Em agosto do ano passado, entreguei o livro novo ao meu editor. Era um projeto que — desde pensar, estruturar, pesquisar, — tinha consumido mais ou menos três anos. Três anos mergulhada em uma história, em um grupo de personagens, em um país. Três anos em que se eu tinha vontade de escrever sobre algo, ou eu dava um jeito de aquilo funcionar na história, ou ia para uma lista de temas ou assuntos posteriores.
E terminei.
E aí?
Gosto da sensação de dever cumprido. Gosto de não estar devendo nada, de botar bola de pingue pongue do outro lado da mesa. Agora é a vez do leitor, digamos assim.
Mas é aterrorizante não ter mais uma estrutura literária. Qualquer coisa sobre a qual eu quiser escrever, eu posso. Qualquer personagem que eu queira criar, eu posso. E ao mesmo tempo, acho todas as ideias horríveis.
Vocês lembram do Orkut? Tinha uma comunidade, algo do tipo “Só dão em cima de mim quando estou namorando”. A ideia era que os bons pretendentes surgiam quando a pessoa estava comprometida e, quando ela estava enfim “livre”, não havia mais interesse dos outros. Ou seja, o pior dos dois mundos. Ideias são canalhas assim.
Tiro muitas ideias de literatura preexistente. É impressionante como outras pessoas são criativas. Surpreendente. Aquele autor lá, um tal de Machado de Assis, com um narrador morto? Brilhante. E aquele tal George Orwell com uns bichos revolucionários? E aquela tal Virginia Woolf, e aquele fluxo de consciência? Posso fazer minha versão disso.
No meu caso, uma das primeiras ideias que tive a respeito do Luzes de emergência se acenderão automaticamente era um livro narrado em cartas. Quantos livros narrados em cartas existem? Milhares. Mas eu queria as minhas cartas canoenses escritas no chão do Trensurb.
Aqui vale uma observação importante: isso não quer dizer que você não vá ter uma ideia própria. Não quer dizer que você vá tentar copiar autores. Nunca queira “fazer igual”. Quer dizer que você construiu em cima de algo. O resultado final será outro. Seu protagonista morto provavelmente será um zumbi. Seus bichos revolucionários podem não ser de fazenda, mas pets mimados ao extremo. A beleza de roubar outras ideias de outros livros é justamente torná-las suas. Pegar o original emprestado até fazer algo próprio. Afinal de contas, nada é totalmente original.
Por outro lado, um dos meus animais favoritos é a capivara. Amo demais o jeito de boas que elas têm. Aquela cara faceira-zen. Quando estava fazendo mestrado na Irlanda, muitas vezes as mencionava e tinha de explicar aos gringos o que era uma capivara. Um hamster gigante, mas mais tranquilo, algo assim. Não, não é um animal exótico ou em risco de extinção. E isso ficou na minha cabeça.
A próxima ideia de livro que tenho deve ter uma capivara envolvida. Tentei incluir uma capivara no Livro Novo, mas já tentou enfiar uma capivara na Irlanda? Não vai funcionar. Tentei usar como metáfora, como imagem, como tudo. Nada funcionou. Mas eu gosto tanto de capivaras.
Dá pra ver a oposição da origem dessas ideias com a anterior? Querer usar capivaras nunca foi uma vontade estética. Não tem uma motivação maior, um significado por trás. Gosto de capivaras. Eu gostaria de ler mais livros que incluíssem capivaras. Fim.
O Livro Novo Ainda Sem Título (e sem capivaras) começou um pouco assim. Queria um livro que se passasse na Irlanda, justificando com meu gosto intelectual pelos autores irlandeses (Joyce, Beckett, coisa e tal). Mas a verdade é que queria passar um livro lá e pronto. Ao longo da escrita e estruturação (incluindo morar lá), escrevi um livro que sei que não poderia se passar em nenhum outro lugar. É um livro sobre brasileiros na Irlanda e tinha que ser sobre isso. A história só funciona lá. Mas começou mais como uma vontade, um instinto, uma frescura. E às vezes, a gente tem que ouvir nossas frescuras (mas sabendo quando usar ou não, tipo capivaras).
Sei que mencionar duas opções soa um pouco como aquelas piadas de “existem duas pessoas no mundo…”. Mas é de onde sei que minhas ideias vêm. A verdade é que dizer que elas vêm de mim soa arrogante. Eu não acho que tenho uma ideia totalmente minha há uns 27 anos.
No entanto, não deixem escritores enganarem você. Nenhum de nós sabe de onde vêm as ideias. E todos nós temos pavor de não ter a próxima. No momento, estou coletando ideias para o próximo livro, mas tenho medo de dizer qualquer coisa a respeito. Porque vou mudar de ideia. Eu sei que vou mudar de ideia. No meio tempo, só posso tentar estruturar de onde estou buscando ideias.
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Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, Luzes de emergência se acenderão automaticamente, foi publicado pela Alfaguara em 2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.