uma revista britânica me confirmaram tudo isso. É difícil explicar, usando palavras, o processo pelo qual as ideias se formam em palavras — dá meio que um curto circuito. Costumo dizer que é feito candomblé: baixa. Ou como circuitos eletrônicos: há uma chave secreta que, quando acionada, põe as ideias num trilho específico de palavras. Minha mãe me dizia que, quando me mandaram para um jardim de infância norte-americano, no Rio, depois de eu ter passado cinco anos ouvindo português e francês em casa, eu fiquei gaga pela primeira vez na vida. Deviam ser os circuitos se formando.

Ter mais um idioma é como para um pintor descobrir uma nova técnica, ou uma nova cor — os horizontes se ampliam, ideias vêm acompanhadas de várias possibilidades. O material altera o processo — escrever em português é mais colorido, mais voz passiva, mais adjetivos; escrever em inglês é mais preto e branco, mais voz ativa, mais verbos e advérbios. Escrever em português é doce, escrever em inglês é preciso. Escrever em português é dança, escrever em inglês é esporte.

Ambos vêm carregados de suas próprias essências, de seus próprios perfumes, de suas próprias histórias, de gerações e gerações de outros escribas que usaram essas tintas, esses materiais, e ali deixaram traços. Há uma reverência e uma gratidão muito grandes que vêm com esse presente e sinto ambas cada vez que as palavras, em suas determinadas e tão diferentes formas, vêm espiralando do escuro lugar-nenhum dentro de mim e saem pelos dedos até a página branca.

Quando comecei a escrever poesia em inglês eu aprendi também que o poder dos idiomas diversos acessava lugares diferentes dos meus desejos e dores. No reino da minha alma agora existem muitas casas e muitos países, e estou à vontade em todos eles.

 

* * * * *

 

Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling StoneBizzJornal do BrasilFolha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964 (Companhia das Letras, 2014), entre outros livros. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Twitter — Facebook

Ana Maria Bahiana

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog