"Cat Person" e os temas do momento

14/02/2018

Quando, no fim do ano passado, o conto Cat Person, da jovem Kristen Roupenian, começou a ser compartilhado nas redes sociais por pessoas que eu jamais imaginaria (não exatamente leitores de ficção), minha primeira reação foi de surpresa. O texto mais lido da New Yorker em 2017? Comecei a ler Cat Person. Minha segunda reação foi de surpresa e dúvida. O que havia no conto? Para mim, não muita coisa que justificasse todo o barulho que o público estava fazendo. Literariamente, era correto, mas um estilo assim sóbrio não era novidade, muitos outros já haviam tentado coisas parecidas com resultados bem mais interessantes. Em resumo, a escrita me parecia opaca e, em muitos momentos, enfadonha. Confesso que foi difícil chegar até a última linha.

Acho que demorei tanto a entender o fenômeno justamente porque me detive nos atributos literários do texto. Foi difícil admitir que isso importava menos para as pessoas, ou não importava e ponto: o que estava sendo discutido era o conteúdo, a relação estabelecida entre as duas personagens. E, nesse sentido, o conto não tinha sido alçado ao estrelato por ser exatamente original, mas sim o contrário disso; como afirmou Nancy Jo Sales, colunista da Vanity Fair, “basicamente qualquer um que já tenha usado um app de paquera poderia ter escrito Cat Person, talvez não tão bem”. E a ressalva do “não tão bem” parece importar bem menos do que o fato de Roupenian ter escrito sobre uma relação tipicamente insípida entre uma menina de vinte e poucos anos e um cara um pouquinho mais velho.

Uma versão mais sofisticada de um textão do Facebook. Acho que posso resumir o conto assim. Em termos de recepção, parecia claro que os mecanismos das redes sociais é que estavam operando: Robert era um abusador ou apenas um cara sem graça? Por que Margot fez o que fez? Quem era o errado da história toda, ele ou ela? Escolha seu lado, aqui não tem lugar pra gente em cima do muro. Esse era o tom das discussões.

Veja bem, não estou atacando textos literários que usam questões contemporâneas como temas. Isso, na verdade, é o que eu normalmente espero deles. O que me parece no mínimo redutor – e no máximo perigoso – é quando a literatura começa a ser lida apenas como veículo de exposição dos assuntos do momento, excluindo-se daí qualquer outro aspecto que torna um texto literário justamente um texto literário (isso inclui todas as questões estéticas, obviamente, mas também um certo tom de dúvida e de sugestão muito mais do que de certezas e ideologias marcadas).  

Tais mudanças na recepção estão aí, jogadas na nossa cara. Mas e quanto às mudanças na produção? Se está claro que o mercado editorial e a mídia embarcam na onda de tomar uma obra não pelo todo, mas pelos “temas discutidos” – não foi sempre assim?, me dirão alguns –, mais misteriosas são as consequências disso tudo na vidinha do escritor. Vamos nos tornar todos escritores imediatistas, com pressa de escrever sobre o que já está em evidência nas redes sociais? Tremo só de pensar.

Outro dia, revi Sideways (2004), um belo filme de Alexander Payne baseado no romance de Rex Pickett. É uma história sobre vinhos, amizade e relações héteros. Tem como protagonista um cara branco meio deprimido. Haveria lugar para essa trama em 2018? Ganharia um Oscar (ganhou, na época, Melhor Roteiro Adaptado)? Certas histórias são simples e atemporais. Torço para que elas não deixem de ser escritas, lidas e – quem sabe? – comentadas no Facebook.  

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Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Todos nós adorávamos caubóis foi lançado em outubro de 2013 e, em 2017, publicou seu romance mais recente, O clube dos jardineiros de fumaça.

Carol Bensimon

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