Eu termino o livro. Belas 374 páginas, suadas 56.073 palavras, sofridos 340.165 caracteres. Peço que meu namorado imprima no Brasil, já que ele vem visitar — e já que 0,06 centavos de euro por página em comparação a 0,06 centavos de real por página fazem diferença para belas 374 páginas.
Converso com animação. Conto a amigos, faço uma festa via e-mail com o editor, falo com a agente via Skype. Começo a pensar no famoso “e agora?”. Reacendo ideias para projetos futuros. Sinto saudades de contos, um livro de contos. Faz tempo. Mas algo com um projeto unificado, um tema. Talvez um livro young adult, algo pop, divertido, com dinossauros e fogos de artifício. O próximo livro da Isabel Moustakas. Isso. Encerrar três anos.
O namorado chega e, com ele, o belo, suado e sofrido calhamaço. O livro que foi Haikyo, Hy-Brazil, Leidenschaft e Velociraptors. Falta só isso.
E eu leio. Por que esse personagem é nomeado para sumir na página seguinte?
E não.
A Irlanda descrita não é a Irlanda em que morei, moro e vou seguir morando.
Não.
Essa viagem não funcionaria com tanta tranquilidade: Cork não é tão próxima de Dublin.
Negativo.
E onde estão Limerick? Galway?
Negativíssimo.
Esse ponto está completamente perdido.
Nem pensar.
Ficou solto isso, não ficou?
Mas não.
Mas ele volta…?
Mas não mesmo.
Isso não faz sentido.
Não, não, não, não, não.
Isso já me aconteceu durante o processo de escrita de Quiçá, meu primeiro romance. Originalmente era a história de três mulheres e de um segredo guardado bem demais entre elas. Era um livro terrível. Restou a estrutura de três tempos verbais. Nenhuma das personagens e história. Eram cerca de cento e cinquenta páginas que ficaram engavetadas e seguirão assim. Eu tinha me esquecido disso do projeto original até esbarrar com o arquivo ao pesquisar por outra coisa alguns meses atrás. Ah, é.
O “Romance que Permanecerá Sem Título Por Enquanto” é o que eu queria escrever. Queria. Três anos atrás, quando o comecei, na residência literária ART OMI, na Ledig House, em Nova York. A meta de três anos atrás foi atingida. E o que eu queria ter escrito hoje a respeito da Irlanda e do Brasil e dos brasileiros e dos irlandeses e dos rios e da chuva e das gaivotas desgraçadas não é o que está ali.
Eu me sinto um pouco como um adolescente que diz que não é a mesma pessoa que era três anos atrás, que insiste para a mãe que não é uma fase. Eu li mais livros de autores irlandeses, mãe, estive em muito mais lugares, mãe, muito mais cantos, mãe, conheci mais pessoas, mãe, tenho quinze vezes mais evidências e referências, mãe, estudei muito mais. E li Ulysses como nunca antes. Ah, Ulysses.
Como pude cogitar escrever sobre a Irlanda sem ter lido Ulysses vinte vezes. Como pude cogitar escrever sem ter lido Ulysses. Como pude cogitar escrever. Como pude.
Então choramingo. Choramingo com o melodrama daquele mesmo adolescente, forçado a ver que é um adolescente, formado apenas de faltas e lacunas a preencher, sem os recursos e habilidades que gostaria de ter, de ser. Quero parar de escrever.
Como pude cogitar escrever.
Como pude.
A única decisão lógica parece ser nunca mais escrever. Depois, a única decisão lógica é implodir o livro e começá-lo de um documento em branco no MS Word. Parei na única decisão lógica ser reestruturar tudo. Há umas três ou quatro frases que não deletaria. Elas me agradam.
Converso tristonha com a agente. Mando um gif de dinossauro para o editor para que ele me perdoe. Sinto confiança de ambos. Percebo que o drama foi interno. Eles entendem, apoiam, acham excelente. Alguém me diz que todo autor deveria implodir livros e parar de escrever a mesma coisa de novo e de novo.
Estou escrevendo um outro livro em inglês para o mestrado, temática parecida. É provável que um projeto complemente o outro. Preciso acabá-los mais ou menos juntos. Descubro que duologia é uma palavra e uma possibilidade. Graças a Deus o mundo não precisa do que escrevo, nem do que estou escrevendo agora ou do que já escrevi. O mundo não se ressente que vou precisar de mais tempo no projeto.
E volto ao trabalho no livro que está pronto, mas não está.
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Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, Luzes de emergência se acenderão automaticamente, foi publicado pela Alfaguara em 2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.