Em tradução (arrima)

15/03/2018

Traduzir uma sentença pode ser definido simplesmente como dizer a mesma coisa com outras palavras. 

Eu vivo insistindo, inclusive, que em muitos casos o dado “trocar de língua” nem é o mais complicado. E vivo insistindo, também, que o que se diz na tradução é ideal e funcionalmente “a mesma coisa”. Sim, plenamente, ao contrário do famoso “quase a mesma coisa” proposto no livro do Umberto Eco.

Agora, traduzir uma sentença literária já se reveste de mais especificidades. Trata-se de dizer a mesma coisa e, além disso, buscar um equivalente de determinado efeito estético, muito mais sutil, muito mais delicado que a mera semântica. 

Dizer a mesma coisa; e com estilo. 

E tradutores de literatura, claro, apreciam essas novas constrições. São elas que deixam o jogo divertido.

E o que dizer da tradução de poesia metrificada e rimada?

Trata-se, agora, de dizer a mesma coisa (e esse dado não pode ser subestimado), com bastante elegância, com um número de sílabas pré-determinado, terminando tudo com um som pré-escolhido (a rima) e não raras vezes tendo ainda que escolher repetições estratégicas de consoantes e/ou vogais (aliterações e assonâncias) ao longo do trajeto. 

É tipo um jogo de palavras-cruzadas com regras determinadas por Satã. Ou Deus. Depende do gosto do freguês.

A poesia de T. S. Eliot, que vêm me ocupando desde o ano passado, é um caso todo especial. Afinal, ele é conhecido justamente por ser um dos poetas que definiram certo padrão de verso livre e branco, quase prosaico, para a poesia moderna. Ao mesmo tempo, ele é o cara que famosamente afirmou que não existe verso livre; que todo verso aparentemente sem metro na verdade manifesta uma tensão, um constante desafio de um padrão que se insinua, contra o qual o poeta trabalha.

E desde o seu primeiro poema, a incrível Canção de amor de J. Alfred Prufrock, com seu jogo permamente em torno do pentâmetro jâmbico (o decassílado da língua inglesa), e sua infinidade de rimas de todo tipo, misturadas a versos brancos, até o coroamento de sua obra, com os Quatro quartetos, onde de novo rimas se misturam a um discurso prosaico de tom elevado, em que metros se insinuam sob um pulso aparentemente irregular, ele viveu de sondar esses limites e de usar, como poucos, os recursos formais da poesia de língua inglesa.

E isso é complicado pro tradutor.

Primeiro porque essa relativa liberdade de forma sublinha o discurso, o “o quê”. A poesia de Eliot diz coisas, e usa tons específicos, dialetos, sotaques. Perder isso tudo em nome da rima e do metro é amortecer sua voz. Mas a poesia de Eliot também diz certas coisas graças a seu jogo de rimas e metros. E perder isso tudo em nome da fala clara é matar seu som.

Em segundo lugar, isso é difícil pura e simplesmente porque as regras são menos claras. Se te dão um soneto decassilábico de esquema ABBAABBACDCDCD, ora, pode ser trabalhoso, mas o gabarito de análise do original e da tradução é claro. Se no entanto você tem que deduzir o sistema e a forma, tem que deduzir SE existe mesmo forma ou estrutura relevante num dado poema, a coisa fica bem mais tensa.

Some-se aquele “primeiro” a este “segundo”, e bem-vindos sejamos à maçaroca que anda sendo a cabeça deste tradutor nos últimos meses. Eu ando pensando metricamente, ando contando sílabas e “sublinhando” aliterações em tudo que ouço… Ando vendo e ouvindo Eliot por tudo.

E meio que é isso mesmo que os grandes poetas sempre fizeram…?

Hmmm…

Agora é só esperar que a tradução, que deve sair ainda este ano, cumpra ao menos este papel, e entregue aos leitores brasileiros um Eliot novo, mais poderoso e mais contagiante, que diga o que tem que dizer e o diga com estilo, da forma “certa”, com a “forma” certa.

Oxalá.

* * * * *

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James JoyceDavid Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
Twitter

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog