Coesão ou polifonia? – O Novo Testamento da perspectiva da história literária

16/03/2018

Por Frederico Lourenço

 

 

Os 27 textos que integram o Novo Testamento têm em comum o facto de terem sido escritos antes de existir o Novo Testamento. No dia em que Paulo ditou aquele que será provavelmente o texto cristão mais antigo (que nós conhecemos como a 1.ª Carta aos Tessalonicenses), o apóstolo não podia imaginar que esse texto estava destinado a fazer parte de uma colectânea cujos textos, de autores e de géneros diferentes, haveriam de ser lidos durante dois milénios como se veiculassem uma mensagem tão coesa e tão sintonizada que as pessoas puderam pensar que tinha sido divinamente inspirado.

 

Na realidade, porém, a leitura imparcial e objectiva do Novo Testamento não transmite essa ideia de uma única voz a veicular de forma coerente uma mensagem unívoca. Não só as cartas que são aceites pelo estudo crítico-histórico como tendo sido escritas por Paulo (sete de um total de treze) são diferentes entre si, como os próprios evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) são também objectos textuais muito diferentes, não obstante as semelhanças. Mais diferente ainda é o Evangelho de João, que narra a vida de Jesus com uma cronologia diferente e com uma ênfase muito diversa dos outros evangelhos canónicos.

 

A leitura teológica do Novo Testamento pretende mostrar que é possível harmonizar as diferenças, suavizar as contradições, ouvir uma única voz nestes 27 textos: a da inspiração divina. A perspectiva da história literária, por outro lado, com a sua abordagem crítico-histórica, não só aceita como valoriza as diferenças muitas vezes irreconciliáveis entre estes textos.

 

A biografia de Paulo que nos é transmitida pelos Atos dos Apóstolos não bate certo com o que o próprio apóstolo nos dá a ler na sua Carta aos Gálatas. Trata-se de um tema que abordo com alguma atenção nos comentários à minha tradução dos Atos dos Apóstolos e das Cartas paulinas. Muitas traduções da Bíblia fazem acompanhar o texto de um aparato de referências a outras passagens na Bíblia, dando assim a entender, a quem lê, que nessas passagens se encontram informações coincidentes. Na realidade, esses aparatos de passagens “paralelas” contêm muitas passagens discrepantes. Dar a conhecer as vozes da Bíblia, a sua fascinante polifonia, é um dos grandes objectivos do meu trabalho de tradução.

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Frederico Lourenço é escritor, tradutor e professor de grego antigo. Formou-se em línguas e literaturas clássicas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde concluiu seu doutorado. Desde 2009 leciona na Universidade de Coimbra. Traduziu do grego a Odisseia, Ilíada e as tragédias de Eurípides, Hipólito e Íon. Sua tradução da Odisseia recebeu o prêmio D. Diniz da Casa de Mateus e o grande prêmio de tradução do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores. Pela publicação do Volume I da Bíblia recebeu em 2016 o prêmio Pessoa.

Frederico Lourenço

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