3 motivos pelos quais eu não vou escrever sua história, droga

20/02/2018

Todo escritor — no caso, “pessoa que escreve” — lida com estereótipos. As pessoas começam a conjugar o “tu” quando começam a falar comigo. Começam a me contar que faz tempo que não leem alguma coisa, por falta de tempo. Coisas que nunca cobro. Não venho de uma linhagem de intelectuais que discutem Tolstói no almoço, Dostoiévski na janta e terminam a sobremesa com Tchékhov. Isso é assunto para outro post, mas: escritores em geral são pessoas normais. Médicos não são só amigos de pessoas saudáveis, arquitetos têm amizades além de colegas de profissão. Mas existe uma coisa. A maior das coisas que ouço quando falo que escrevo. E essa sim me deixa furiosa, dando vontade de botar fogo em todas as bibliotecas e na própria instituição do livro.

“Ah, minha vida dava um livro.”

Ou a pessoa está me contando uma história supostamente interessantíssima, se vira para mim e diz:

“Mas não vai colocar essa no seu livro, hein.”

E eu não vou. Não vou escrever a história de ninguém, não vou roubar a ideia de ninguém, não vou roubar os direitos de ninguém. Eis por quê.

Motivo #3: Eu escrevo livros de ficção

Não sou autora de biografias, de reportagens jornalísticas, pesquisas e investigações. Muitos autores o fazem e fazem muito bem. Mas a parte que mais me diverte em escrever livros é inventar fatos. É inventar pessoas. Não vou escrever as suas memórias.

Contar a “sua história” é um pouco como contar um sonho: se não for bem contado e com os detalhes certos, ninguém quer ouvir muito. Muitas vezes, só querem ouvir porque aconteceu com você ou com alguém perto de você.

Por exemplo, uma vez me interessei por uma mentira que um amigo de infância do meu namorado contou e usei em uma história. Acabei até tirando a mentira específica, mas fiquei com traços da pessoa. Depois de um tempo, contando ao namorado sobre uma série de coisas que o personagem fez, fui interrompida:

“Mas o Marcos não é assim.”

Mas o personagem não era mais o Marcos há muito tempo. Era uma ficção altamente alterada que um dia quase se pareceu com Marcos. A discussão de onde ideias vêm (em especial, aonde vão) teria que ser assunto para um outro post. Mesmo que um evento inspire uma criação literária, esse evento vai ser transformado para servir à minha narrativa. Pego uma informação pré-existente, uma característica de uma pessoa, uso com outra, dou uma terceira camada de contexto necessário. Como comentei, o ato de pôr no papel, tintim por tintim, ficcionaliza tudo.

Motivo #2: Se eu escrevesse a sua história, você não iria gostar

Em geral, pessoas que falam que “dava um livro” não são muitos familiares com o processo de escrita de um livro. Confesso que eu, depois de quatro livros, ainda não sou muito familiar. É diferente contar uma história num boteco para uma audiência inebriada do que sustentar uma narrativa com começo, meio e fim por ao menos umas cem páginas.

A diferença crucial da história de boteco que “dava um livro” — o cliente grosseiro demais que tirou a camisa no meio da loja, a prostituta que se apaixonou pelo atendente do hotel esperando o cafetão voltar — é uma coisiquinhazinha de nada chamada ponto de vista. Quando você está contando uma história para seus amigos, você quer ser o campeão. Você é o cara que fez o parto surpresa no táxi. Você é a vítima que só queria dormir no hostel enquanto tinha uma orgia na cama ao lado. Você, dadas as qualidades básicas do ego humano, quer que torçam para você. E uma história boa não é feita de mocinhos e bandidos.

A boa ficção é um bangue-bangue sem mocinhos. São duas pessoas justificadas em seus medos e desejos, por mais que pareçam absurdos. Não é cliente grosso contra um vendedor que é nada além de atencioso. É um cliente que se sente incompreendido, que se sente inseguro, que não se sente escutado. E um vendedor já cansado, já sem paciência, que só queria fechar o mês com uma comissão melhor.

Quando você me conta sua história, você quer ser a pessoa inocente na história, contra um inimigo maior. E boa ficção vem da zona cinza, da realidade de pessoas com sentimentos nebulosos. Se eu adaptasse a sua história, se eu colocasse no papel, você se veria de fora. Se veria como um humano. Não seria uma piada de “o português entrou no bar”. Seria pior que uma sessão de terapia. E você não ia gostar.

Motivo #1: Eu aviso

Mais do que histórias, gosto de frases. Gosto de jeitos interessantes de descrever algo, descrever uma pessoa. Esse próprio “bangue-bangue sem mocinho” é uma expressão do meu irmão. Isso eu anoto e uso. Mas adivinha só: eu aviso. Eu pergunto: posso usar isso num livro? Na maioria das vezes, as pessoas nem percebem quando deixam uma pérola dessas escapar. Em geral, o garimpo é o trabalho do escritor.

Mas não se preocupem. Na média, nenhuma vida é tão interessante assim que dê um livro, nem a sua. Até algumas biografias de inventores podem ser um porre. E isso é um alívio para todos nós.

 

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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