Traduzir de dia: tradutores de “Quem vai te ouvir gritar” contam bastidores do processo

16/07/2024

Quem vai te ouvir gritar, coletânea inovadora organizada pelo cineasta Jordan Peele e pelo editor John Joseph Adams, traz histórias para pensar não apenas sobre os terrores do sobrenatural, mas sobre a realidade assombrosa das injustiças e das desigualdades sociais. A obra foi recentemente lançada no Brasil pela Editora Suma, e todas as histórias reunidas no livro surpreendem pela vivacidade imaginativa de seus universos e, ao mesmo tempo, chocam e incomodam por serem profundamente baseadas na realidade tão palpável do racismo e da desigualdade.

Elaborados por uma lista admirável de escritores não-brancos – incluindo N. K. Jemisin, P. Djèli Clark, Nnedi Okarafor, entre outros –, os textos foram traduzidos para o português pelas mãos de um time de quatro tradutores talentosos: Carolina Cândido, Gabriela Araújo, Jim Anotsu e Thaís Britto.

Para o quarteto, elaboramos algumas perguntas sobre o processo de tradução, suas preferências nos contos do livro e sua relação com o horror enquanto gênero literário.

Quem vai te ouvir gritar: Uma antologia de horror negro (foto: Desenho Editorial)

Confira a entrevista completa:

Blog da Companhia: Quais contos cada um de vocês traduziu?

Carolina Cândido: Eu traduzi os contos “Invasão dos ladrões de bebê”, da Lesley Nneka Arimah, “O viajante”, de Tananarive Due, “Casa escura”, de Nnedi Okorafor, “O problema de Norwood”, de Maurice Broaddus, e “Seu lugar feliz”, de Terence Taylor. 
 
Gabriela Araújo: Traduzi o conto “A outra” de Violet Allen, “Sob pressão” de Ezra Claytan Daniels, “O luto dos mortos” de Rian Amilcar Scott, e “Uma fábula americana” de Chesya Burke. 
 
Jim Anotsu: Eu traduzi "Cintilação", de L. D. Lewis, "Diabo Errante", de Cadwell Turnbull, "Esconde-Esconde", de P. Djèli Clark, "História de Origem", de Tochi Onyebuchi, e "Olho Imprudente", de N. K. Jemisin
 
Thaís Britto: Eu traduzi os contos “Olho e dente”, da Rebecca Roanhorse, “Lasirèn”, de Erin E. Adams, “O esteta”, de Justin C. Key, “A mulher Obia mais forte do mundo”, de Nalo Hopkinson, e “Um pássaro canta próximo à árvore entalhada”, de Nicole D. Sconiers.

BC: Vocês já conheciam algum dos autores antes de iniciarem a tradução?

CC: Já havia lido outros autores presentes na antologia, mas apesar de conhecer os que traduzi de nome, nunca tinha lido nada escrito por eles.

GA: Os autores que traduzi ainda não conhecia, mas alguns outros nomes da antologia, sim.

JA: Já conhecia N. K. Jemisin e P. Djèlí Clark, autores que eu tinha lido. Os outros foram gratas surpresas para mim e espero conhecer novas obras de pessoas tão talentosas.

TB: Não conhecia nenhum dos autores que traduzi, embora já conhecesse alguns que estão na coletânea, em outros contos. Fiquei interessada especialmente na Rebecca e na Nicole, que foram os contos de que mais gostei, e certamente vou procurar mais material delas para ler! 

BC: Qual é a relação de vocês com o gênero de horror e o que esperam que esse livro desperte nos leitores? 

CC: Apesar de ser uma grande fã do gênero suspense, eu não costumava consumir tanto o gênero horror. Já li alguns livros do gênero e tenho bastante interesse, que ficou ainda mais aguçado depois dessa tradução. Mas como bem disse a tradutora Gabriela Araújo durante a live com a Editora Suma — que, inclusive, se você não assistiu, recomendo que assista —, esse livro é capaz de fazer despertar o medo de formas muito diferentes naquele que lê.

Aqui, não estamos falando do medo clássico que paira no imaginário quando pensamos em filme de terror, mas um sentimento mais aguçado e que mexe com diferentes partes do nosso cérebro. Esse é o tipo de leitura que permanece com o leitor muito tempo após acabar de ler e, acredite, permanece com quem traduz também. De vez em quando me pego pensando em um dos contos e entendendo sob uma nova perspectiva.

GA: Por muito tempo não consumi terror porque me assusto fácil com algumas coisas, mas o ponto de virada para mim foi assistir ao filme Corra, do próprio Jordan Peele e, assim, ser apresentada a um tipo diferente de horror, um tipo distinto do “horror clássico”.

Hoje me interesso muito por horror com um cunho mais social ou racial, obras como os filmes do Jordan Peele e trabalhos de autoras latino-americanas, como é o caso de Mariana Enríquez. A coletânea dela, As coisas que perdemos no fogo, é sensacional, e me abriu muito os olhos também para o tipo de horror que me chama.

Nesse sentido, a antologia Quem vai te ouvir gritar é um baita exemplo do gênero que me desperta interesse.

E imagino que, pela pluralidade de contos e gêneros e subgêneros, os leitores podem sentir muitas coisas! Medo, lógico, pois o livro trabalha muito bem a linguagem do medo, mas penso também que podem sentir indignação, angústia e até esperança. Com certeza as histórias trazem reflexões importantes tanto sobre o passado quanto sobre o presente da comunidade negra afro-estadunidense, utilizando pautas que ressoam em comunidades negras da diáspora em outros lugares, como o Brasil.

JA: Eu sempre amei a literatura de horror. Eu comecei na adolescência lendo Stephen King, Lovecraft e clássicos vitorianos. Embora eu seja mais conhecido como autor de livros juvenis, meu coração tem um cantinho sombrio para histórias assustadoras. Espero que os leitores gostem e sejam levados a inúmeras outras histórias dentro do gênero.

TB: Eu sou uma medrosa de marca maior, mas por algum motivo estou sempre traduzindo livros de suspense e thrillers. Tenho alguns métodos pra dar uma suavizada no medo quando estou com um livro desses: tentar concentrar a maior parte do trabalho durante o dia, colocar uma música animada pra evitar ouvir qualquer barulho suspeito (risos), essas coisas. Teve uma vez em que precisei ir até o final do livro pra ler e descobrir logo o que acontecia e me acalmar, porque estava me deixando muito ansiosa. No caso de Quem vai te ouvir gritar, os contos que traduzi de modo geral não são desses que assustam e dão medo, mas sim daquele tipo que desperta angústia, que faz a gente querer saber o que vai acontecer e também pensar sobre aspectos da sociedade que estão no nosso dia a dia, mas podem ser bem aterrorizantes.

 

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BC: Como foi trabalhar na tradução do livro? Vocês podem contar como era o processo de vocês e, talvez, um caso de bastidor curioso/interessante?

CC: Bom, para começo de conversa eu só traduzia durante o dia porque sou bastante impressionável (risos). Acho que cada conto teve uma temática que exigiu um trabalho de pesquisa mais peculiar.

Em “O viajante”, por exemplo, o foco estava na ambientação da linguagem para que melhor representasse um Estados Unidos segregado racialmente no ano de 1961 e a diferença da personalidade das duas irmãs.

Já em “Casa escura”, tive que mergulhar nas tradições nigerianas relacionadas à morte e confesso que foi uma viagem bastante interessante, do tipo que eu, como tradutora, adoro: pesquisar em fóruns, ver vídeos, me familiarizar com os termos que são citados e claro, aprender bastante durante esse processo. Do ponto de vista linguístico, talvez esse tenha sido o conto mais desafiador.

Tanto em “Invasão dos ladrões de bebê” quanto em “Seu lugar feliz”, lidamos com um elemento de suspense que só vai ser revelado algum tempo depois. Isso exige uma atenção ao léxico, para que ele possa continuar acompanhando o suspense proposto pelo autor, ou seja, não usar palavras reveladoras demais.

GA: Eu adorei trabalhar nos contos, embora tenha decidido trabalhar só de dia (só por precaução) (risos). Também busquei trabalhar em contos diferentes em dias diferentes, sem acabar “misturando” os tons e vozes narrativas entre as histórias.

Muitas das histórias que traduzi falam sobre um horror com viés em traumas ou emoções, temas que mexem muito com nossa humanidade e senso de identidade, então foram histórias que falaram muito comigo.

Algo engraçado que aconteceu foi que para traduzir uma ave específica no conto "O luto dos mortos", fui parar em fóruns e vídeos no YouTube do jogo raft durante a pesquisa. O nome da ave em inglês, “screecher bird”, é usada no jogo e fui atrás de entender como os jogadores por aqui chamavam a ave para ver se faria sentido na tradução.

Acabou que eles chamavam de “screecher” mesmo ou de “águia”, o que não casava tão bem com o contexto necessário para a história, mas me divirto contando isso porque é um dos exemplos dos caminhos tortuosos que percorremos na hora de traduzir. Ah, se nosso histórico do Google falasse…

JA: Foi um processo muito tranquilo e direto. Gostaria muito de dizer que a porta se fechou sozinha enquanto eu traduzia ou que ouvi barulhos perturbadores, mas eu trabalho de porta fechada, ouvindo música clássica e bebendo chá. Sou entediante.

TB: Não tenho exatamente um caso curioso, mas a grande diferença de traduzir este livro pra mim foi trabalhar com contos de autores diferentes – eu estou bem mais acostumada a traduzir romances, e é um processo bem diferente. Em geral, numa tradução longa como um romance, você demora algumas páginas pra “pegar o jeito” do livro, digamos, compreender melhor a voz do autor ou da autora, o estilo, e a partir de então normalmente o texto começa a fluir mais fácil. No caso dos contos não tem isso, quando você sente que começou a pegar o jeito, o texto já acabou (risos). Então de alguma forma é um trabalho um pouco mais minucioso, com mais releituras pra deixar tudo bem ajustadinho desde as primeiras frases. O lado bom é que não dá tempo pra você se cansar daquele texto (o que às vezes acontece com os romances, que ficamos meses traduzindo).

BC: Dos contos que vocês traduziram, existe um favorito? Se sim, qual?

CC: Todos os contos são incríveis e mexeram comigo de uma forma diferente, mas acredito que o meu favorito seja “Seu lugar feliz”. Ele tem exatamente o tipo de estrutura que eu adoro numa leitura e que me faz lembrar alguns episódios bem específicos da famosa série de Charlie Brooker, o Black Mirror. Não posso revelar quais episódios porque acabaria por dar um spoiler do tipo de virada no enredo que acontece, mas tudo o que posso dizer é que quando terminei de traduzir, precisei levantar da cadeira por alguns instantes, tomar uma água e tentar processar tudo o que tinha lido.

GA: Meu favorito é "Uma fábula americana", e um segundo favorito é "O luto dos mortos".

"Uma fábula" tem uma influência muito grande da espiritualidade, sobretudo de religiões de matriz africana, e acho que passa uma mensagem muito importante sobre a busca por dignidade de pessoas afro-estadunidenses na época do movimento pelos direitos civis e da forma que a resiliência desta batalha adivinha muito da esperança trazida pela fé.

Acho que a fé e nossa ancestralidade estão muito conectadas, e por muitas vezes só em nome da fé nossos antepassados conseguiram suportar atrocidades desumanas e garantiram o legado que hoje vivemos. Agarraram-se a tal fé para não desistir.

Para além do elemento horror negro que permeia o conto, foi uma história tocante que me emocionou demais.

JA: O mais legal, para mim, foi "Diabo Errante", porque eu gosto muito do clima dele, tem um toque de Stephen King dos anos 1970, com uma pegada de blues e um final que amarra as coisas. Amei.

TB: Sim, o meu favorito foi “Um pássaro canta próximo à árvore entalhada”. Não dá pra falar muito sobre ele sem dar spoiler, mas eu gostei muito do modo como a autora vai revelando a história bem aos poucos, construindo as imagens, sem falar de forma muito mastigadinha o que está acontecendo. A relação entre as duas personagens do conto é muito interessante, uma relação complexa de amizade e cumplicidade, mas também de repulsa e competição. Gosto muito também da sutileza com que ela aborda assuntos sobre o tratamento dado às mulheres, especialmente às mulheres negras. E, no fim das contas, é de alguma forma uma história em que mulheres se vingam de homens babacas – um tema que sempre aquece meu coração (risos).


A seguir, você confere um pouco mais sobre cada um dos tradutores de Quem vai te ouvir gritar:

Carolina Cândido

Paulistana apaixonada por livros desde pequena. Formada em Letras com habilitação em italiano pela USP e Mestre em Tradução pela Universidade de Lisboa. Já trabalhou em mais de quarenta livros para editoras brasileiras, em gêneros como romance, suspense e fantasia. 

Gabriela Araújo

Escritora, tradutora e preparadora literária. Colabora com editoras desde 2021 e está concluindo a pós-graduação em produção editorial. Como escritora, publicou obras independentes na Amazon. Costuma resumir o próprio trabalho como “a ação de criar e recriar mundos”.

Jim Anotsu

Escritor, tradutor e roteirista de cinema, TV e publicidade. Seus romances foram publicados em mais de treze países. Foi vencedor dos prêmios CCXP 2022 e Odisseia de Literatura Fantástica 2022, e finalista dos prêmios AEILIJ 2021 e Jabuti 2022, com o romance O serviço de entregas monstruosas

Thaís Britto

Carioca, formada em Jornalismo pela UERJ, com pós-graduação em Tradução. Trabalhou no jornal O Globo e nas editoras Record e Companhia das Letras. Já traduziu, de livros fenômenos no TikTok, a ensaios jornalísticos, passando por ficção literária e muitos suspenses. 

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