O problema da sua vida dar um livro

17/10/2017

Quando pego um táxi, quando alguém desconhecido descobre que escrevo, quando um familiar está prestes a contar uma história dramática, lá está: a frase, o clichê, eu já sei que vem. Como um pino vendo a bola de boliche rolar pela pista, consigo ver desde o início.

— Isso dá um livro — ouço. Ou a história pode começar com:

— Mas não vai roubar a ideia para um livro, hein…

Não vou entrar no mérito de cada pessoa achar que sua vida é a coisa mais relevante que pode ter existido e que merece um livro. Não vou entrar no mérito de acharem que sou uma pessoa que rouba qualquer coisa sem avisar (eu peço autorização). E não vou entrar no mérito de acharem que só escrevo sobre suas vidas: as pessoas adoram se ver em ficções em que não estão. Não vou entrar no mérito de quando me dizem “isso dá um livro”, muitos não sabem me dizer o último livro de que gostaram. Isso é para outra crônica. Então vamos com calma. Vou entrar no mérito de “o que dá um livro” e o que não dá.

Basicamente, tudo dá um livro.

(Fim da crônica, fecha cortina, obrigada a todos.)

Não é simples assim, é? Mas é um pouco simples assim. Posso contar uma história que se passa durante uma noite, com um personagem apenas esperando um cara que não chega, e isso pode ser interessante. E posso contar uma história de alguém que precisou escalar os Andes sem nenhum equipamento para sobreviver a uma queda de avião, e isso pode ser tedioso. Ou seja, não se trata tanto de um “o quê”, mas de um “como”.

Quando descrevemos uma história — quando digo “li um livro ótimo” —, pensamos nos eventos da história. Dialogamos sobre o que acontece na história. Mas isso nem sempre é o que mais marca o leitor.

Um exemplo muito recente pode ser o musical Hamilton. É o musical da vida de um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, Alexander Hamilton. E esse musical tem uma base de fãs imensa, ganhou dezesseis Tony Awards, está acontecendo na Broadway, em Chicago e estreia em Londres ainda este ano. A diferença entre uma aula chata de história e um musical bem-sucedido? O como. O musical inteiro é cantado com rap, hip-hop, rhythm and blues, música pop, além de ter um elenco de pessoas diversas e não-brancas.

Claro que os eventos importam. A vida de Alexander Hamilton, que seja num artigo da Wikipédia, é cheia de pontos altos e baixos, interessantíssima. Mas o como é o que garante a audiência até o final.

Pense numa história de terror e mistério, um livro do Raphael Montes, por exemplo. A escolha de ponto de vista é crucial para ele. Pensando em Dias perfeitos, que é contado sob o ponto de vista do psicopata, Raphael transforma Clarice na antagonista. A surpresa, a tensão, se constrói nas tentativas de escapar de Clarice. Com o livro no ponto de vista do assassino, colocamos a tensão em sua mente, não tanto nos eventos.

Depois de participar de cerca de quatro workshops de criação literária, percebo que esta é a grande lição. As escolhas narrativas — de protagonista, voz, pessoa narrativa, cenário, tempo verbal, o ângulo — são tão importantes quanto a história em si. Pode parecer que um narrador em terceira pessoa onisciente é a escolha correta, mais versátil, em todas as situações, mas depois de tantos exercícios de mudar o ponto de vista da história, discordo. Assim como tentar demais reinventar a roda pode tirar o foco.

É só pensar na autobiográfica Minha Luta, de Karl Ove Knausgård: não são os eventos em si. O como e o quê precisam andar juntos. É isso que determina se “dá um livro” (ou um conto, uma novela, romance, poema, crônica, biografia).

Então, sim, quando me dizem que “minha vida dá um livro”, tendo a concordar. Sim, o drama com a vizinha que roubou o cachorro do seu cunhado. E também a história do ladrão de carros que na verdade era o filho da faxineira de longa data. Porque tudo dá um livro. Porque tudo vale a pena, se a ficção for… buena? Serena? Se a ficção… oxigena?

Se a ficção… engrena?

Bom, nem tudo dá um jogo de palavras. Mas que dá pra achar o ponto de vista mais interessante em uma história, isso dá.

* * * * *

Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, Luzes de emergência se acenderão automaticamente, foi publicado pela Alfaguara em 2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.

 

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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