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Uma das páginas do manuscrito de The Pale King, do acervo do Harry Ransom Center.
Depois de cerca de três anos, depois de mais de um milhão e trezentos mil caracteres, ontem eu terminei a primeira versão da tradução de The Pale King, de David Foster Wallace. Posso dizer, portanto, já que essa primeira etapa é ainda apenas isso, uma “primeira” etapa, que neste momento a minha tradução (o meu O rei pálido) é um trabalho incompleto. Inacabado.
Ainda vou precisar reler o texto todo, repassar uma série de pentes finos e buscas verticais, mandar pra preparação, rever o texto depois da preparação, esperar uma revisão, outra revisão, diagramação etc… e aí teremos um livro. Aí teremos O rei pálido. Mas ainda há o que andar.
Até, digamos, mês passado, a minha tradução era “incompleta” de outro jeito: eu ainda não tinha chegado ao fim do texto.
E é claro que eu estou falando aqui de trabalhos incompletos e de tipos diferentes de textos incompletos precisamente porque The Pale King é um romance “inacabado”. Quando do suicídio de Wallace, em 2008, ele deixou um manuscrito organizado para seu editor, que ainda consultou centenas de arquivos, esboços, versões e trechos de textos que a viúva lhe confiou para montar, três anos depois, o livro que conseguiu montar. Sem pretensão de “fechar” alguma coisa. Mas com a vontade de entregar aos leitores o melhor retrato possível do projeto de Wallace naquele momento.
Porque The Pale King não é um livro “inacabado” no sentido que se pode aplicar aos volumes finais de Em busca do tempo perdido, que nunca foram finalizados e revisados por Proust. Também não é um livro “inacabado” como Almas mortas, de Gógol, onde falta uma parte inteira do projeto.
Wallace, afinal, não escrevia romances como eu traduzo, produzindo em linha reta e deixando pra revisar no final. Ele escrevia curiosos mosaicos. Ao menos a gente sabe que foi assim com Graça Infinita, e que estava sendo assim com O rei pálido. Ele ia concebendo um universo de personagens que passava a desenvolver em cenas meio independentes, fazendo eles interagirem uns com os outros e com os “temas” que tinha proposto para o romance. Que gradualmente ia se adensando. Até que ele encontrasse uma “trama” que lhe permitisse criar um arco maior que unificasse esses outros.
Seu trabalho com o Rei nunca chegou a esse estágio. Como a edição do romance inclui também notas e apontamentos de Wallace, podemos saber que ele ainda estava sondando possíveis tramas unificadoras. Mas elas ainda não estavam em cena.
O que resta, portanto, é uma coleção de fragmentos inter-relacionados, que dizem respeito a pessoas cujas histórias nós ficamos sabendo aos pedaços, e que se interfertilizam de uma maneira por vezes quase meio serendípica (ou é essa a impressão mais forte que fica, dada a ausência de uma linha mestra que costure todas essas vozes e vezes).
E isso é curiosamente liberador.
Terminada mais essa leitura (uma tradução, afinal, é isso também), posso garantir com todas as letras que não vejo nada de frustrante na leitura desse gigantesco conjunto de cacos que é O rei pálido. Mal consigo pensar nele como um livro “incompleto”, na verdade.
Sem a trama, sem o arco, sem a linha, sobra a atenção dedicada àqueles pedaços de vida, àquelas sombras de gente. E sem a condução do enredo, como que fica sob a responsabilidade de o leitor criar o tecido, criar a unificação de fundo, ou meramente acreditar que ela existe.
Mais do que uma exposição didática e detalhada, é como se tivéssemos acesso a relances de cenas.
Uma exposição de fotografias em vez de um filme.
Um dia eu vou escrever um romance (disse todo e qualquer tradutor). Mas um dia eu vou. E ele vai ter a ver com uma ideia que eu derivei de uma conversa com o André Conti sobre narrativas emergentes em games (quem entende de game é ele).
A minha ideia é fazer um romance em que o menos possível é dado ao leitor. Que fica com a responsabilidade de erguer uma relação com o “romance” a partir dos fiapos mais ralos de cenas.
Meu romance vai se chamar Lia.
E, mais uma vez, eu descubro que o Wallace já fez isso antes de mim.
O rei pálido está previsto para 2018.
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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