Em tradução (The Pale King)

09/03/2017

Jogadores de xadrez costumam dizer que jogam melhor contra adversários melhores. São forçados a isso, afinal. 

Tradutores literários, obviamente, são assim também. E a gente em geral GOSTA da dificuldade dos bons autores. Eles te forçam a fazer mais. Te forçam a SER mais.

E eu, que já tive a sorte de traduzir muita gente grande, e muita gente boa, te digo, cara leitora, que NINGUÉM me pressiona mais a tentar me superar do que o senhor David Foster Wallace. 

É um monstro. Um escritor brilhante. Inventivo, humano, profundo, divertido, surpreendente a cada esquina. 

E The Pale King tinha tudo pra ser ainda mais fantástico que Graça Infinita. E mesmo “incompleto” (falamos mais disso mês que vem…) ainda é um romance sensacional.

Fique com uma amostra. Um “capítulo” completo, editadinho pra não precisar de notas de rodapé, e ainda, claro, em versão “in progress”…

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§26

Uma ou duas palavrinhas sobre o fenômeno dos "espectros" que é parte tão central do folclore do pessoal da Verificação das declarações de imposto de renda. Os espectros desses verificadores não são iguais a fantasmas de verdade. Espectro aqui se refere a um tipo particular de alucinação que pode afetar os verificadores de primeira instância depois de um certo limiar de tédio concentrado. Ou, melhor, digamos que o desgaste de tentar permanecer alerta e concentrado face ao tédio extremo pode atingir níveis nos quais certos tipos de alucinação ocorrem rotineiramente.

Uma dessas alucinações é o que se conhece nas Verificações como uma visita do Espectro. Às vezes só uma visita, assim "Você tem que perdoar o Blackwelder. Ele recebeu uma visitinha hoje de tarde, por isso aquele tique". Embora quase todos os verificadores de primeira acabem sofrendo alucinações num momento ou outro, nem todo verificador é visitado. Só certos tipos psicológicos. Um jeito de você saber que eles não são fantasmas de verdade: O espectro de cada visitado é diferente, mas seu traço comum é o fato de que os espectros são sempre profunda, diametralmente diferentes das pessoas que visitam. É por isso que são tão amedrontadores. Eles tendem a se apresentar como irrupções do lado reprimido de uma personalidade muito rígida e disciplinada, o que os analistas talvez pudessem chamar de sombra da pessoa. Verificadores hipermasculinos recebem visitas de bichas afetadas de lingerie e cobertas de camadas de ruge e rímel de teatro de revista, pura viadagem. Verificadores devotos veem demônios; os pudicos veem meretrizes de pernas abertas ou caubóis priapísticos. Os imaculadamente higiênicos recebem visitas de figuras imundas cuja roupa fervilha de pulgas; os mais chatos e organizadinhos veem figuras choraminguentas descabeladas que têm barbantes amarrados nos dedos e reviram freneticamente as gavetas da mesa em busca de algo de importância crucial que não sabem mais onde puseram.

Não é que aconteça todo dia. Os espectros afligem principalmente certos tipos. Com fantasmas de verdade não é assim.

Fantasmas são diferentes. A maioria dos verificadores com alguma experiência acredita no Espectro; poucos conheceram ou acreditam em fantasmas propriamente ditos. Isso é compreensível. Fantasmas, afinal, podem ser tomados por espectros. De certas maneiras, os espectros servem como o pano-de-fundo que distrai, ou como uma camuflagem em meio à qual pode ser difícil perceber o padrão de fatos que corresponde aos fantasmas de verdade. É como a velha piada cinematográfica de alguém que no dia das bruxas recebe a visita de um fantasma e cumprimenta o que acha ser uma criança com uma fantasia incrível.

A verdade é que havia dois fantasmas reais, não alucinatórios, assombrando a sala de verificação do Posto 047. Ninguém sabe se eles existem nas Células Imersivas; essas células são mundos à parte.

Os nomes dos fantasmas são Garrity e Blumquist. Muito do que se segue foi fornecido posteriormente por Claude Sylvanshine. Blumquist era um verificador muito água-com-açúcar, sem graça e eficiente que morreu sem ser percebido, na sua mesa, em 1980. Alguns dos verificadores mais antigos chegaram até a trabalhar com ele, lá nos anos 70. O outro fantasma é mais velho. Mais velho, assim, que vem de um período histórico anterior. Garrity nitidamente foi inspetor de produção da fábrica de espelhos que ficava naquele prédio na metade do século XX. Seu trabalho era verificar cada um dos espelhos de um certo modelo decorativo que saía da linha de produção, à procura de defeitos. Um defeito era normalmente uma bolha ou irregularidade no fundo de alumínio do espelho que fazia a imagem se distender ou se distorcer de alguma maneira. Garrity tinha vinte segundos para verificar cada espelho. A psicologia industrial na época era uma disciplina primitiva, e havia pouca compreensão de tipos não-físicos de estresse. Essencialmente, Garrity ficava sentado num banquinho ao lado de uma esteira lenta e movia a parte superior do corpo num complexo sistema de quadrados e formatos de borboleta, verificando bem de perto o reflexo do próprio rosto. Fez isso três vezes por minuto, 1440 vezes por dia, 365 dias por ano, por dezoito anos. Mais para o fim ele obviamente movia o corpo naquele complexo sistema inspetorial de quadrados e formatos de borboleta até quando estava de folga e não havia espelhos por perto. Em 1964 ou 1965 ele aparentemente se enforcou num cano de aquecimento no que é hoje o corredor norte que sai da sala de verificação do Anexo do prédio. Entre os empregados do 047, só Claude Sylvanshine sabe alguma coisa mais detalhada a respeito de Garrity, que na verdade nunca viu de verdade. Entre os dois fantasmas da sala de verificação, Garrity é o mais fácil de se confundir com um espectro porque não para de falar e provocar distração e assim verificadores que fazem força para manter a concentração vivem pensando que ele é o incorrigível chimpanzé interior do lado negro e auto-destrutivo de sua próprio personalidade.

Blumquist é diferente. Quando Blumquist se manifesta no ar em torno de um verificador, basicamente fica ali sentado com você. Em silêncio, sem se mexer. Só uma leve translucidez em Blumquist e na sua cadeira é que trai algo de anormal. Ele não enche. Não é que fique te encarando de algum jeito incômodo. Você fica com a impressão de que ele simplesmente curte ficar ali. Com a impressão de que ele é um tantinho triste. Tem uma testa alta e olhos doces que seus óculos ampliam. Às vezes está de chapéu; às vezes segura o chapéu pela aba enquanto fica sentado. Tirando os verificadores que entram em espasmos diante de qualquer tipo de aparição — e esses são tipos rígidos e frágeis que de qualquer maneira estão prontinhos para uma visita de um espectro, então a coisa é meio que um círculo vicioso — tirando esses, quase todos os verificadores aceitam ou até gostam de uma visita de Blumquist. Ele parece favorecer alguns, mas é bem democrático. Os verificadores o acham sociável. Mas ninguém, jamais, fala sobre ele.

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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James JoyceDavid Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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