Cena do filme Ela.
No final do ano passado, como sempre faço, postei no Facebook uma retrospectiva de livros lidos em 2016. Eram 49 e não eram muitos. Muitos livros que traduzi entraram na lista, graphic novels, livros infantis, peças curtas, livros que tive que ler para aulas, a coisa toda. A própria ideia de “quantos” livros se lê é um pouco errada: faz diferença se li dez livros e não me lembro de nenhum? Faz diferença se li quarenta livros de dez páginas ou um livro de quatrocentas? Estou relendo e relendo e revisando e marcando e buscando novas informações e relendo e pesquisando a respeito dos mesmos três contos de Joyce para um artigo para uma aula. Mas isso não conta ponto em rede social alguma. No entanto, o número sempre impressiona. Um número sempre impressiona. Algumas pessoas nos comentários vieram me perguntar como arranjar tempo para ler, e como ler tanto. Respondi o que acabei de dizer acima, mas com uma diferença: audiolivros. Estranhamente, mais do que eu esperava, houve interesse que eu falasse disso. Onde ouvir, como ouvir. E eis esta crônica, sobre algo que eu achei que não interessava a ninguém.
Tudo começa (e termina) com minha ansiedade. É difícil que faça uma atividade só. Escrever é uma das poucas coisas com as quais não consigo lidar nem com música de fundo. E só escrevo. Fora isso, adoro ver filmes enquanto tiro a sobrancelha ou faço as unhas. Meu hábito noturno ao ir dormir é deixar séries ao fundo enquanto passo fio dental ou tiro a maquiagem (sou muito lenta passando fio dental). Esses hábitos foram se refinando. Os vídeos foram ficando mais áudios, então viraram stand-ups do Louis C.K.; viraram podcasts (meu favorito até hoje o Movie Fights, do Screenjunkies); viraram podcasts com histórias (Lore, ou o famoso Serial). E foi quando percebi que se eu queria só ouvir histórias de alguém, eu poderia muito bem providenciar audiolivros.
Antes de tudo, aqui é importante reconhecer que ouvir histórias enquanto se faz outras coisas não é pra todo mundo. Nem todo mundo gosta. Nem todo mundo tem condições pra isso. Muita gente com a qual falei acha impensável a ideia de ouvir uma história ser contada enquanto se lava a louça. Muita gente precisa prestar atenção em outras coisas. A maioria dos livros que ouço está em inglês, e nem todo mundo se sente tão confortável assim com o idioma. Não é pra todo mundo e não precisa ser. Essa crônica é mais pensada pra quem quer tentar ou quer trocar uma ideia a respeito.
Pois chegamos aos audiolivros, hábito que devo ter adquirido em 2015. Comecei ouvindo audiolivros que já estavam disponíveis no YouTube, nem todos muito na legalidade, confesso. Quis ouvir off-line, comecei a baixar livros que já estão em domínio público lidos por celebridades. Benedict Cumberbatch lê maravilhosamente. Ian McKellen, Deus me livre e guarde.
Audiolivros resolveram a grande questão que eu tinha ao viajar: olhar pela janela ou ler? Apesar de eu ter falado muito de audiolivros durante tarefas do dia-a-dia, amo viajar, olhar pela janela e ouvir livros. E digo viajar de pegar o ônibus mesmo. De olhar a rua. Mesmo assim, nesse meio tempo, é importante fazer uma pose hipster e fingir que está em um filme indie, tipo Ela. Queria muito ouvir Moby Dick durante uma viagem no oceano. Olhando pra água.
Nisso tudo, conheci o Audible. Comecei não só pelo fato de ser legalizado e pagar royalties pra quem participou do trabalho (inclusive autores, hello), mas porque baixar e usar é muito pouco prático. Não vou fazer muita propaganda para o Audible, porque apesar de pagarem milhares de páginas no YouTube pra fazerem merchan pra eles, eu não sou paga por eles. Inclusive, acho que não estão no Brasil de forma oficial ainda. Um amigo me comentou que devem chegar ano que vem (este ano, no caso). Em linhas gerais, Audible é (agora) uma subsidiária da Amazon, é o maior produtor e distribuir de audiobooks no mundo. Você paga uma mensalidade e baixa livros. Eles ficam disponíveis pra sempre em trocentos dipositivos. Esse é meu método mais oficial no momento.
Um outro esquema que não conhecia, mas que me foi apontado por conta desse diálogo todo, é o Ubook. O esquema é o mesmo, mas com livros em português, até mesmo revistas brasileiras, como a Superinteressante e tal e tal. Acho que nunca na minha vida tinha ouvido um audiolivro em português.
Talvez haja outras formas no Brasil, que eu desconheça ainda. Aceito recomendações, dicas, tudo o mais. Minha forma de ir descobrindo audiolivros foi meio experimental, então sigo experimentando. Recomendem coisas.
Audiolivros ainda são um pouco raros no Brasil. As editoras não parecem muito empolgadas com o tema, por motivos que vão além dos caracteres. É um sistema um pouco complicado de se resolver ainda, porque gera um novo esquema de gastos, um novo cálculo de royalties que envolve editora e autor. Por outro lado, o Wall Street Journal apontou em julho de 2016 que o mercado que mais cresce no meio editorial dos Estados Unidos são os audiolivros. Conversando com um amigo escritor, ele me disse que se perguntava se uma pessoa que havia ouvido o livro compraria o livro físico mais tarde. Isso me pareceu típico de quem nunca ouviu um audiolivro. Ouvir livros parece estranho. Mas ouvir um programa de rádio, ou até um podcast, enquanto se dirige parece normal.
O formato audiobook não funciona pra todas as leituras. Euzinha, por exemplo, evito histórias não-lineares, que vão e voltam, que constroem redes de complexidade que precisem de atenção a esses detalhes. Histórias com muita experimentação linguística, como Ulysses, requerem olhos, ouvidos, pulmão, fígado, cérebro e todos os órgãos disponíveis no momento pra leitura. Jamais ouviria Cem anos de solidão enquanto lavo a louça. Nem encostaria em Ser e Tempo enquanto corto tomates. Mas li A morte em veneza, 1984, Jurassic Park, Guerra Mundial Z, Bonequinha de luxo, O Curioso Caso de Benjamin Button.
Espero que a crônica tenha ajudado. Como eu disse antes, audiolivros não funcionam pra todo mundo. E nem todos os livros funcionam em audiobook. E isso tudo depende de um monte de outros fatores. Mas acho que é um experimento que vale a pena. Eu me sinto menos inútil e perdendo menos tempo se leio enquanto ponho a roupa pra lavar. Um quarto das minhas leituras do ano não teriam acontecido se não fosse por isso. Um quarto é ¼, uma em cada quatro, porque, como já discutimos, números impressionam.
* * * * *
Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, Luzes de emergência se acenderão automaticamente, foi publicado pela Alfaguara em 2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.