Feliz desaniversário! (Parte 1)

11/03/2016

Por Lilia Moritz Schwarcz

barbara

Bárbara Pereira de Alencar

Como todo dia é dia das mulheres, me permito desrespeitar as efemérides, para comemorar um “feliz desaniversário”, na bela tradição de Lewis Carroll em seu livro Alice no País das Maravilhas. Num momento crucial da obra, a heroína Alice participa de um divertido chá da tarde, com o chapeleiro maluco, para celebrar a festa do seu “desaniversário”. A ideia de Lewis Carroll é, portanto, que todo dia é um desaniversário, sendo possível festejar não apenas uma data em especial, mas todas elas.

Seguindo-se, então, a mesma lógica de Alice, bastaria decretar que hoje é dia de “desaniversário das mulheres”. Mas gostaria de aproveitar essa celebração de forma crítica e não só alvissareira. Nada como pensar em tão significativa data partindo de uma questão, e não com uma só resposta.

Como sou antropóloga e historiadora, gostaria de perguntar por que é que na história oficial do Brasil as mulheres, com raríssimas e célebres exceções, aparecem sempre com tão pouco protagonismo? E mais: por que será que, quando surgem, estão em posições subalternas ou identificadas — tal qual efeito de causa e consequência — a seus maridos, familiares, colegas ou companheiros masculinos?

Começo com um caso famoso. Nossa imperatriz Maria Leopoldina tinha muito mais luz própria do que a história que contamos permite supor ou notar. Não era apenas a esposa de d. Pedro I, ou a filha da poderosa família dos Habsburgo. Era também, mas ainda mais. Quando soube que ia se casar com o príncipe de Portugal, e que viajaria para um distante Reino Unido tropical, Leopoldina resolveu estudar as especificidades desse território e aqui desembarcou com um grupo de naturalistas que teria importância fundamental nos estudos coevos e futuros desse país. Não contente com isso, interferiu como pôde para que a independência do Brasil se realizasse. Mesmo assim, quando mencionada nos livros didáticos, Leopoldina surge sempre como a mulher de Pedro I; aliás, sem que se lembrem dos maus-tratos que recebeu por parte do marido.

Para não pensarmos que essa é armadilha fácil “do tempo passado”, o mesmo pode ser dito de Pagu, sempre identificada ao lado de Oswald de Andrade. Se eles formaram, mesmo, um belo casal que agitou a cena modernista brasileira; já ela não foi, apenas, a cara metade do autor do Manifesto Antropófago. Destacou-se, igualmente, como poeta, feminista, jornalista e ativista política de grande visão.

E o que dizer de Maria Felipa de Oliveira, de quem nem ao menos sabemos a data de nascimento e de morte? Negra, Maria Felipa ergueu os punhos em 1824 na Ilha de Itaparica, na Bahia, a favor da independência do Brasil. Liderou um grupo que se opunha à invasão dos portugueses à ilha, e que pretendiam evitar a consolidação de nossa emancipação política de 1822. Valente, ela tomou de assalto o acampamento do exército lusitano, atacou os guardas e ateou fogo às embarcações.

Vale a pena mencionar, ainda, outra ilustre desconhecida; Zeferina, que participou, em 1826, de uma revolta no Quilombo do Urubu, nas cercanias de Salvador. Nessa ocasião, tomou a dianteira e animou um grupo de escravos refugiados para que se amotinasse contra as tropas do governo imperial.

Enfim, com certeza os exemplos poderiam se multiplicar. Mas minha intenção é apenas prestar uma pequena homenagem à data de “desaniversário das mulheres”. Deixo também uma pequena lista de mulheres que se destacaram em nossa história pregressa, até os idos da Primeira República — muitas delas anônimas; outras pouco conhecidas. Esses poucos, mas significativos, casos servem para iluminar o passado brasileiro a partir de outro ângulo, outra abertura. Por essa fresta podemos observar como várias mulheres atuaram na vanguarda política, social e cultural, não apenas como coadjuvantes, mas na dianteira da nossa narrativa nacional, que vai se fazendo com grandes atos e outros, mais cotidianos, mas igualmente éticos, paladinos a seu modo, cidadão no dia a dia.

Toda narrativa histórica é feita de muitas lembranças e de numerosos esquecimentos. Se a nossa foi escrita até agora, majoritariamente por homens, cabe a nós arregaçarmos as mangas e tirar esses nomes tão importantes da poeira dos arquivos.

“Feliz desaniversário” para todas e todos nós, e vamos lá fazer essa lista crescer como se fosse fermento de bolo. Começo com o período colonial, na próxima semana entramos no Império, para depois invadir a República. Conto com a participação de vocês.

PERÍODO COLONIAL

  • Ana Paes d’Altro ou Ana de Holanda (1605-?) — Dona de um engenho que abrigava as mulheres e filhas dos principais líderes da revolta pernambucana contra o domínio holandês no Brasil. O engenho de Ana Paes foi palco de um dos combates mais violentos da guerra contra os holandeses, ocorrido em 17 de agosto de 1645, que resultou na vitória das forças luso-brasileiras. Por conta do episódio, o engenho de Ana Paes acabou conhecido como a Casa Forte, que deu nome à batalha e ao bairro do Recife.

 

  • Hipólita Jacinta Teixeira de Melo (1748-?) — Participou da Conjuração Mineira, disponibilizando suas fazendas para reuniões dos inconfidentes. É de sua autoria a carta de denúncia da traição de Joaquim Silvério dos Reis. Em razão de sua participação ativa na conjuração, perdeu todos os bens.

 

  • Bárbara Pereira de Alencar (1760-1832) — Conhecida como “Dona Bárbara”, participou da Revolução Pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador. Sua casa na cidade de Crato, no sul do Ceará, foi sede de reuniões dos rebeldes de Pernambuco. Após a proclamação da República por seu filho, José Martiniano, “Dona Bárbara” e outros revoltosos foram presos e enviados a Fortaleza. Quando foi solta, três anos depois, ainda participou da Confederação do Equador.

 

  • Carlota Joaquina (1775-1830) — Infanta da Espanha e rainha de Portugal e de seu império, filha primogênita do rei d. Carlos IV de Espanha, casou-se com o príncipe (e depois rei) d. João VI de Portugal. Carlota tornou-se princesa-regente Consorte de Portugal quando seu marido, com a morte do irmão e a alienação da mãe — d. Maria I — virou o futuro herdeiro do trono. Ela passou para a nossa história como uma espécie de louca indomável, quando, na verdade, tinha, ela própria, autonomia em suas decisões políticas e até pessoais. Sempre tramou contra o poder de seu marido, e foi leal ao reino de Espanha. Viveu às turras com d. João e boa parte separada dele: em Portugal, morava em Queluz e ele, em Mafra; no Brasil, num Paço no centro do Rio, já seu marido, no Paço Real. Na historiografia oficial foi sempre descrita e criticada por conta de seus casos amorosos e por sua “feiura”. Incrível como no caso das mulheres a beleza é fundamental, e como autonomia vira sinônimo de “sexo alvoroçado”, como definiu, tempos atrás, o historiador Octávio Tarquínio.

 

  • Maria Quitéria de Jesus (1792-1853) — Ao saber da criação do movimento pró-independência, mesmo proibida pelo pai, fugiu, cortou o cabelo e pegou a farda de seu cunhado. Assim, ingressou no regimento de artilharia. Foi condecorada por d. Pedro I com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro em homenagem à sua participação na guerra.

 

P.S.: Como escrevi antes, essa é apenas uma pequena lista; quase um lembrete. Agradeço à Heloísa Starling e ao pessoal do Projeto República, da UFMG, por ter elaborado comigo essa primeira relação. Na próxima semana, Lilia Moritz Schwarcz apresenta mais mulheres que fizeram história no Brasil. 

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Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no Departamento de Antropologia da USP, além de autora de O espetáculo das raçasAs barbas do imperador (vencedor do prêmio Jabuti na categoria ensaio), D. João carioca (em coautoria com Spacca) e O sol do Brasil (vencedor do prêmio Jabuti na categoria biografia), entre outros. Em abril, lançou com Heloisa Starling Brasil: Uma biografia.

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