De onde vêm os Evangelhos

27/03/2018

Por Frederico Lourenço

Embora uma primeira leitura dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos como Sinóticos, possa dar a impressão de que estamos diante de mais do mesmo, há um fenômeno que todos os que se aprofundaram nestes textos conhecem bem: quanto mais os lemos, mais diferentes se tornam. E o que chama a nossa atenção não são as semelhanças, mas justamente as diferenças.

Bíblia

Lidos em grego, os três textos conseguem manter uma identidade literária própria, apesar do muito material que partilham. Quase todo o Evangelho de Marcos está contido no Evangelho de Mateus, e mais da metade de Marcos está presente em Lucas. Porém, uma das razões pelas quais os evangelhos sinóticos mantêm uma identidade literária própria, apesar de tanto conteúdo partilhado, é que as frases de Marcos aparecem muitas vezes sutilmente reescritas nos outros dois textos. Mateus e Lucas cultivam um estilo mais apurado do que Marcos. Em Lucas até encontramos o uso correto de um modo do verbo grego (o optativo) que está ausente dos outros evangelhos.

Além de se terem baseado em Marcos, Mateus e Lucas recorreram também a uma fonte adicional, que se convencionou chamar de “Q” (a partir da palavra alemã para fonte: “Quelle”). Essa fonte poderá ter consistido numa coletânea de dizeres atribuídos a Jesus: uma compilação de “lógia” (isto é, “dizeres” em grego), semelhante, talvez, ao Evangelho apócrifo de Tomé, que não narra a vida de Jesus, mas que preserva mais de cem dizeres a ele atribuídos e que, em muitos casos, estão também presentes em Mateus e Lucas. É devido a essa intersecção que, embora o Evangelho de Tomé nos tenha chegado na sua versão mais completa apenas em língua copta, é possível restituir em muitos casos o texto original grego de Tomé.

Mateus e Lucas também se basearam em fontes que não deixaram rastro noutros evangelhos conhecidos até hoje. É só em Lucas que encontramos as parábolas do Filho Pródigo e do Bom Pastor, por exemplo. E só em Mateus que encontramos certas imagens que se tornaram proverbiais, como as pérolas jogadas aos porcos. Só em Mateus, Jesus diz que não é sete vezes que devemos perdoar, mas setenta vezes sete; é só em Mateus que Pedro caminha sobre a água, ou Judas se enforca, ou Pilatos lava as mãos.

Também as quantias de dinheiro referidas por Mateus configuram somas astronômicas, milhões de reais em moeda atual (ver a nota a Mateus 18:24 na minha tradução). Terá sido por isso que afigurou plausível, durante tantos séculos, a identidade do autor anônimo deste evangelho como cobrador de impostos? Quem sabe.

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Frederico Lourenço é escritor, tradutor e professor de grego antigo. Formou-se em línguas e literaturas clássicas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde concluiu seu doutorado. Desde 2009 leciona na Universidade de Coimbra. Traduziu do grego a Odisseia, Ilíada e as tragédias de Eurípides, Hipólito e Íon. Sua tradução da Odisseia recebeu o prêmio D. Diniz da Casa de Mateus e o grande prêmio de tradução do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores. Pela publicação do Volume I da Bíblia recebeu em 2016 o prêmio Pessoa

 

Frederico Lourenço

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